A inauguração do Tratado de Lisboa e as confusões institucionais
















Publicado em:
O Gaiense, 5 de Dezembro de 2009
Esquerda.net

A longa e atribulada novela do Tratado chegou ao fim, com festa e casamento, como se requer num qualquer último episódio de novela que se preze. Porém, a cerimónia junto à Torre de Belém foi uma boa mostra da confusão institucional que agora se inaugura com os novos postos criados pelo Tratado de Lisboa.

Uma das alterações mais visíveis é a criação do posto de Presidente permanente do Conselho Europeu, para o qual foi já designado Herman van Rompuy, uma das estrelas da cerimónia e o centro de várias das confusões expressas ao longo da noite.

Até Cavaco Silva se enganou, no seu discurso oficial, dirigindo-se ao "Senhor Presidente designado do Conselho da União Europeia", aliás como a locutora da RTP, que o designou da mesma forma. Mas, se o Conselho da União Europeia fosse agora ter um presidente permanente, então como explicar a intervenção de Zapatero nesta cerimónia, em representação do país que terá a próxima presidência rotativa semestral? Presidência rotativa de quê, afinal? Não é seguramente "presidência da UE", como se lê e ouve frequentemente, até porque a UE pura e simplesmente não tem presidente e estas rotações não abrangem o Parlamento, nem a Comissão, nem outros órgãos.

O que acontece é que o Conselho da União Europeia, ou simplesmente Conselho, vai de facto manter uma presidência rotativa, que vai competir aos espanhóis a partir de Janeiro. E Herman van Rompuy presidirá a quê? Ao Conselho Europeu, um órgão diferente. Uma das diferenças, a título de exemplo, é que este último não tem competência legislativa, que compete sim ao Conselho da União Europeia, em conjunto com o Parlamento. Porém, este Conselho, que vai ser presidido pelos espanhóis, nunca inclui chefes de Estado e de governo, pelo que não resulta muito claro o papel institucional de Zapatero durante a presidência espanhola, já que ele, como chefe de governo, tem apenas assento no Conselho Europeu, que vai ser presidido por van Rompuy.

No seu discurso nesta cerimónia, Barroso acabou por estar bem, talvez porque tenha uma ideia mais clara sobre a nova realidade institucional, tanto quanto é possível nesta fase de confusão inicial, que ele conhece melhor do que ninguém. É eventualmente essa a razão que o levou a ter cometido a deselegância de ir para uma cerimónia protocolar ler artigos do Tratado, lembrando aos presentes e ao público quais são as suas próprias funções e competências, que pareciam um bocado esquecidas na euforia comemorativa dos novos postos. Pode ter sido deselegante, mas foi bem metido. A falta de rigor já estava a atingir níveis preocupantes.

Mas, apesar de todas estas inovações, o problema político de fundo não parece estar resolvido. À velha pergunta retórica de Henry Kissinger, "se o presidente dos EUA quiser falar com a Europa, telefona para quem?", lembrada por Judite de Sousa ao comentador de serviço António Vitorino, este responde que Obama telefonará a Barroso, ou a Rompuy, ou mesmo a Ashton, conforme o assunto que quiser tratar. E, passada a pergunta a António Esteves Martins, o jornalista da RTP que há longos anos segue os assuntos europeus em Bruxelas, este responde que Obama, provavelmente, ligará a Gordon Brown. Sobre a eficácia institucional do Tratado de Lisboa, ficamos todos perfeitamente esclarecidos. Obama e o resto do mundo provavelmente também.

Ao longo da emissão, em rodapé, a Euronews ia apresentando, em várias línguas, o resultado de uma eurosondagem: apenas 47% dos europeus confiam na UE, apesar de 56% considerarem que beneficiaram com o projecto.

Sente-se também um pouco confuso e desconfiado com tudo isto, caro leitor? Bom, se nem mesmo os principais responsáveis políticos e jornalistas ainda têm bem claro como vai funcionar a nova arquitectura institucional, não se preocupe, a culpa não é sua. Aconselho que ganhe coragem para ler os artigos do Tratado. Provavelmente, continuará confuso, mas com uma confusão mais sólida e mais informada. O que é sempre bom.

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