Votos para 2012

Banda desenhada publicada na contra-capa da revista O Tempo e o Modo nº 81, Jul-Ago 1970

Publicado em: O Gaiense, 31 de Dezembro de 2012
Numa crónica de fim de ano, ou se faz o balanço do ano que acaba, ou se fazem votos para o ano que começa. Vou pela segunda opção porque, confesso, já estou um bocado farto deste penoso 2011.
Faço votos para que 2012 seja o ano da recuperação. Recuperação da dignidade de um povo que em 2011 foi classificado como lixo pelas agências internacionais, foi tratado como lixo pelos poderes políticos europeus e nacionais, foi descartado como lixo pelas instituições financeiras e, pior do que tudo isso, comeu e calou, paralisado pelo veneno da resignação (“é duro, mas tinha que ser...”).
Faço votos para que, em 2012, Portugal seja de novo um bom aluno. Não um bom aluno das receitas falhadas que nos conduzirão de volta à pobreza e ao fim do que nos resta de Estado social. Nós vivemos metade do século passado a penar na pobreza e na falta de direitos porque fomos tolerando, com inaceitável passividade, as regras caducas de quem nos governava. É tempo de sermos bons alunos, mas de outras escolas. De seguirmos exemplos de quem não se resigna, de quem foi para as praças libertadoras derrubar poderes eternos, de quem ocupou Wall street ou a Puerta del Sol. Bons alunos, afinal, de nós próprios, que num certo Abril acendemos o sol da liberdade no país dos impossíveis. Ou, recuando mais um pouco, bons alunos daquele nosso Poeta que nos disse, de forma tão bela, que “todo o mundo é composto de mudança, tomando sempre novas qualidades”. Em 2012, haja mais coragem, que na nossa terra “não se muda já como soía”.

Uma proposta de Natal



Publicado em: O Gaiense, 24 de Dezembro de 2011
Já que estamos naquela quadra em que se multiplicam as mais louváveis iniciativas solidárias e toda a gente afirma o seu espírito de Natal em unânimes votos de amor pelas crianças e de partilha e compaixão com os mais desfavorecidos, permitam que esta carta se venha juntar a esse coro benfazejo com uma sugestão muito concreta.
Se - como se diz e eu concordo - Natal devia ser o ano todo ou, pelo menos, sempre que uma pessoa quiser, proponho que passemos a utilizar o espírito de Natal como critério concreto e permanente para avaliar as propostas e medidas com que se vai mudando a nossa vida colectiva. As que passassem no teste mantinham-se, as que chumbassem teríamos de eliminar.
Alguns exemplos: O corte do subsídio de Natal está de acordo com o espírito de Natal? Obrigar os trabalhadores a meia hora diária de trabalho grátis é uma medida solidária com quem mais precisa? O aumento das taxas na Saúde é mais compaixão com os doentes? Os cortes na Educação fazem-se por amor às crianças, as tais que merecem sempre o melhor? O Orçamento de Estado é uma expressão quantificada do amor universal? As decisões do Conselho Europeu aprofundam a fraternidade entre os povos? A troika são os três reis magos?
Se respondeu “sim” a todas as perguntas, desejo-lhe um feliz 2012. Se respondeu “não”, pergunto-lhe: o que vai fazer para ser fiel aos seus votos natalícios? Ou eles esgotam-se no dia 26?

Mais um Conselho Europeu decisivo


Publicado em: O Gaiense, 17 de Dezembro de 2011 
A última reunião do Conselho Europeu foi apresentada, com todo o dramatismo, como absolutamente decisiva para resolver a crise, a última e irrepetível chance de encontrar uma solução. Curioso é que o mesmo já tenha sido dito da anterior, e da anterior a ela. Como se dirá certamente da próxima. Há anos que não temos senão cimeiras decisivas para atacar a crise - sejam da UE, sejam do G8, do G20, das Nações Unidas para o Clima – onde nada de fundamental se decide, e a vida continua, de mal a pior. Mas o erro pode estar na expectativa de que será em cimeiras dos que provocam as doenças que se vai encontrar a cura.
Se a cumplicidade de David Cameron com os interesses financeiros da City de Londres foi frontalmente assumida por ele como razão para rejeitar a alteração aos Tratados, as imposições do eixo franco-alemão não estão menos ao serviço de semelhantes interesses, simplesmente servem os do lá de cá da Mancha. Vale tudo para tentar apaziguar os mercados. Ora, os ameaçadores “mercados” são entidades concretas (muitas delas europeias): são as empresas financeiras e os fundos que compram e vendem de forma especulativa acções, moeda e títulos das dívidas soberanas e que transacionam, à velocidade de um clic, ficções derivadas destes títulos em montantes muitas e muitas vezes superiores aos valores dos PIB dos países mais ricos, assentando aí o seu poder arrasador. Enquanto estes interesses continuarem a ser vacas sagradas para as formatadas cabeças dos líderes europeus (e portugueses), não será de esperar que qualquer solução real para a crise possa emergir de uma reunião do Conselho ou do Banco Central Europeu.

Singularidades da política belga



Publicado em: O Gaiense, 10 de Dezembro de 2011

Terminaram as negociações para a formação do governo belga resultante das eleições de Junho de 2010. O partido que ganhou, da direita separatista flamenga, não participa. O primeiro-ministro será socialista. No congresso que o PS (como os outros partidos que integram o acordo de governo) teve de fazer para aprovar o acordo, cantou-se A Internacional de punho no ar e as televisões mostraram que, contrariamente ao habitual, o presidente Elio Di Rupo se manteve estático, assumindo uma afastada postura de primeiro-ministro. Mau sinal, disseram alguns.
Mas, no discurso de apresentação oficial do governo, comprometeu-se a manter a indexação automática dos salários à inflação, sistema muito contestado na UE; disse também que o combate pelo emprego e pela repartição da riqueza não pode ser ganho numa sociedade dominada pela especulação, onde algumas pessoas ganham penosamente 1200 euros em certas empresas, enquanto outras acumulam fortunas comprando e vendendo acções dessas mesmas empresas. Assim não dá! – disse ele – assumindo que uma regulamentação apropriada do sector financeiro será uma das prioridades do novo governo.
Apesar das belas palavras, os sindicatos, mesmo os ligados ao PS, desconfiam. É que, se muitos belgas ficaram aliviados por terem finalmente governo, sabem também que foram poupados a planos de austeridade porque não havia governo para os impor e temem que agora eles cheguem também à Bélgica. Essa a razão por que realizaram, na semana passada, uma enorme manifestação “preventiva” contra as medidas que podem vir com o orçamento do novo governo. Nisso, os belgas são mais duros e organizados do que os portugueses: lutam antes que o pior lhes aconteça; nós reagimos tarde e nem sempre com o vigor necessário.

A voz da outra Bruxelas






Publicado em: O Gaiense, 3 de Dezembro de 2011
Nesta sexta-feira, a capital da União Europeia esteve praticamente paralisada. As confederações sindicais saíram à rua para afirmar que a austeridade cega que querem impor aos trabalhadores belgas não é uma fatalidade, só vai agravar a crise, e que há alternativas para lutar contra o défice.
Dizem e repetem: a factura da crise não deve ser paga pelos mais fracos e ainda menos pelas gerações futuras. O que é preciso é investir no relançamento da economia em bases duráveis e ir buscar o dinheiro a quem o tem, lutando contra a fraude fiscal e taxando as grandes fortunas, os lucros do capital, as transações financeiras e a especulação que parasita a economia, em vez de empobrecer ainda mais os desempregados, transformar os pré-reformados em desempregados e os funcionários em pessoas à procura de emprego. É também preciso - dizem os belgas - reforçar os serviços públicos e o sector social, porque estes sectores têm um efeito redistributivo.
É bom que os portugueses saibam que no centro “rico” da Europa os trabalhadores lutam pelos mesmos objectivos do que eles: estas exigências que ecoam hoje nas ruas de Bruxelas são iguais às que se têm ouvido nas ruas de Portugal. Elas partem de uma frente comum das grandes centrais sindicais que incluem a FGTB, situada mais à esquerda, a CSC, a confederação de sindicatos cristãos e a CGSLB, a central sindical liberal. Unidos para tentar que a voz de quem trabalha se faça ouvir mais forte do que a voz dos interesses do capital, até mesmo nesta capital onde eles costumam reinar. 

Semear ventos...



Publicado em: O Gaiense, 26 de Novembro de 2011
Esta semana, Portugal foi tema obrigatório nos media internacionais: falava-se, em resumo, de um país cortado do mundo pela anulação de todos os voos internacionais em todos os aeroportos nacionais (para um estrangeiro, esse é o símbolo máximo da ligação do nosso país ao mundo), onde o povo protestava massivamente contra uma austeridade radical que poderá conduzir o país, a curto prazo, para um futuro agora oficialmente classificado como lixo pela agência Fitch, que concordou finalmente com a sua colega Moody’s.
No momento em que estas linhas se escrevem, não se sabe ainda se a expressão musical das ruas da amargura para onde está a ser atirado como lixo BB+ o nosso futuro colectivo foi elevada a património imaterial da humanidade. Mas sabe-se que a sua expressão política já pode ser declarada património imaterial da desumanidade.
Não só pela crueza indiferente com que sacrifica, corte a corte, o nível de vida já antes miserável das novas vítimas da fome, mas também pela grotesca e inútil oferta de trinta minutos de trabalho grátis aos patrões do sector privado. Até hoje, a sociedade só conheceu duas formas de trabalho grátis: o voluntariado e a escravatura. Se não é de voluntariado que se trata nesta meia hora diária, será então de escravatura. Mas atenção: trabalhadores tratados como escravos podem começar a considerar que não têm nada a perder a não ser as correntes que os amarram e que têm todo um mundo a ganhar. E aí, os actuais semeadores de ventos poderão vir a colher reais tempestades.

O voto dos mercados


Publicado em: O Gaiense, 19 de Novembro de 2011
Caíram dois primeiros-ministros na UE. Foram substituídos, sem qualquer “perturbação” eleitoral, por tecnocratas. Papandreou não deixa saudades e Berlusconi ainda menos. Os sucessores não serão certamente menos respeitáveis do que eles. Porém, esta substituição de políticos eleitos por tecnocratas de confiança dos mercados levanta questões muito sérias.
Foi assumido que a realização de eleições seria prejudicial para a confiança dos mercados e abalaria as periclitantes economias da Grécia e da Itália. Nas elites dominantes da UE houve uma sensação de alívio e uma visível satisfação com as soluções encontradas. No contexto da ideologia dominante e do actual paradigma económico, têm razão: se a política que está a ser seguida é inevitável, se as opções estão pré-definidas, não há nenhuma razão para os países fazerem eleições, que seriam momentos de escolha de povos a quem não é reconhecido nenhum direito de escolha.
A este estado chegou o capitalismo europeu: depois de, numa primeira etapa do seu desenvolvimento histórico, ter pregado a democracia para se impor face ao um poder aristocrático hereditário, vê hoje na democracia um entrave às reformas estruturais com que pretende alterar decisivamente as relações sociais e a distribuição de riqueza entre o capital e o trabalho.
A bandeira da democracia não foi, contudo, abandonada. Ela mudou de mãos e é hoje empunhada pelos que defendem a urgência de optarmos colectivamente por novas formas de organização da economia e da sociedade, assentes na partilha solidária e responsável e não no saque e na acumulação da riqueza nas mãos de minorias privilegiadas.

Perguntas simples sobre os cortes de salários


Publicado em: O Gaiense, 12 de Novembro de 2011
Estamos em tempo de Orçamento e de cortes. O governo alega que não tem dinheiro para assumir os compromissos que derivam dos contratos de trabalho que o Estado tem com os seus trabalhadores.
Mesmo se se considerar que o Estado deve fazer estes cortes nas despesas, uma perspectiva de equidade mínima não obrigaria a cortar por igual nos custos que derivam de todos os contratos do Estado, não apenas dos contratos de trabalho?
Mas como reagiriam os senhorios, por exemplo, se o governo decidisse não pagar as rendas de Agosto e Dezembro? Como reagiriam as empresas que fornecem o Estado se o governo decidisse unilateralmente que, em 2012, iria abater 14% ao valor das facturas em dívida? No mais do que provável litígio judicial que se seguiria, algum tribunal daria razão ao governo?
Será que os contratos de trabalho têm menos valor legal do que os contratos de arrendamento ou os contratos de fornecimento? Ou será que o governo tem mais respeito pelos senhorios e pelos empresários do que pelos funcionários públicos? Ou tem apenas mais medo da sua reacção?
Se não conseguem que o governo os respeite, não restará aos funcionários tentar fazer com que tenha tanto medo deles como parece ter dos outros titulares de contratos com o Estado?

O perigo da democracia


Publicado em: O Gaiense, 5 de Novembro de 2011
Esta semana vivemos um momento com uma particular carga simbólica que ficará certamente registado na história do nosso tempo: o anúncio da realização de um referendo num pequeno país gerou um enorme sobressalto nas bolsas mundiais, da Rússia aos EUA, passando por todos os países europeus, provocando avultadíssimas perdas em fundos, bancos e outras empresas cotadas. Ainda ninguém sabe a resposta ao referendo, ainda ninguém sabe sequer qual será a pergunta, nem mesmo se haverá ou não referendo, porém, a mera perspectiva de que um povo (mesmo pouco numeroso) pudesse ser chamado a pronunciar-se sobre os planos de que é vítima foi suficiente para gerar o pânico nos mercados de todo o mundo. E muito justamente. Porque o modelo de extorsão violenta com que se está a proceder à acumulação de riqueza nas mãos de menos 1% da população não seria viável se existisse uma vida democrática digna desse nome.
Pelo contrário, o actual sistema económico teve a sagacidade de retirar do alcance das decisões políticas democráticas tudo o que verdadeiramente conta para a economia. Quem pode, decide a linha geral. Os seus ideólogos justificam-na. Depois, os papagaios repetem que “não há alternativa”. No fim, o povo escolhe “livremente” quem irá aplicar as medidas impostas pela linha geral, sem nunca poder decidir se aceita ou rejeita essas medidas e a própria linha. Daí o risco enorme de a Grécia referendar os planos de “ajuda” da troika. É que, contrariamente a nós, que nos limitámos a escolher ordeiramente quem ia aplicar o plano pré-estabelecido, o espoliado povo grego poderia ser tentado a espelhar sinceramente nas urnas o que lhe vai na alma e começar a discutir alternativas. Não podemos esquecer que foi ali que se inventou a democracia...

Manda quem pode?


Publicado em: O Gaiense, 29 de Outubro de 2011
A reunião do Conselho Europeu (CE) foi de facto marcante, mas foi-o muito para além do mais do que discutível conteúdo das suas resoluções. Pensemos um pouco: há uns anos, ou até há alguns meses, passaria pela cabeça de alguém que os chefes de Estado e de governo – supostamente as pessoas mais importantes e ocupadas dos seus países –, pudessem ser chamadas a um CE num domingo e depois obrigadas a voltar a Bruxelas na quarta-feira para nova reunião de um órgão que os Tratados estipulam que deve reunir duas vezes por semestre?
Estranho é que esta anomalia não tenha provocado estranheza. A razão é respeitável: o governo alemão agora é obrigado a obter a aprovação do seu parlamento (o Bundestag) para certas posições que toma no CE. Nada a obstar, com uma ressalva: este direito que tem o Bundestag, devem poder tê-lo os restantes 26 parlamentos. Seguindo este princípio, depois de qualquer reunião importante do CE, deveríamos esperar pela aprovação dos 27 parlamentos nacionais para voltar a chamar os chefes de Estado e de governo para continuarem a reunião e tomarem finalmente as suas decisões, ou não, conforme os mandatos parlamentares determinassem.
Não sei se a UE ficaria melhor assim, mas sei que esta sobrevalorização executiva do CE é um golpe contra o Tratado de Lisboa dado pelos seus próprios autores, sendo vítimas colaterais a Comissão Europeia e o seu presidente, supostamente os responsáveis executivos da UE segundo os Tratados, bem como o próprio presidente do CE, outra figura desaparecida em combate. Hoje em dia vale tudo, desde que seja imposto pelos alemães. E os convictos europeístas lá vão metendo a sua convicção e o “ideal europeu” na gaveta.

O tempo do céu e o tempo da terra



Publicado em: O Gaiense, 22 de Outubro de 2011
Na quinta-feira, em Bruxelas, uma grande tenda estava montada, bandeirinhas distribuídas, Barroso e alguns responsáveis da Agência Espacial Europeia mobilizados para a cerimónia que acompanharia em directo, segundo a segundo a partir das 12:34:00, o lançamento em Kourou dos primeiros satélites operacionais do sistema Galileo. Mas os problemas na Soyuz-2 estragaram a festa.
Estes satélites chamam-se Thijs e Natalia, as crianças belga e búlgara que ganharam o concurso de desenhos sobre temas espaciais. Os restantes terão também nomes de crianças de 9 a 11 anos dos outros países da UE, escolhidas da mesma forma; um satélite vai, assim, ter nome português.
Apesar destes atrasos, no coração do sistema Galileo estão os seus relógios hiper-exactos de rubídio e de hidrogénio, tendo estes últimos uma precisão que não admite um erro superior a um segundo por cada 2,7 milhões de anos. Um rigor assinalável, mas que é fundamental, já que o sistema de posicionamento terrestre com aproximação de um metro se baseia em medições do tempo que demora a chegar aos satélites um sinal que viaja a partir dos nossos automóveis ou telemóveis a uma velocidade próxima dos 300 000 km/s.
Este rigor e esta velocidade do sistema europeu de navegação por satélite contrasta brutalmente com a falta de rigor e a lentidão com que têm sido dadas as respostas à crise económica. Por este andar, poderemos vir a ter na UE um excelente serviço GPS que nos custou 5 mil milhões, mas depois não o rentabilizarmos por não termos a quantidade suficiente de cidadãos e empresas com disponibilidade para o usar. Ter a cabeça nas estrelas e os pés na terra é uma bela imagem, o problema é quando os pés são de barro...

Tempo de reação


Publicado em: O Gaiense, 15 de Outubro de 2011
A aprovação, esta semana, pela Eslováquia, do reforço e flexibilização do fundo de resgate conhecido como FEEF, encerrou o processo de ratificação entre os 17 países da Zona Euro. Barroso já estava a ficar desesperado. Esta alteração de emergência, de resposta ao agravamento da crise, foi pedida pela Comissão Europeia em Janeiro deste ano. A 21 de Julho, foi aprovada na cimeira dos governos da zona euro. Agora, em Outubro, terminou o processo de ratificação.
No fim da cimeira de Julho, Barroso tinha proclamado: “É a primeira vez desde o início da crise que podemos afirmar que a política e os mercados estão a unir-se”. No entanto, enquanto “a política” consome dez meses a reagir a uma emergência, “os mercados” fazem-no com um clique no teclado. Estarão portanto “a unir-se” duas realidades que vivem em mundos completamente diferentes e contraditórios.
Para resolver esta contradição, muitos propõem que a decisão política assuma uma velocidade comparável à dos mercados, só assim podendo reagir em tempo útil. O problema é que isso implica abandonar os procedimentos democráticos de deliberação e as prerrogativas que os órgãos representativos eleitos têm no processo de tomada destas decisões que afectam as nossas vidas de uma maneira tão profunda. É um dilema sério. A posição que cada um tem face a este dilema, embora frequentemente não seja expressa, é contudo fulcral no debate político e ideológico em curso na Europa.

Obrigado, Steve


Publicado em: O Gaiense, 8 de Outubro de 2011
Morreu um dos tipos mais geniais da minha geração, mestre da arte de pensar diferente que criou, no árido mundo da informática, um oásis de inovação e criatividade. Há décadas, quem contactava com um Macintosh rapidamente se transformava num “Mac militant”, membro informal de um clube restrito cuja cumplicidade se construía numa cultura de oposição ao cinzentismo dominador da poderosa IBM e do mundo dos PC, um mundo formal de homens engravatados, símbolo do Golias capitalista contra que se batiam os revolucionários Davides da geração Apple. Um famoso anúncio de 1984, chamado precisamente “1984”, dava o tom afirmando que a Apple ia impedir que a profecia de Orwell se concretizasse: o Big Brother informático seria vencido.
Simbolicamente, na Apple não se usava fato e gravata, a farda do inimigo. E usávamos rato quando os PC funcionavam a partir de comandos do teclado. E tínhamos música, imagens e cores quando os outros faziam textos e folhas de cálculo a preto e branco. Tudo isto pode ser um pouco pré-histórico, mas a verdade é que a batalha contra a IBM foi ganha, os PC cada vez mais tentam parecer-se com os Mac e os utilizadores das novas gerações continuam a assistir, produto após produto, à continuação daquela revolução.
É um facto que a Apple é hoje uma grande empresa mundial. Mas Steve morreu de jeans e sem gravata e há algo difícil de explicar do espírito Apple que continua a entusiasmar os velhos militantes da causa. Ainda tenho um Classic e não tenciono mandá-lo para a sucata. Para que o iPad e o iPhone possam conhecer as origens da sua família.

O estado (de guerra) da União


Publicado em: O Gaiense, 1 de Outubro de 2011
Esta semana teve lugar o grande debate sobre o estado da União. No seu longo discurso, Durão Barroso exprimiu com veemência o seu descontentamento com a forma como alguns governos têm impedido a tomada de decisões com a rapidez que a crise exigiria. Esta polémica sobre o modelo institucional da UE está a transformar-se numa luta aberta entre os que defendem uma via de reforço do papel dos governos (de facto de alguns governos) na gestão da União e os que defendem a continuação e aprofundamento do chamado ‘método comunitário’.
Barroso está nesta última posição e começa a ficar desesperado com as interferências e com a lentidão com que alguns Estados-Membros procedem à ratificação de decisões tomadas com carácter de urgência para responder à crise.
Afirmou no seu discurso: “Afastemos [a] ilusão de que podemos ter uma moeda comum e um mercado único com base numa abordagem intergovernamental. (...) Precisamos mais do que nunca da autoridade independente da Comissão, que proponha e avalie as acções que os Estados Membros devem empreender. Os governos, sejamos francos, não podem fazê-lo sozinhos, nem tal é possível através de negociações entre governos. (...) A Comissão é o governo económico da União.
Hoje temos uma União em que é o membro mais lento que dita o ritmo de todos os outros Estados-Membros. (...) A cooperação intergovernamental não é suficiente para fazer a Europa sair desta crise e para lhe dar um futuro. Pelo contrário, um certo tipo de intergovernamentalismo poderá conduzir à renacionalização e à fragmentação e significar o fim da Europa unida que desejamos.”
A guerra está, pois, aberta e o resultado da contenda é imprevisível. Mas uma coisa é certa: o actual modelo da UE já deu o que tinha a dar.

O lugar das mulheres


Publicado em: O Gaiense, 24 de Setembro de 2011
Se o leitor ou a leitora chegasse a uma estação de serviço numa autoestrada e encontrasse nos lugares de estacionamento mais próximos da entrada do restaurante não apenas a habitual placa indicando que esses lugares são reservados para deficientes, mas duas placas, uma indicando que metade desses lugares são reservados para deficientes e uma segunda indicando que a outra metade é reservada para mulheres, certamente que não resistiria a fazer umas piadas de mau gosto sobre a qualidade da condução feminina. Pois bem, na Alemanha ou na Áustria essas placas existem.
Foi notícia, há algum tempo, a criação, num centro comercial da China, de uma zona de estacionamento só para mulheres, com os lugares pintados de cor-de-rosa com largura superior ao normal, para as mulheres conseguirem estacionar sem esmurrar o carro ao lado. Mas na Alemanha, na Áustria e noutros países europeus, a razão da reserva dos lugares só para mulheres em garagens e parques de estacionamento públicos é bem diferente. Resultou de uma exigência dos movimentos de defesa dos direitos das mulheres tendo em vista melhorar as condições de segurança das muitas mulheres que viajam sozinhas, diminuindo os riscos de assaltos que se verificavam, sobretudo à noite, quando deixavam o carro a grandes distâncias da saída ou dos equipamentos a que pretendiam aceder.
Não é, pois, uma aviltante declaração de incompetência automobilística como a outra, mas antes uma medida positiva de defesa da autonomia e da liberdade de circulação das mulheres, respeitando o seu direito a não serem incomodadas. O lugar de estacionamento das mulheres é aquele porque, seja de dia, seja de noite, o lugar das mulheres não é em casa, é onde elas livremente quiserem estar. 

Época de exames


Publicado em: O Gaiense, 17 de Setembro de 2011
Começou uma espécie de novo "ano escolar" na UE. A Europa, que nestes três anos de crise chumbou em todos os testes das cadeiras de economia e finanças, e foi sempre passando com negativa de um ano para outro, com a Grécia em vésperas de bancarrota aproxima-se de uma época decisiva de exames de fim de ciclo.
A mesma sebenta neoliberal tem servido para todas as situações, os cortes e a austeridade têm-se aprofundado e, apesar de os trabalhos práticos terem sido um desastre, a teoria tenta resistir a todos os dados empíricos.
Mas a realidade grega, se se confirmar a hecatombe económica que muitos prevêem, com as respectivas ondas de choque em toda a zona euro e a seguir em toda a UE, pode desta vez tornar impossível que tudo continue na mesma. Um exame decisivo da teoria neoliberal vai ter lugar em Atenas.
Como dizia Karl Marx nos Manuscritos Económicos e Filosóficos: “A solução de um problema teórico é uma tarefa da prática”. Talvez a Grécia, diria mesmo a tragédia grega, possa ajudar a esclarecer o espírito dos cidadãos europeus de uma forma mais eficaz do que os muitos discursos e textos que nestes anos têm vindo a alertar para o beco sem saída a que nos conduz a teoria do "pensamento único" que tem dominado a nossa política económica.