ALGUMAS MEMÓRIAS E A HISTÓRIA DE UM RETRATO
Neste ano de 2022, comemora-se o centenário do nascimento do mestre Isolino Vaz, artista plástico com uma obra muito diversificada e altamente qualificada que, pela sua vastidão, se encontra dispersa pelo país e não só.
Foi com imenso agrado que tive conhecimento de que a família e algumas instituições a que esteve ligado estão a preparar um programa de eventos comemorativos.
É com todo o gosto e alguma emoção que tento contribuir para essa justa homenagem, registando aqui algumas memórias pessoais, já um pouco desfocadas pela neblina de meio século de distância.
No início da década de 60, em Vila Nova de Gaia, na antiga quinta do Cabo Mor, junto ao Jardim Soares dos Reis, tomava forma um pequeno loteamento em frente à Escola Industrial e Comercial de Gaia (hoje Escola Secundária António Sérgio). É um pequeno “rectângulo” com três ruas e trinta vivendas. Aí construiu a família Vaz a sua casa, na rua do meio, a rua Tristão Vaz. Na minha opinião, era a mais bonita, a mais encantadora das trinta, cheia de obras de arte, que me encantava sempre que lá ia e o meu olhar se perdia a descobrir todos os pormenores.
Aquele era o nosso bairro, onde se gerou um certo sentido de comunidade, criado e consolidado pelos mais novos, com mais facilidade de se relacionarem pelas brincadeiras, pelos jogos, pelos namoros, por crescerem e evoluírem juntos naquela idade onde se descobrem tantas coisas novas. Tão forte era esse sentido de comunidade que ganhou forma numa associação: a AJCM, Associação da Juventude de Cabo Mor, com logotipo e crachat e tudo, associação em que participavam o Mário e a Elsa (filhos de Isolino) e que desenvolveu um grande leque de iniciativas em que envolvemos também os pais, Isolino Vaz incluído.
Isolino era da idade dos meus pais, eu sou da geração dos seus filhos. Foi nessa época que o mestre, vendo o meu interesse pela arte, particularmente pela sua arte, sobre a qual me falava tantas vezes, me pediu para ser seu ajudante nas inúmeras palestras que fazia e que ilustrava abundantemente com obras suas. Não havendo ainda projecções de “power points” ou de “keynotes”, levávamos os desenhos e pinturas ordenadas em grandes pastas, montávamos um cavalete no palco ou junto à mesa, e a minha nobre missão nas palestras era carregar as coisas e depois ir substituindo as obras pela ordem certa, de acordo com o fluir do discurso do orador, que as comentava uma a uma.
Com o meu envolvimento político na luta antifascista, no fim dos anos 60, houve mais uma implícita cumplicidade que se estabeleceu com o pintor. Foi tudo isso que me levou, anos mais tarde, a ganhar coragem para fazer ao mestre a encomenda de uma obra.
Acabado o meu curso de Engenharia, em 1977, senti-me mais livre para abraçar novos desafios. Com alguns amigos, aventurei-me a abrir uma livraria, um sonho muito comum entre quem ama os livros. Arrendámos um espaço na Rua dos Mártires da Liberdade e decidi chamar-lhe Livraria Bento de Jesus Caraça, pela grande admiração que tinha pelo matemático, pelo político e pelo seu exemplo de cidadão.
Em 25 de Junho de 1978 passavam 30 anos sobre a sua morte. Houve comemorações em Lisboa e noutros locais. No Porto, foi a Livraria que organizou as comemorações.
O nosso programa incluiria uma grande sessão evocativa, que foi realizada em Belas Artes, com testemunhos de vários companheiros do homenageado, sessão em que se faria o lançamento de uma edição comemorativa de um retrato.
Dada a amizade que tinha com Isolino Vaz, fui lá a casa pedir-lhe para fazer o retrato. Pela forma simpática e até entusiasmada como recebeu o meu pedido, acho que ficou contente com a incumbência, apesar de não haver qualquer pagamento previsto da minha parte (todos trabalhámos pro-bono na realização daquelas comemorações). Penso que aceitou porque Isolino admirava Bento de Jesus Caraça tanto como eu.
Fez um desenho a carvão, numa folha de 70x100 cm, se bem me lembro. Fizemos a reprodução na velha Inova, Artes Gráficas, na rua de Gonçalo Cristóvão, no Porto, uma edição litográfica com 32,5x47,5 cm. (1)
Pouco depois, em Setembro de 1978, tive de ir para a tropa e de deixar a livraria entregue aos meus amigos, tendo esta vivido um tempo conturbado, acabando vendida à Cooperativa Erva Daninha e fechada a seguir. Essa história não cabe aqui e só a menciono para dizer que nesse processo desapareceu (pelo menos da minha vista) o original do retrato que eu tinha encomendado a mestre Isolino e que tínhamos pendurado na parede da livraria. Imagino que o original da obra ainda exista, espero que não tenha sido destruído.
(1) A Biblioteca Municipal de Gaia tem um exemplar e a associação Amigos de Gaia também. Muito perto do local onde era a livraria Bento de Jesus Caraça, na rua Mártires da Liberdade, o alfarrabista Homem dos Livros (no número 79) tem à venda esta litografia.