Memorandum of non-understanding













No momento em que vos escrevo, os documentos mais importantes da política portuguesa dos últimos e dos próximos anos não estão disponíveis no site do governo, não foram publicados pelo Estado e não há versão oficial em português. Violam-se assim dois princípios fundamentais da UE: a transparência e o respeito pelas línguas nacionais, que obriga a que todos os documentos oficiais sejam publicados nas línguas dos cidadãos afectados.



Publicado em: O Gaiense, 21 de Maio de 2011














Isto diz tanto sobre os documentos das troikas como o seu próprio conteúdo. Tendo em conta que poderá vir a ser este o verdadeiro programa de governo, eis-nos chegados ao nível mais baixo de democracia política: governados de forma colonial por quem não se dá sequer ao trabalho de traduzir as ordens para que as possamos entender.
Não é a primeira vez que isto nos acontece. Há pouco mais de vinte séculos, os romanos entraram por aqui dentro a dar ordens em latim, reorganizaram o território, construíram pontes e estradas, exploraram as nossas riquezas e o nosso trabalho, levaram o ouro e tudo o mais que lhes interessou. Há quem diga que o balanço não foi negativo. Mas quem hoje lembramos como nossos heróis não são os imperadores romanos ou os seus servidores locais, cujos nomes se esfumaram sem glória; de quem nos orgulhamos é do Viriato e dos seus homens, que resistiram com coragem, que várias as vezes os venceram, ajudando a forjar o que viria a ser o espírito português.
Será que as populações que hoje habitam este velho território são dignas dessa memória ou são apenas herdeiras daqueles que, naquele tempo, se submeteram passivamente (com pragmático realismo) à nova realidade imperial romana, obedecendo a ordens que nem sequer conseguiam compreender?





Com amigos destes...


Publicado em: O Gaiense, 14 de Maio de 2011


O Comissário Olli Rehn disse-nos em Estrasburgo que os 52 mil milhões que a UE vai colocar em Portugal estarão sujeitos a um juro entre 5,5 e 6%. É o preço da ajuda, e é para amigos.
Sugiro ao leitor que tente ver quanto lhe pode render uma aplicação num qualquer banco, em prazos semelhantes aos do empréstimo a Portugal. E que o faça sem qualquer espírito de ajuda ao banco, que não é certamente seu amigo. Consulte, negoceie duramente, tente obter a melhor Taxa Anual Efectiva Líquida. Estou certo de que ninguém lhe paga pelo seu dinheiro tanto quanto o nosso país irá pagar por esta "ajuda" – na verdade um negócio leonino que nos deixa ainda mais endividados, já que a nossa economia não aguenta juros destes.
Mas, pagarmos à UE uma taxa mais alta do que ao FMI, não tem apenas um efeito lesivo da nossa economia. Constitui, em termos simbólicos, o mais profundo golpe na credibilidade da UE junto do povo português. Durante muitos anos, não vai haver acção de marketing e comunicação que consiga apagar da nossa memória colectiva esta impressão de que a UE é pior do que o FMI. O FMI tem a fama mundial que todos conhecem. Colocar-se abaixo do FMI no coração de um povo é um feito memorável, só possível numa União Europeia que de europeia tem cada vez menos e união é coisa que, neste momento, absolutamente não é.
Depois de a França ter posto em causa o acordo de Schengen na sua fronteira com a Itália, vem agora a Dinamarca anunciar a decisão de restabelecer os controlos permanentes nas suas fronteiras, violando a liberdade de circulação que os europeus tanto apreciam.
A direita conservadora e liberal que governa a UE está a destruir o projecto europeu.

Um país sem governo





Publicado em: O Gaiense, 7 de Maio de 2011

Estou a começar a habituar-me a viver sem governo, ou com um mero governo de gestão. E, confesso-vos, ainda não notei que seja um problema. É claro que não estou a falar de Portugal, onde os governos, de gestão ou não, costumam ser sempre um problema. Falo da Bélgica. Aqui, o governo demitiu-se a 22 de Abril de 2010, há mais de um ano, e até hoje continua em gestão corrente. Essa proeza já permitiu ao país entrar no livro de recordes do Guiness.

Das eleições que se seguiram à demissão, em Junho de 2010, resultou um Parlamento federal que nunca conseguiu chegar a um entendimento para formar governo. As negociações devem estar a continuar, mas na comunicação social, após meses de notícias diárias e debates intensos entre os partidos negociantes, já quase nem se fala no assunto. Os jornalistas cansaram-se, o público também.

A Bélgica federal está, assim, paralisada. Mas a Bélgica é um país muito descentralizado, tem cinco Parlamentos e governos regionais ou comunitários que decidem sobre muitas das matérias económicas, de emprego, educação, transportes, habitação ou agricultura. Com uma real contratação colectiva e sindicatos fortes, muitas matérias de protecção social estão mais ou menos cobertas.

Na Bélgica, o FMI e a UE desesperam porque não há um governo que faça as chamadas "reformas estruturais" no mercado de trabalho, nas reformas ou nos impostos. E muitos belgas dizem: bendita crise política, que nos está a poupar ao pior.

O “arco do FMI” e o “arco da nova governação”

Uma proposta de estratégia para a esquerda nas eleições de 2011

Renato Soeiro





SUMÁRIO:
1. O “arco do FMI”
2. Opções de construção do arco alternativo
3. Um projecto de governo
4. Um candidato a primeiro-ministro
5. Uma campanha diferente
6. Uma proposta para vencer?

Muita gente tem manifestado o sentimento de que está a faltar algo à esquerda portuguesa nestas eleições. 
Num momento em que se prepara o que empolgados comentadores neoliberais têm considerado uma verdadeira mudança de regime, numa situação política absolutamente nova, em que o programa detalhado do próximo governo (e até da Assembleia da República) foi apresentado ao povo por três técnicos estrangeiros, um mês antes das eleições, a esquerda não pode fazer uma campanha normal, uma campanha do mesmo tipo das anteriores, de crítica e protesto, de resistência e de apresentação de medidas alternativas. A gravidade do momento exige algo mais. 
Aqui fica uma proposta.



1. O “arco do FMI”


A presente situação política poderá fazer nascer uma nova forma de bipolarização no nosso país. Não terá, contudo, a geometria política que caracterizou as fracassadas tentativas anteriores de fazer do PS e do PSD os centros de dois pólos em confronto.

A troika FMI-BCE-CE, ao submeter a troika PS-PSD-PP ao ditame de um programa único, está a construir (os mais atentos dirão: a consolidar) um pólo político que será suficientemente claro nos seus objectivos e fronteiras externas, e suficientemente difuso nas suas fronteiras ideológicas internas, para poder constituir um dos campos desta nova bipolarização: o “arco do FMI”. Os apelos de subscritores de manifestos pró-memorando e os inúmeros comentários e artigos que inundam a nossa comunicação social com a tese da inevitabilidade da solução apresentada, funcionam como o agregador ideológico da hesitante base popular de apoio desta força.

2. Opções de construção do arco alternativo

A reacção útil dos que não se revêm neste pólo, neste “arco do FMI”, será caminhar para a constituição de um arco alternativo do outro lado da bipolarização. As suas características podem vir a ser definidas em vários registos possíveis: i) como um arco de resistência e luta; ii) como um arco de oposição; ou iii) como um arco de governação. Qualquer uma destas hipóteses permite responder de alguma forma à situação, mas a escolha do registo não é de modo nenhum indiferente.

A resistência e a luta são absolutamente essenciais, e na situação que se avizinha sê-lo-ão ainda mais. Esse é e continuará a ser um registo permanente da esquerda, uma sua marca identitária, mas não é uma resposta qualitativamente nova a uma situação qualitativamente nova, razão pela qual não produz, neste momento excepcional, um efeito de atracção suficientemente mobilizador para permitir construir um arco popular de largo espectro que se oponha eficazmente ao “arco do FMI”.

Este pólo poderia também ser apresentado como um arco de oposição. Oposição tem havido sempre, mas nunca se apresentou aos olhos dos portugueses como um arco consolidado; essa poderia, portanto, ser uma novidade que poderia desempenhar algum papel no novo Portugal bipolar. Mas, explicar ao povo que queremos ser oposição, e uma oposição forte, não parece ser um registo capaz de entusiasmar os mais hesitantes, mesmo aqueles que acham fundamental que não deixe de existir uma voz clara de oposição à esquerda no Parlamento. Porquê? Porque não é fácil explicar qual é a diferença entre haver trinta deputados a fazerem esse papel ou apenas dez ou vinte. Nós sabemos que há uma diferença mas, nestas eleições, em que a existência da esquerda parlamentar parece não estar em risco, muitos daqueles que apreciam o papel do Bloco e da CDU podem decidir votar por outras paragens onde entendam que o seu voto pode decidir algo, por pouco satisfatório e entusiasmente que eles próprios considerem o resultado dessa decisão.

3. Um projecto de governo

Face a este cenário, em que resistência e oposição parecem não ser por si registos com força suficiente, o arco alternativo ao “arco do FMI” deveria apresentar-se como um arco de governo. O ano de 2011 está a ser, sem dúvida, um ano de viragem histórica no nosso país. E é já como reflexo dessa viragem, como resposta a essa viragem, que as forças da esquerda estão a colocar uma ênfase inabitual na questão do governo, nas suas propostas políticas concretas ao nível de programas de governo.

Esta é a boa opção, mas tem um problema. Todos entendem que, para ser oposição, basta às forças de esquerda atacar juntas, podendo caminhar separadas. Para ser governo será preciso algo mais. A apresentação de alternativas políticas, de propostas concretas, mesmo de programas de governo, tudo isso é importante e, nestas eleições, mesmo fundamental. Mas a comunicação de massas de que vive uma campanha eleitoral não se alimenta só disso.

Para que as propostas da esquerda sejam credíveis, para além programas de governo, terá de haver um projecto de governo, que é uma coisa diferente. E tem que ser um projecto que se compreenda facilmente. Que uns apoiarão, outros não, mas que todos possam compreender de forma imediata, sem dificuldade. Que seja um projecto credível mesmo para aqueles que, nesta fase, decidam não apostar nele.

E um projecto de governo não é credível e sobretudo não é facilmente comunicável ao povo menos politizado, se não tiver um candidato a primeiro-ministro.

4. Um candidato a primeiro-ministro

Se a esquerda conseguir apresentar um candidato a primeiro-ministro, altera profundamente os dados da situação. Elimina de imediato a fortíssima contra-propaganda que afirma que a esquerda se recusa a governar e que é inútil em termos de alternativa. Provoca uma revolução no tom desta campanha, obrigando os media e as empresas de sondagens a começarem a discutir três hipóteses para primeiro-ministro e não apenas duas.

Haverá ainda tempo para fazer isto? Claro que sim. Como se compreenderá com o que fica exposto a seguir, não são precisos muitos dias para lançar a proposta e colocá-la na ordem do dia.
O nome a apresentar tem é de ser decidido com critérios bem precisos. Tem de ser o de uma pessoa credível para o cargo. E tem de ser uma pessoa que não precise de ser apresentada e explicada à população (até porque não há tempo para isso), uma pessoa que todos já conheçam, que respeitem, que saibam bem o que pensa e ao que vem.

Para além disso, tem de ser uma pessoa com um perfil tão amplo como o arco político que tem que representar, arco esse que, por sua vez, tem de ser pelo menos tão amplo como aquele a que se opõe; o “arco do FMI” é constituído pelos três partidos que apoiam a troika, mas vai muito mais além: engloba os banqueiros, as diversas associações patronais, os comentadores e fazedores de opinião, várias forças da sociedade civil, etc. Também o nosso “arco da nova governação” terá de incluir, para além dos partidos parlamentares e não parlamentares que o apoiem, os sindicatos, os movimentos de precários, académicos e investigadores, movimentos sociais diversos, associações profissionais e sectoriais e todas as classes que serão vítimas das medidas do memorando.

Um candidato a primeiro-ministro com estas características não deve, pois, ser candidato a deputado por nenhum dos partidos da esquerda, mas tem que ser alguém em que todos esses partidos se possam rever, que aceitem como capaz de personalizar um projecto de governo. E deve ser alguém com facilidade de aceitação pelo povo e pelo mundo não partidário, dos sindicatos aos manifestantes do 12 de Março, dos reformados aos jovens movimentos sociais, dos intelectuais de esquerda às donas de casa.

Apresentado que seja o nome do candidato a primeiro-ministro do “arco da nova governação”, ninguém duvida de que este seria imediatamente assaltado pela comunicação social, ávida de compreender e reportar a insólita novidade na política portuguesa: pela primeira vez, a esquerda concorrendo verdadeiramente ao governo do país.

Não há qualquer necessidade de que o candidato se envolva na campanha. Bastar-lhe-á, nesse primeiro assalto mediático, declarar qualquer coisa como “este é o tempo dos partidos e da eleição de deputados e eu não sou candidato a deputado” mas que, “se depois de 5 de Junho, houver deputados eleitos em número suficiente que confirmem esse convite, seguramente que não poderei virar a cara ao país num momento tão difícil”. E não é necessário que diga mais nada até ao dia das eleições.

5. Uma campanha diferente

Isto permitirá que os partidos de esquerda façam as suas campanhas, cada qual a sua, com os seus candidatos e com as suas propostas próprias, mas todos tendo em comum a declaração de compromisso de que os seus eleitos apoiarão o convite a uma mesma pessoa para a formação do governo.

Não é necessário nenhum programa comum da esquerda, nem uma plataforma eleitoral e muito menos uma coligação, propostas irrealistas que, além do mais, se poderiam revelar de duvidosa eficácia eleitoral: o todo seria certamente menor do que a soma das partes.

Outro aspecto importante é que esta candidatura a primeiro-ministro, por ser externa às listas de candidatos, teria a vantagem de, por si, não interferir na relação de forças na campanha favorecendo mais um ou outro partido da base de apoio, em detrimento do(s) restante(s); pode, pelo contrário, potenciar as campanhas de todos.

Isto permitiria também que partidos que hoje não têm representação parlamentar pudessem assumir, de forma autónoma e independente, este compromisso comum da esquerda, sem necessitarem de promover improváveis acordos ou concertações com os demais. É uma proposta de adesão livre, que simplifica a vida a toda a gente.

O efeito de entusiasmo que este tipo de campanha poderia desencadear é difícil de prever. Mas não é de excluir a hipótese de que mesmo entidades não partidárias (sindicatos, associações, movimentos) e personalidades individuais possam vir a expressar activamente um apelo ao voto neste projecto, porque para tal não precisariam de se comprometer com nenhum partido em concreto, mantendo a isenção partidária que corresponde ao seu estatuto, mas sem se atarem numa isenção política  imprópria de um momento tão difícil e exigente para os portugueses, em que a mobilização geral é imperativa.

Não podemos ignorar também que, num momento em que o PS subscreve o programa de governo da troika com o PSD e o PP, esta proposta poderia ter um razoável efeito de atracção e encorajamento junto de muitos apoiantes e eleitores socialistas que, apesar do desconforto que porventura sentem com a posição do seu partido, não descolam do apoio ao governo por não sentirem confiança suficiente nas alternativas existentes.

Chegados aqui, cabe perguntar: será que existe em Portugal uma pessoa com o perfil adequado, que corresponda às múltiplas e exigentes características acima descritas? Existe, todos sabemos que sim. Aí reside também a força e a oportunidade desta proposta.

6. Uma proposta para vencer?

Quanto aos resultados desta proposta em 5 de Junho, o povo é soberano e decidirá. Mas é claro para todos que os números conhecidos das sondagens (apesar de podermos prever que iríamos conseguir alterar significativamente estes dados) sugerem com razoável certeza que ainda não será desta que o povo vai confiar à esquerda a tarefa de governar. Alimentar ilusões irrealistas não favorece a consolidação de uma estratégia sólida e de longo prazo que a esquerda não pode dispensar.

Mas, para que um dia a esquerda possa ganhar a confiança do povo para governar, é normal que tenha de passar antes por algumas derrotas. Falta à esquerda elevar-se ao nível dessas derrotas. Isto significa o quê? Significa, por exemplo, que na noite eleitoral, seria mais útil a esquerda declarar-se derrotada por não ter obtido os votos suficientes para governar, do que declarar-se vitoriosa se obtiver uma boa força de oposição. Porque tornaria mais claro que o objectivo da esquerda é governar e não fazer oposição, percepção que muitos eleitores têm há muito interiorizado e que é preciso mudar.

Com isto eleva-se a fasquia, é certo, mas consolida-se junto do povo a ideia de que a esquerda está a preparar-se realmente para construir no país um governo alternativo ao “arco do FMI” e às suas políticas. E esta ideia será certamente fundamental no alinhamento de forças nos tempos difíceis que se seguirão às eleições de Junho.