Publicado em: Opinião / Esquerda.net em 10 de Novembro de 2008
Na passada sexta-feira (7 de Novembro de 2008) Luc Boltanski veio ao Porto, à Fundação de Serralves, fazer uma palestra integrada no ciclo de conferências internacionais intitulado “Crítica do Contemporâneo”.
Neste tempo em que, dia após dia, vamos assistindo ao evoluir de uma nova e profunda crise do capitalismo, a comunicação de Boltanski, um analista perspicaz e profundo do sistema capitalista e das suas transformações históricas, não podia deixar de gerar o maior interesse.
Hoje o debate está ao rubro por toda a Europa, e é bom saber que o Porto não é excepção. Nessa sexta-feira estava eu de regresso de uma série de intensas reuniões na Polónia; numa daquelas longas esperas de aeroporto, entre um e outro voo, folheei um semanário alemão – Die Zeit. Na capa, para além do inevitável Obama, chamou-me a atenção uma foto do Jürgen Habermas com o título “É o fim do neoliberalismo” que anunciava uma conversa com o filósofo. Esta conversa ocupava toda a primeira e segunda página de um dos cadernos, onde se lia o destaque: “Depois da bancarrota. A ilusão das privatizações chegou ao fim. Não é o mercado, mas a política que tem que realizar o bem comum. Uma conversa sobre a necessidade de uma ordem internacional.”
Noutro dos cadernos do mesmo Die Zeit, as quatro primeiras páginas eram dedicadas a John Maynard Keynes, apresentado como “O salvador do capitalismo”. Como subtítulos: “Nas crises a ‘mão invisível’ não se mexe” e “o capitalismo é um sistema vigoroso mas muito frágil”.
E assim sucessivamente, página a página, a crise ia-se dissecando entre críticos e apologistas do sistema. Mas o tema não se ficava pelos textos, infiltra-se também no espaço da publicidade. Num anúncio a cores, a toda a largura da página, um simpático sexagenário de barba grisalha, vestido de padre, era a vedeta de um anúncio de uma editora. Anunciava o novo livro deste homem de deus, Reinhard Marx, intitulado Das Kapital. Não podia ser mais sugestivo. Sob o slogan “A especulação selvagem é pecado” dizia-se que o autor critica os responsáveis pela crise financeira. Na capa do livro, uma faixa vaticina que “Um capitalismo sem humanidade, sem solidariedade e sem justiça, não tem moral e não tem nenhum futuro”. Como contraponto a este anúncio, um outro de outro livro intitulado “Ousar mais capitalismo. Notas sobre uma sociedade justa”. Refiro esta concreta edição de um jornal alemão apenas para ilustrar a intensidade dos debates que percorrem a Europa.
Foi com este aquecimento neuronal que aterrei no Porto decidido a não perder a conferência do Boltanski. O seu livro magistral – Le Nouvel Esprit du Capitalisme (ainda não editado em português) -–, publicado há quase uma década em colaboração com Eve Chiapello, tinha sido um momento marcante da crítica às novas formas que o capitalismo assumiu a partir dos anos 70. Os autores tentavam, com esta obra, ajudar a colmatar um défice cuja constatação a seu ver se impunha nos anos 90: a de que a verdadeira crise não era a crise do capitalismo, mas sim a crise da crítica ao capitalismo.
Esta crise da crítica devia-se ao facto de os críticos e os movimentos que estes inspiravam estarem em atraso face às novas realidades económicas e sociais; mantinham discursos, análises e acções que se tinham revelado frutuosos na fase anterior, nas três décadas depois da guerra, mas que agora se revelavam impotentes porque não correspondiam às novas formas que o capitalismo tinha assumido na sua nova fase. A crítica antiga não era já eficaz face aos novos modos de organização do trabalho e das empresas, que abandonavam o pesado modelo fordista de hierarquia para assumir a leveza das redes, com equipas reduzidas geridas por objectivos e por projectos, instáveis, flexíveis e inseguras, avaliadas permanentemente pela sua suposta criatividade, autonomia e rentabilidade.
Dizia Boltanski, em 1999, que o novo capitalismo tinha conseguido integrar, em seu proveito, muitos aspectos da crítica que tinha sido dirigida pelos seus oponentes contra as formas anteriores de exploração e opressão. O neoliberalismo, ao superar a forma anterior do capitalismo, teria conseguido simultaneamente superar a sua crítica, integrando parte dela e tornando a restante obsoleta porque desfocada da realidade. A obra de Boltanski e Chiapello visava portanto o relançamento da crítica e do movimento de resistência em novas bases, para poder recuperar a eficácia de combate às novas formas que o capitalismo tinha assumido.
Porque assistimos hoje a uma nova viragem no capitalismo, esta era, pois, uma conferência a não perder. Até porque, mais uma vez, e como Boltanski e Chiapello tinham analisado na viragem anterior, o segundo “novo espírito do capitalismo” está a integrar uma série de argumentos dos críticos do neoliberalismo. Fá-lo, é certo, em proveito dos mesmos objectivos de sempre: a acumulação de riqueza nas mãos da mesma classe. Mas todos já nos espantámos (e indignámos) ao ver muitos dos argumentos com que durante anos combatemos o neoliberalismo serem hoje usados nos discursos dos dirigentes que tentam iniciar um novo ciclo capitalista como resposta a esta crise que eles próprios provocaram.
O conteúdo do livro de Boltanski corre o risco de ficar obsoleto a curto prazo com a vertigem das transformações do sistema que foi o seu objecto de análise. Mas, pelo contrário, ganham hoje uma acutilante actualidade e importância o método e as conclusões que deixou sobre o tipo de adaptação que o capitalismo é capaz de fazer em épocas de crise e de mudança, e sobretudo os alertas que trouxe sobre os problemas causados pelo atraso do movimento crítico em reconhecer a profundidade dessas mudanças e em redefinir a sua estratégia em conformidade.
Era esse contributo original para os novos debates de 2008 que eu tinha esperança de ouvir em Serralves. Mas, em vez disso, o que tivemos foi apenas um bom resumo de uma obra com dez anos de vida. Uma obra que foi inovadora e fundamental, mas que em 1999 tinha já vinte anos de atraso em relação ao objecto estudado. Talvez ainda seja demasiado cedo para aplicarmos o método Boltanski à análise do novo “novo espírito do capitalismo”; mas uma coisa ele e Chiapello nos mostraram: que o atraso da crítica foi fatal para o movimento dos trabalhadores, facilitou a exploração e tornou a recuperação da força da classe uma tarefa mais difícil. É um erro que não podemos repetir.
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