Direitos do Trabalho na União Europeia

Publicado no jornal Global, Maio 2008

*com Carmen Hilário e Miguel Portas



O SALÁRIO PELO PAÍS DE ORIGEM

Este número do Global dedica-se a dois recentes acórdãos do Tribunal de Justiça Europeu no âmbito da prestação transnacional de serviços, na área da construção civil. O tema pode parecer, à primeira vista, exotérico, “especioso”, mas não é.
Entre o respeito pelas convenções colectivas de trabalho nos países de destino e o regime jurídico aplicável à contratação transnacional de empresas prestadoras de serviços, está aberto o conflito.
Nos casos analisados, as disputas foram parar aos tribunais dos países onde ocorreram, o que levou os juízes nacionais a pedir esclarecimentos sobre a aplicabilidade do direito comunitário ao Tribunal de Justiça da União Europeia, no Luxemburgo.
As respostas do TJE foram favoráveis às empresas prestadoras de serviços. Ao contrário do que se possa pensar, não foi a directiva Bolkestein a fundamentar tais pareceres, mas o artigo 49º do Tratado da Comunidade Europeia, que se manterá em vigor se o Tratado de Lisboa vier a ser ratificado pelos 27.


O CASO VAXHOLM

A empresa Laval, da Letónia, ganhou um concurso para a construção de uma escola, na cidade de Vaxholm, na Suécia. Os sindicatos suecos da construção civil pressionaram a Laval para que assinasse a convenção sueca do sector. A empresa recusou porque queria aplicar aos seus trabalhadores, destacados na Suécia, as convenções da Letónia.

O conflito estalou de imediato. Os sindicatos suecos bloquearam o estaleiro, impediram a entrega das mercadorias e piquetes de greve impediram a entrada de homens e veículos na obra. A Laval pediu o apoio das forças policiais. Estas responderam que, como a acção colectiva era lícita à luz do direito nacional, não podiam intervir. As autoridades informaram a Laval que as condições mínimas previstas nas convenções colectivas eram igualmente aplicáveis aos trabalhadores estrangeiros destacados. A Laval manteve a recusa de adesão à referida convenção. Pouco depois, os trabalhadores destacados pela Laval regressaram à Letónia. A cidade de Vaxholm pediu a rescisão do contrato e a filial da Laval na Suécia declarou-se em situação de falência.

O modelo sueco
Na Suécia, os parceiros sociais negoceiam a convenção colectiva relativa às condições de trabalho e, em seguida, a discussão dos salários, que tem a contrapartida de uma cláusula obrigatória de paz social durante a vigência dos acordos.
Os salários são acordados a nível local entre o sindicato e cada empregador. Só quando os parceiros não chegam a acordo, os salários são objecto de negociações centralizadas. Se, ainda assim, falhar o acordo, o salário de base é determinado por uma «cláusula de reserva» da convenção colectiva. Este salário «de reserva» é um mecanismo de último recurso e não um salário mínimo.

As posições das partes
Na Suécia, o direito à acção sindical e à acção colectiva gozam de protecção constitucional. O TJE considerou, no entanto, que, de acordo com o estipulado na Carta dos Direitos
Fundamentais, tais garantias estão sujeitas a restrições específicas, se colidirem com a legislação comunitária sobre as liberdades fundamentais da União. Na opinião do tribunal europeu, o artigo 49º do Tratado da Comunidade, ficaria comprometido se obstáculos colocados por associações que não são de direito público tornassem menos atractiva, ou mais difícil, a execução de trabalhos de construção por firmas de outros Estados membros no território sueco.
A proibição de acções colectivas para modificar uma convenção em vigor já existe e é aceite pelos sindicatos suecos. Mas o TJE lembra que, se não se pode ir contra uma convenção colectiva sueca, também não se pode contrariar a convenção colectiva do país de origem da empresa que presta serviço no estrangeiro. Resumindo, o ponto de vista do TJE considera que o boicote lançado pelos sindicatos suecos se dirige contra as convenções abrangidas pela lei de outro Estado-Membro, no caso a Letónia, e portanto modificam a regra a meio do jogo.
As organizações sindicais e o Governo sueco, por sua vez, sustentaram que o boicote era justificado porque visava proteger os trabalhadores letões, bem como os suecos, contra a prática do dumping social.
Consequentemente, os sindicatos acusaram a Laval de fugir às obrigações resultantes da regulamentação sueca em matéria de convenções colectivas, e de se escudar por detrás das normas europeias de modo a obter vantagens injustas.

O acórdão do TJE
O direito comunitário não impede os Estados membros de obrigarem as empresas que destacam trabalhadores a observarem o salário mínimo. Mas como a Suécia não tem salário mínimo, esta prerrogativa não se podia aplicar.
As condições de trabalho e de emprego podem ser fixadas, para prestações de serviços transnacionais no domínio da construção, por disposições legislativas, regulamentares ou administrativas, por convenções colectivas nacionais ou decisões arbitrais de aplicação geral. Tais instrumentos devem ser respeitadas por todos. Mas no caso em apreço não existia nenhum acordo de aplicação geral respeitante a massas salariais.
Na ausência de dispositivos de aplicação geral, o tribunal considerou que um Estado-Membro não tinha o direito de impor a uma empresa estabelecida noutro Estado o resultado de uma negociação “caso a caso”.
Os sindicatos suecos consideram que esta decisão põe em causa o direito a um modelo próprio de negociação colectiva. Formalmente, eles perdem porque não têm salários mínimos com força de lei.
Paradoxalmente, a derrota é consequência de um modelo de organização do conflito entre capital e trabalho que funcionou, em marco nacional, de forma razoavelmente favorável para a parte mais fraca.
Ao invés, a Laval ganhou porque fez vingar o critério do “país de origem” pelo buraco da agulha. Só o pôde fazer porque, independentemente da Directiva Bolkestein, foi o Tratado da Comunidade Europeia que a confortou.



O CASO RÜFFERT

O caso mais recente, conhecido como Rüffert, tem acórdão a 3 de Abril de 2008. O litígio opôs D. Rüffert, representante da empresa alemã de construção Objekt und Bauregie, ao Estado alemão da Baixa Saxónia (Land Niedersachsen). A empresa ganhou por concurso uma empreitada e subcontratou parte a uma empresa polaca, que não pagou o salário mínimo estipulado. O Estado rescindiu, ganhou o processo em Tribunal de primeira instância, mas perdeu o recurso devido ao parecer do Tribunal europeu.

O Land Niedersachsen tem uma lei para a adjudicação de contratos públicos com valor acima dos 10 mil euros: as empreitadas só podem ser entregues a empresas que se comprometam a pagar aos seus trabalhadores, pelo menos, a remuneração fixada na convenção colectiva da construção civil. O adjudicatário responsabiliza-se ainda por impor aos seus subempreiteiros as mesmas obrigações. Os contratos incluem uma cláusula penal no montante de 1 por cento por cada incumprimento culposo e, em caso de incumprimentos múltiplos, a pena pode chegar a 10 por cento do valor do contrato. A violação do contrato autoriza a rescisão sem pré-aviso.

Os factos
No Outono de 2003, após concurso, o Land Niedersachsen adjudicou à Objekt und
Bauregie um contrato para a construção dos toscos no estabelecimento prisional de Göttingen Rosdorf. A Objekt und Bauregie contratou uma empresa com sede na Polónia, que empregou 53 operários a quem pagava um salário 53,43 por cento abaixo do salário mínimo previsto na convenção colectiva da construção civil. O Land Niedersachsen rompeu o contrato de empreitada, acusando a Objekt und Bauregie de ter violado a convenção e aplicou as penalizações previstas na lei.

O acórdão do Tribunal de Justiça
Aberto o conflito, regressou o artigo 49. A empresa polaca estava obrigada a cumprir a lei do Land? O tribunal alemão tinha dúvida e colocou-a ao TJE. Observa que a obrigação de respeitar as convenções colectivas impõe às empresas de construção de outros Estados-Membros a perda de uma vantagem concorrencial decorrente dos seus custos salariais mais baixos, logo é um obstáculo à livre prestação de serviços.
O Tribunal do Luxemburgo começa por dizer que devem ser garantidas aos trabalhadores destacados, condições de trabalho e de emprego dignas, entre as quais, uma protecção e remuneração salarial mínima. Mas lembra que estas condições de trabalho e de emprego têm de ser fixadas por disposições normativas, por convenções colectivas ou decisões arbitrais de aplicação geral. Assim, o efeito de uma lei como a que estava em causa, apenas tocava uma parte do sector da construção porque só se aplicaria aos contratos públicos. Daí não se poder considerar que a rescisão e multa aplicada pelo Land se pudesse justificar com o objectivo de garantir uma protecção mínima dos trabalhadores já que, segundo o Tribunal europeu, nenhum indício permite concluir que a protecção resultante da lei do Land é necessária a um trabalhador quando este exerce as suas actividades no âmbito de um contrato de obras públicas, mas não quando trabalha numa obra privada…
Em consequência, o Land perdeu a causa porque o seu quadro legal, fixando uma remuneração salarial mínima, não cumpria os requisitos de aplicação geral previstos na Directiva 96/71 da União sobre o Destacamento de trabalhadores, e não podia, portanto, ser imposta a empresas estabelecidas noutros Estados membros, constituindo antes uma restrição à liberdade de prestação de serviços.


TRATADO DA COMUNIDADE EUROPEIA

Artigo 49º
As restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.

Este artigo é retomado pelo Tratado de Lisboa como art. 56º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia

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