Existe hoje um comovente consenso
nacional contra a aplicação de sanções a Portugal por défice excessivo. Ao que
parece, todos estão de acordo em considerar que as sanções são injustas e
contraproducentes, todos estão de acordo em pronunciar-se firmemente contra
aqueles burocratas sem rosto nem coração que nos querem aplicar cegamente as
regras europeias.
Tanto consenso parece resultar de um
simples e evidente bom senso sobre a matéria e seria certamente de saudar. Mas acontece
que não é de facto saudável, pela simples razão de que se baseia numa grande
dose de ocultação, merecendo dos cidadãos e dos media um olhar um pouco mais
atento.
Porque, para que possa ser
equacionada pela Comissão Europeia a hipótese de quaisquer sanções virem a ser
aplicadas, foi necessário que elas estivessem previstas nos Tratados e que
existisse um Regulamento que definisse em pormenor as condições e os mecanismos
da sua aplicação.
Ora,
Tratados e Regulamentos não são aprovados por burocratas sem rosto. Os seus autores
e os responsáveis pela sua aprovação, têm rosto e têm nome: são os comissários
que fazem a proposta inicial (e o presidente deles era um português,
ex-presidente do PSD e ex-primeiro-ministro), são os deputados europeus, que
decidem no Parlamento, e são os governantes dos nossos países, que decidem no Conselho. Foram eles
que criaram e aprovaram as sanções, foram eles que definiram as condições e as regras
da sua aplicação. E também os seus objectivos, entre os quais a própria
credibilidade do sistema: “Há que impor sanções adicionais para que o exercício da supervisão orçamental
na área do euro seja mais eficaz. Tais sanções deverão aumentar a credibilidade
do quadro de supervisão orçamental da União.”[1]
Daí que seja inevitável sentir no ar
uma dose substancial de hipocrisia quando se vê as mesmas pessoas que aprovaram
tudo isto colarem-se agora ao popular e habitual sobressalto patriótico contra
os funcionários sem rosto que impõem medidas (sejam sobre sanções, sejam sobre
o que fazer com os bancos) a países soberanos por cima dos seus órgãos
democraticamente eleitos.
Não porque não seja verdade que esses
funcionários o fazem, não porque não seja inaceitável que o façam. Mas porque isso pode ser entendido como uma
forma de absolvição ou, pelo menos, uma tentativa de encobrimento daqueles que
são os principais responsáveis por que isso possa acontecer, que são os que
definiram as regras, aprovaram os Tratados e os Regulamentos ao abrigo dos
quais esses tais burocratas sem rosto podem exercer a sua tão criticada actividade.
E esses principais responsáveis são políticos eleitos pelo povo, são gente bem conhecida
de todos nós.
E a esses, a quem verdadeiramente
define as leis, as regras e o funcionamento contra que hoje tantos protestam
(com razão), a esses dá-lhes imenso jeito que as críticas se concentrem nos
funcionários sem rosto da Comissão ou do BCE.
Aliás, ter quem faça esse papel de
bode expiatório a partir de um posto inamovível pelo voto popular, é um dos
truques habituais dos políticos eleitos que querem impor medidas antipopulares
sem serem penalizados eleitoralmente pelas suas próprias decisões.
Se
hoje Portugal enfrenta a possibilidade de ser alvo de sanções e de multas, que
todos parecem considerar estúpidas e prejudiciais, é porque há um Regulamento
do Parlamento e do Conselho onde essas multas e sanções foram estabelecidas, é
porque os deputados europeus (deputados portugueses incluídos) e os governantes
europeus (governantes portugueses incluídos) decidiram no Parlamento e no Conselho
que essas sanções devem existir, como e porquê devem ser aplicadas a países
como o nosso.
Não se
pode deixar esquecer o facto de que muitos eurodeputados portugueses do PSD, do
CDS e do PS (o chamado “arco europeu”, agora que o “arco da governação” foi
para o caixote do lixo da história) votaram a favor das sanções, vários se
empenharam activamente na redacção dos textos legais que as criaram e definiram
em pormenor, tantos defenderam em intervenções e textos escritos as virtudes
correctivas e disciplinadoras das sanções e das multas, houve mesmo textos
assinados por políticos portugueses saudando a criação das sanções. E não se
pode também esquecer que o governo português de então votou a favor no
Conselho.
Ora, votar e falar lá fora a favor das
sanções e defender cá dentro que a nós não se devem aplicar, é uma atitude de
seguidismo para estrangeiro ver, tomada lá; populismo para português votar,
tomada cá; falta de coerência e de dignidade, lá e cá. É que ninguém ouviu ainda – tanto quanto me apercebi – uma palavra de arrependimento àqueles que votaram
em Bruxelas e em Estrasburgo a favor de que os países possam ser sancionados
com 0,2% do seu PIB e possam perder acesso aos fundos europeus.
Estes são os mesmos que aprovaram também o reforço do PEC, tornando mais
automática a imposição destas sanções, para tentar atenuar e disfarçar a carga
de responsabilidade política de quem as viesse a decidir em cada caso concreto.
As sanções punem o défice
excessivo?
Durão Barroso, o presidente da Comissão Europeia que tomou a iniciativa
de propor o actual regime de sanções, pelo facto de estar hoje fora da disputa
política partidária em Portugal, pode dar-se ao luxo de ser mais claro e mais sincero
do que os seus correligionários do PSD ou do CDS sobre esta matéria.
Por isso afirmou esta semana, de forma cristalina e esclarecedora: “Em
relação às sanções, depende muito do que o Governo português agora disser e
fizer. Penso que o mais importante para os parceiros europeus é averiguar até
que ponto é que Portugal está verdadeiramente decidido a manter as reformas
estruturais e a manter prudência orçamental”
Quem achava que as sanções dependiam e puniam os números do défice de
2015 do governo PSD/CDS, fica a saber que as sanções afinal dependem e punem o
que o governo do PS de 2016 disser e fizer. São sanções ao que o actual governo
diz, ao que o actual governo faz, à sua decisão de “manter as reformas
estruturais” contra as quais definiu o programa com que foi eleito. E devemos
tomar em devida conta esta opinião, porque Barroso conhece melhor do que
qualquer um de nós o verdadeiro funcionamento da União Europeia.
Isto pode ser um alerta para aqueles que achavam, com alívio, que, como todos
prevêem que o nosso défice fique abaixo dos 3% em 2016, estaríamos a partir de
agora finalmente livres de sanções. Não é verdade. As sanções são políticas,
como bem explicou Barroso e como os eurodeputados e os governantes que redigiram
o Regulamento que estabelece o regime de sanções já tinham plasmado no texto
legislativo:
“Estas sanções deverão ser aplicadas sempre
que um Estado-Membro, mesmo apresentando
um défice inferior ao valor de referência de 3% do Produto Interno Bruto (PIB),
se desvie significativamente do objectivo orçamental de médio prazo ou da
trajectória adequada de ajustamento a esse objectivo e não corrija o desvio.”[2]
Mesmo com um défice abaixo dos 3%, não estaremos totalmente livres de
qualquer acção de retaliação sobre o nosso país, se a “trajectória de
ajustamento” – como eles dizem – for considerada “não adequada”, e eles é que
decidem se é adequada ou não.
Se for o caso, sanções podem vir a ser propostas pela Comissão, podem
vir a ser aprovadas pelo Eurogrupo e pelo Conselho e, convém lembrar, Portugal
não terá qualquer direito de voto nessa decisão – porque também isso foi
aprovado pelos nossos eurodeputados e pelos nossos governantes de então.
Conviria que o povo estivesse um bocadinho mais atento quando elege os
seus representantes e, já agora, que estivesse bastante mais atento ao que eles
fazem e aprovam depois de eleitos.
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