Publicado em: Esquerda.net, 16 de Fevereiro de 2009
Realizou-se em Bruxelas, a 12 e 13 de Fevereiro, uma conferência intitulada “Peace with Water”. Foi co-organizada pelo World Political Forum, a rede criada por Mikhail Gorbachev de que Mário Soares é também um dos fundadores. Mas a inspiração veio sobretudo do outro co-organizador, o Instituto Europeu de Pesquisa sobre a Política da Água (IERPE) da Bélgica, presidido por Riccardo Petrella, talvez o mais respeitado activista internacional sobre a questão da água e um dos investigadores que mais tem contribuído para a elaboração de uma política alternativa para o sector.
O lema deste encontro - “Fazer a paz com a água” -, deve ser entendido no duplo sentido de acabar com todo o tipo de agressões ambientais contra este recurso fundamental, e também de prevenir e evitar os conflitos originados pela disputa de propriedade e de acesso à água.
O principal objectivo do encontro era a elaboração de um Memorando para um Protocolo Mundial da Água, baseado na prevenção de conflitos, a promoção do direito à água para todos e a salvaguarda deste património comum mundial através de uma gestão responsável da água como um bem comum, entendendo-se comum para além dos limites estreitos de um antropocentrismo egoísta e geracional, mas antes como sendo comum às várias espécies vivas e às futuras gerações de todas elas.
Os organizadores consideraram que a crise generalizada ligada a este recurso exige um verdadeiro “plano Marshal” mundial para a água, acompanhado de uma profunda mudança estrutural no sistema económico e nos estilos de vida, criando um novo paradigma na política mundial da água, dando prioridade à cooperação e à solidariedade em vez da competitividade, apoiando o estebelecimento de parcerias público-públicas em vez das parcerias público-privadas, financiando os bens comuns e os serviços públicos através de um sistema fiscal eficiente e justo.
Pretende-se de imediato conseguir incluir a questão da água na agenda da conferência das Nações Unidas sobre mudanças climáticas, a realizar em Copenhaga de 7 a 18 de Dezembro deste ano, onde se espera que seja aprovado um protocolo pós-Kyoto. O objectivo é assim contribuir para ultrapassar visões demasiado simplistas, centradas apenas nas questões da energia e das emissões de CO2. A conferência de Bruxelas considerou que, se a questão da água não for considerada pelos negociadores do novo protocolo, não haverá um acordo intergovernamental específico para lidar com o problema, e a água será então considerada apenas nos aspectos relacionados com a energia.
Ficaria assim o campo aberto para o campo para uma regulação mundial do problema da água a outro nível, mais sujeito à influência dos grandes interesses industriais do sector. O que já se prepara, como adiante veremos.
Refira-se a este propósito que 2009 é um ano de grande importância na abordagem mundial do problema da água, e que o tema tem sido objecto de inúmeros seminários e declarações.
Uma outra conferência com um tema algo semelhante a esta (Água para a Paz, Paz para a Água), mas com uma perspectiva bem diferente, teve lugar em Paris em Novembro, organizada sob os auspícios da Fundação Chirac, da Unesco e da Agence Française de Développement (AFD), com vista a ajudar à preparação do próximo Fórum Mundial da Água.
Este fórum, o quinto World Water Forum (Fórum Mundial da Água), que terá lugar em Istambul de 16 a 22 de Março de 2009, é organizado pelo Conselho Mundial da Água, que repete a iniciativa de três em três anos. O encontro, considerado por alguns o maior evento internacional sobre o problema da água, tem como intenção promover a participação e o diálogo entre as entidades públicas e as entidades privadas, com vista a influenciar as decisões ao nível das políticas globais para o sector. Segundo os organizadores, esta edição será mais do que nunca focada nas questões prioritárias da interacção entre estas diferentes “partes interessadas”, e pretendem aprovar um “Consenso de Istambul para a Água”, a assinar pelas autoridades locais e regionais, em cujo projecto de texto se revindica que estas devem ter a autoridade legal, os recursos financeiros e a capacidade institucional para gerir localmente a água e o saneamento, no respeito pelo princípio da subsidiariedade. Em consulta com todas as partes interessadas (autoridades nacionais e locais, empresas do sector, utentes e investigadores), devem promover uma visão partilhada, definir um plano para o sector da água e escolher entre os vários modelos possíveis de gestão.
O tema desta edição do Fórum Mundial da Água é “Bridging Divides for Water” (Unindo as Divisões da Água). Estas divisões são bem patentes e justificam plenamente a preocupação dos organizadores. Por exemplo, no Fórum Social Mundial (FSM) realizado há dias na Amazónia, a Assembleia da Água aprovou uma declaração em que se convoca uma mobilização global de 14 a 22 de Março em Istambul e em todos os territórios para manifestar uma firme oposição ao Fórum Mundial da Água, onde consideram que as grandes empresas transnacionais proporão novas formas de mercantilização da água. No FSM continua a exigir-se a exclusão da água das negociações da Organização Mundial do Comércio e dos demais acordos internacionais de comércio livre e sobre investimentos transfronteiras, tanto bilaterais como multilaterais. E afirma-se que a gestão da água deve permanecer no âmbito público e comunitário, ser objecto de participação dos interessados numa perspectiva de equidade e controlo social, sempre sem fins lucrativos.
Também em Belém do Pará, no final de Janeiro, o Fórum Parlamentar Mundial aprovou uma declaração em que se afirma que “A água é um direito humano e um bem público essencial à vida e não pode ser tratada como uma mercadoria sujeita às regras do mercado, nem pode ser entregue à ganância de operadores privados que visam o lucro. É responsabilidade dos Estados garantir a toda população o abastecimento de água de qualidade a um preço justo.”
Cerca de uma semana antes do fórum de Istambul, e no âmbito do processo regional europeu de preparação, vai reunir também em Bruxelas a Conference on Climate Change Adaptation and Water. Esta conferência servirá para mostrar as várias iniciativas europeias e as melhores práticas sobre a questão “a água e a adaptação às mudanças climáticas”, tanto de âmbito nacional como resultantes de cooperação internacional, com vista à preparação de um livro branco sobre a matéria. Os resultados da conferência serão apresentados em Istambul.
Ainda não estamos a ver o filme
Sobre estes temas quentes da gestão privada ou pública do sector da água, há uma iniciativa a merecer a nossa atenção: o projecto de um filme intitulado “Water makes money”, de Leslie Frank e Herdolor Lorenz, autores também de “Água: serviço público à venda”. Os dois principais visados por este novo filme são as multinacionais Veolia e Suez, fornecedores de água a 80% dos franceses e que têm conquistado cada vez mais concessões pelo mundo fora, embora em França o processo tenha iniciado a reverter-se, com destaque para Paris, onde a concessão aos privados vai acabar este ano. Os autores do filme estão agora a apelar ao financiamento por subscrição pública para levar avante o projecto. Os doadores podem manter o anonimato ou podem mesmo ter o seu nome no genérico do filme. A partir de 20 euros, receberão um DVD logo que o filme esteja pronto, antes mesmo de ser exibido. É um acto de democracia participativa no financiamento da cultura independente que pode ser feito a partir do site: www.watermakesmoney.org
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