Agora, que o incêndio das redes sociais parece estar na fase
de rescaldo (deixando, porém, muita terra queimada) e que a polémica está a
esgotar-se, já me parece poder escrever uma nota a frio a propósito da
discussão causada por esta imagem publicada pelo Bloco.
“Uma afronta aos crentes” e “falta de respeito mútuo”, nas
palavras do porta-voz da Conferência Episcopal Manuel Barbosa, “uma ofensa
gratuita”, nas palavras de Pedro Mota Soares do CDS, “lamentável desrespeito
pelas crenças religiosas e pelos muitos milhares de portuguesas que professam
essas crenças”, disse o deputado do PSD Fernando Negrão, “campanha contra a
Igreja católica, as demais confissões cristãs e, em geral, a liberdade religiosa”,
dirá depois o padre Gonçalo Portocarrero. Estas são algumas das imensas tomadas
de posição crítica radical contra a imagem do Bloco.
O problema da
liberdade de expressão
Excedeu-se ou não os limites da liberdade de expressão? Será
que se trata de um problema de liberdade de expressão, que deve ser total e
resolutamente defendida?
Por exemplo, quantos dos que por cá têm afirmado
convictamente “je suis Charlie”
defenderiam concretamente a liberdade de publicação de uma imagem como esta
capa do Charlie Hebdo, precisamente a propósito do mesmo assunto que está na
base do cartaz português?
Será talvez uma imagem brutal, de mau gosto, ofensiva, sem
sentido, mas defender a liberdade é aceitar também a liberdade de expressão
brutal, de mau gosto, ofensiva e sem sentido.
A imagem do Bloco, sendo muito menos ofensiva, não seria
portanto questionável neste âmbito. O problema é que não é no campo da
liberdade de expressão que ela deve ser analisada.
Uma polémica
intra-religiosa
Todos sabem, e muitos explicitamente reconheceram nos seus
textos críticos, que esta não foi uma mensagem original do Bloco, mas apenas a
tradução de um slogan já publicado por movimentos cristãos pelo direito de
adopção noutros países.
Esta mesma imagem do Bloco, se tivesse sido publicada por
qualquer grupo religioso ou até por qualquer associação cívica de defesa dos
direitos de adopção não teria trazido qualquer problema de fundo que justificasse
tanta discussão pública, nem deveria ser questionada por quem defenda a
liberdade de expressão. Nesse contexto, de uma disputa interna da igreja, ou de
movimentos cristãos na disputa pela opinião pública cristã, o slogan poderia
até fazer algum sentido.
(Penso que justificaria, mesmo assim, alguma crítica, mas
noutro âmbito completamente diferente porque, na acepção mais corrente, ser pai é ser o progenitor masculino, assim
como ser mãe é ser a progenitora
feminina; ora considerar Deus, “ser supremo criador do céu e da terra, de tudo
e de todos”, como pai de Jesus e não
como mãe de Jesus seria
absolutamente redutor, impróprio de um ser completo; dizer que é pai é uma expressão tributária do
secular conceito de absoluta superioridade masculina que tem caracterizado
várias religiões ao longo dos séculos. Um conceito e uma terminologia imprópria,
portanto, para uma organização que assuma a luta contra estes ancestrais
estereótipos de desigualdade e de superioridade do pai sobre a mãe, como parece ser apanágio dos que
lutaram pelo direito de adopção. Até por isso, a ideia que subjaz a este cartaz
pode ser um erro, mas essa seria toda uma outra discussão que interessa pouco
para o caso em apreço.)
Nem oportuno, nem
eficaz
A oportunidade do cartaz é questionável, sem dúvida, e foi
justamente questionada, porque tardio relativamente aos acontecimentos a que se
refere; a sua eficácia, mais do que nula, foi negativa, isso também é hoje um
dado adquirido. Sobretudo se atendermos a que esta foi uma vitória do campo
progressista (em que o Bloco se insere) e que esta importante vitória tinha
ocorrido com relativa tranquilidade, sem que a nossa sociedade se visse
envolvida num estado de guerra ideológica em resposta à aprovação da lei.
Em política, como na vida, é importante saber perder com
dignidade, mas mais importante, talvez, é saber ganhar com dignidade. Esta
mensagem podia sempre ser vista como revanchismo de ganhadores e, também por
isso, seria sempre um erro.
Além de que fragilizou o argumento justo de que esta não era
uma matéria religiosa, mas sim de direitos civis, e veio reforçar o arsenal
comunicacional das posições contrárias mais fundamentalistas e retrógradas.
Mas nenhum destes argumentos, por mais válido que seja, me
parece tocar aquele que é verdadeiramente o cerne do problema levantado por
esta imagem.
Em que campo deve ser
fundamentalmente questionada a imagem?
O problema de fundo desta imagem, esse sim mais grave do que
todos os outros, é a presença simultânea da imagem do Cristo e do símbolo do
Bloco. Porque essa convivência de símbolos, se seria absolutamente natural e
incriticável na lapela de qualquer dos milhares de bloquistas cristãos, posta
num cartaz ou numa imagem oficial do partido viola um princípio político e
constitucional português da máxima importância, que não foi fácil de adquirir.
E que nem sequer é ainda consensual na Europa, muito menos no mundo.
Diz a nossa Constituição, no artigo 51.º (Associações e
partidos políticos), que “os partidos políticos não podem, sem prejuízo da
filosofia ou ideologia inspiradora do seu programa, usar denominação que
contenha expressões directamente relacionadas com quaisquer religiões ou
igrejas, bem como emblemas confundíveis com símbolos nacionais ou religiosos.”
Por exemplo, o partido de
Angela Merkel, a CDU - Christlich-Demokratische Union (União Democrata-Cristã),
não seria legal em Portugal com esta designação, nem muitos outros partidos membros
do Partido Popular Europeu a que pertencem o PSD e o CDS. Bem como, por
exemplo, os vários partidos da Irmandade Muçulmana, que lutam para estabelecer
a sharia (leis do islamismo) como base para governos. Tudo isso a nossa
Constituição proíbe e muito bem.
A absoluta laicidade da
actividade partidária em Portugal foi uma dura conquista da democracia e uma
sábia decisão dos nossos constituintes. Tomada numa altura em que Portugal
ainda vivia num ambiente conturbado, em que algumas forças da direita radical
tentavam mobilizar contra a revolução de Abril as populações rurais (e não só) a
partir de prédicas inflamadas nas missas dominicais feitas por alguns padres
saudosos do antigo regime.
Foi uma conquista importante,
mas todos sabemos quão frágeis são, frequentemente, as aquisições da
democracia. Nada pode ser dado como adquirido ao ponto de não nos preocuparmos
mais com o assunto.
É um facto que hoje muita
coisa mudou relativamente às prédicas religiosas dos tempos do fascismo ou do
PREC. Nas igrejas, ao domingo, há votantes que vão do Bloco ao CDS, são crentes
com simpatias partidárias muito diferentes, que convivem com pacífica naturalidade
e todos certamente se sentiriam desconfortáveis se o “seu” padre se dedicasse a
fazer a apologia ou o ataque ao “seu” partido durante a missa.
Mas até nisso esta campanha
pode ter interferido negativamente porque, se num destes próximos domingos alguns
padres se dedicarem a atacar o Bloco a propósito desta mensagem, haverá
possivelmente muitos crentes que acharão que ele está apenas a usar um legítimo
direito de resposta de quem sentiu a sua igreja ofendida na praça pública.
Este cartaz seria sempre um erro profundo
O erro fundamental deste
cartaz não é, pois, a sua mensagem concreta, apesar de tudo o que ela tem de
inoportuno, ineficaz e questionável, como atrás se sublinhou.
Para que se compreenda melhor
o que se pretende dizer, perguntemo-nos o que diria a nossa opinião pública – e
o Bloco em particular – se tivesse sido publicado um cartaz como este:
Penso que cairia o Carmo e a
Trindade. E com toda a razão.
E isto, note-se,
independentemente de qual fosse o slogan escolhido – que não se concretiza aqui
para sublinhar que o problema não está sequer no que se diz (o que poderia até
agravar a situação) –, mas sim na associação da imagem do Cristo ao símbolo de
um partido.
Acontece que este hipotético cartaz
tem exactamente a mesma estrutura que a imagem publicada pelo Bloco. O problema
é exactamente o mesmo.
Creio, portanto, que o erro
seria (no mínimo) o mesmo, para qualquer cartaz que o Bloco fizesse com esta
imagem:
pelo que o problema não reside, de modo algum, nem no slogan,
nem no conteúdo da mensagem. É muito mais fundo e mais sério do que isso.
Penso que é isto que seria importante entender para que se
possam evitar situações semelhantes. Erros todos cometem, excepto quem não faz
nada. Mas se considerarmos que o problema foi apenas que a imagem não passou,
não fechamos a porta a erros futuros neste campo tão delicado. Ajudar a
evitá-los é o único objectivo deste texto.
Nota final
Esta imagem continua hoje (2016-03-03) a figurar nas páginas
públicas do Bloco. Ora, seria compreensível esta atitude de não ceder às
pressões da “censura” se se considerasse que se trata de algo aceitável, que apenas não
funcionou bem ou foi mal entendido pelo público. Contrariamente, reconhecer que o erro está onde
verdadeiramente está e que ele é um erro sério e de fundo, aconselharia à sua retirada
pura e simples. Com isso não se apagará o erro, a imagem continuará a circular
na rede e durante muito tempo o Bloco será atacado por causa dela, mas
reconhecer-se-ia que tal imagem não pode figurar nos sites oficiais do partido
porque violou princípios básicos de que ninguém quer abdicar.
7 comentários:
Muito Obrigada Renato !!!!!!!!!!! Esta é a mais lúcida e esclarecedora reflexão que até hoje li sobre este assunto !!!Mais uma vez muito,muito OBRIGADA !!!!!!! Beijo
Parabéns pelo texto,Renato. Subscrevo.
O problema do cartaz do Bloco não é nem a imagem nem a frase. É o que dele se depreende. Por isso o tiro nos pés deve ter doído muito, ao Bloco. Eu sou favorável a total liberdade de expressão, e repudiei o cartaz. Mas quem sou eu...
Absolutamente de acordo.
Absolutamente de acordo.
Muito, muito bom!
Concordo em absoluto, Renato, pena que esta lucidez não se acerque de alguns dirigentes do Bloco......e não ajam em conformidade....
Um abraço
FRancisco
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