Essa tal coligação, vista da Europa
Renato Soeiro
2014-02-05
Muito se tem comentado sobre a hipótese de ter havido uma coligação de esquerda para as eleições europeias. Tendo ficado claro que todos os acordos entre o Bloco, o movimento 3D e a associação Renovação Comunista eram possíveis e fáceis, dada a ampla coincidência de pontos de vista políticos, mas que não eram uma coligação, apenas porque essas entidades não têm a forma de legal de partido, como a lei requer para haver coligações ("coligação" em termos jurídicos não é uma junção de vontades, é um acordo formalizado entre partidos legalmente registados), restaria então a hipótese de o novo partido Livre conseguir a tempo a sua legalização para que se pudesse falar da possibilidade de uma eventual coligação, legalmente apenas entre o Bloco e o novo partido dinamizado pelo Rui Tavares.
Há quem, com a melhor das intenções unitárias - que entendo e partilho -, lamente que tal não se venha a concretizar. Mas penso que este assunto da coligação tem sido analisado numa perspectiva exclusivamente interna ou nacional, o que talvez seja insuficiente ou mesmo desadequado, dado o tipo de eleições de que se está a tratar. Visto de uma perspectiva europeia, o assunto ganha uns contornos diferentes e um pouco estranhos. Por três razões.
Primeira razão: os grupos parlamentares
As eleições de Maio destinam-se a eleger deputados europeus. Os deputados europeus organizam-se por grupos parlamentares que, apesar de todos eles incluírem no seu seio uma grande diversidade de pontos de vista, correspondem, cada um, a uma certa visão geral comum dos problemas políticos, económicos e sociais que afectam os europeus.
Os grupos parlamentares serão mais fortes ou mais fracos de acordo com o apoio que for dado pelos eleitores às listas de deputados que neles se vão integrar. Seria assim muito estranho que os votos numa mesma lista de candidatos alimentassem dois grupos parlamentares concorrentes
[1]. Isto pressupondo que dessa hipotética lista de coligação sairiam deputados para o GUE/NGL, onde está o Bloco, e também para os Verdes, onde actualmente está o fundador do Livre
[2].
No nosso país, o que tem acontecido é precisamente o contrário: não uma mesma lista a eleger deputados para diferentes grupos, mas tem-se dado o caso de diferentes listas, de diferentes partidos, terem elegido deputados para um mesmo grupo parlamentar. Foi o caso dos eleitos do PSD e do CDS, que concorreram separados mas confluíram no grupo parlamentar europeu do PPE e dos eleitos do Bloco e do PCP que, depois de campanhas independentes, foram para o mesmo grupo parlamentar, o GUE/NGL. Mas, quem votou em qualquer uma destas listas tinha informação disponível, à partida, sobre o grupo parlamentar europeu para que o seu voto estaria a contribuir.
Segunda razão: os partidos europeus
Nas próximas eleições europeias, pela primeira vez, os diferentes partidos europeus indicarão antecipadamente os seus nomes para o cargo de presidente da Comissão Europeia, que funcionarão na campanha como porta-vozes a nível europeu de todas as listas que os apoiam. Não iremos aqui analisar o alcance, a importância, o significado e as vantagens ou desvantagens desta inovação. Mas apenas lembrar que nestas eleições haverá uma componente europeia em debate aberto, com diferentes visões e propostas políticas alternativas, apresentadas em confronto directo pelas pessoas que os diferentes partidos elegeram para os representar nesta batalha eleitoral.É sabido que o partido da Esquerda Europeia, a que pertence o Bloco de Esquerda, escolheu o líder do Syriza - Alexis Tsipras - para desempenhar esse papel nesta campanha, prevendo-se que dê entrevistas e participe em debates a nível europeu entre os diferentes candidatos e intervenha nos vários países em comícios das forças que o apoiam
[3]. O partido europeu dos Verdes também já escolheu os seus nomes - José Bové e Ska Keller - para fazerem o mesmo.
Na eventualidade da presença numa lista conjunta em Portugal de candidatos que apoiam o Tsipras e outros que apoiam Bové e Keller, como seria o caso da tal coligação Bloco+Livre, não se vislumbra como seria proposto que se processasse no nosso país a participação na campanha destes porta-vozes europeus de dois projectos diferentes. Uma solução de compromisso da lista poderia ser colocar Portugal fora do roteiro da campanha eleitoral dos partidos europeus, o que seria uma opção um bocado tacanha e provinciana, num momento em que os problemas que enfrentamos mais exigem respostas com uma perspectiva política e um âmbito claramente europeus. Essa interdição do território nacional à campanha europeia seria vista, muito provavelmente, com bastante estranheza pelos Verdes europeus e também, isso posso afirmar, pela Esquerda Europeia.
Terceira razão: os projectos europeus
Obviamente que os diferentes grupos parlamentares europeus, e sobretudo os diferentes partidos europeus e os diferentes porta-vozes para a campanha europeia, são apenas expressões institucionais de projectos políticos diferentes e de diferentes respostas para os problemas que a Europa enfrenta. E essa é a diferença que realmente conta neste caso.
Não podemos neste pequeno texto detalhar as diferenças entre a linha política e as propostas dos Verdes e da Esquerda Europeia, que são aliás conhecidas. Mas importa questionar como poderia essa diferença de projectos europeus reflectir-se na campanha da tal coligação? Ou através de uma forte dissonância, com os candidatos a fazerem discursos e apresentarem propostas contraditórias, o que poderia tornar a sua mensagem completamente incompreensível para quem os ouvisse, ou então através do silenciamento das diferenças, com discursos que fossem meras repetições de generalidades ou superficialidades, sem ir ao âmago dos problemas e das soluções propostas, o que tornaria a campanha numa inutilidade para o tão necessário e difícil esclarecimento da população sobre os assuntos europeus e sobre o que está verdadeiramente em causa neste momento crucial que atravessamos.
As coligações fazem-se sempre entre entidades diferentes, é um facto
[4]. Mas convém que tenham um mínimo de coerência e comunhão de objectivos para poderem ser politicamente úteis e não serem vistas como um mero negócio de conveniência para conquista de lugares.
[1] Embora isso já tenha acontecido num ou outro país, em circunstâncias muito específicas.
[2] Já muito foi dito sobre a mudança política assumida pelo Rui Tavares ao optar, a meio do mandato, por se passar para o grupo dos Verdes, saindo do GUE/NGL para onde se tinha comprometido ir antes e durante a campanha eleitoral de 2009. E não foi por este grupo ter mudado de política, já que o GUE/NGL não mudou em nada ao longo da legislatura (pelo contrário, uma das críticas que pode ser feita a este grupo parlamentar é de nunca mudar nada, mesmo aquilo em que talvez se justificassem umas mudançazitas...). Também não foi por qualquer limitação à sua liberdade, que o GUE/NGL é um grupo confederal sem disciplina de voto, onde reina total liberdade, os seus deputados podem dizer e fazer o que quiserem, votar como quiserem, acontecendo por vezes que, sobre o mesmo assunto, há votos a favor, contra e abstenção, sem que daí resulte qualquer problema interno. Nem o grupo mudou, nem o deputado foi constrangido a qualquer atitude política que lhe pudesse causar desconforto.
É de referir que, pela mesma altura em que o Rui saiu do grupo, uma sua colega eurodeputada holandesa saiu do seu partido nacional - não era independente -, mas manteve-se (até hoje) sem qualquer problema dentro do GUE/NGL, ao lado do outro deputado do seu partido.
[3] A figura escolhida, Alexis Tsipras, não cria com certeza qualquer problema de aceitação para os membros do 3D, da Renovação e outros independentes de esquerda.
[4] E, já agora, entre entidades que queiram coligar-se. Não me lembro de ter visto da parte do Livre nenhuma declaração de vontade de fazer uma coligação a dois com o Bloco (talvez por algumas das razões que atrás se referiram) e vice-versa.