A “refundação capitalista” e os novos desafios da esquerda

Publicado em: Opinião, in Esquerda.net em 27 de Outubro de 2008

A crise actual, e sobretudo as medidas propostas pelos governos para a sua superação, vão levar a uma verdadeira mudança de fase no sistema capitalista? Ou as anunciadas medidas para a «refundação do capitalismo» são sobretudo medidas provisórias, acompanhadas de muita retórica e demagogia, mudando o que for necessário para que, no essencial, tudo fique na mesma?

A verdade é que ainda não sabemos. Não parece possível dar hoje uma resposta devidamente fundamentada a esta pergunta dilemática. Mas, nem por isso, a resposta deixa de ser de capital importância para nós.

Depois de Bretton Woods e da fase keynesiana do pós-guerra, que alterou o capitalismo na forma como tinha sido vivido até então e o adaptou às novas condições históricas daquela época; depois de este modelo ter sido, por sua vez, lenta e definitivamente enterrado e substituído pelo modelo neoliberal, impulsionado desde o tempo de Reagan e Tatcher e que se foi tornando dominante até aos nossos dias, será que estamos hoje a assistir ao vivo ao início de uma nova fase e de um novo modelo de capitalismo que vai substituir o modelo neoliberal, na Europa e a nível global?

Ainda não sabemos. Como também não sabemos exactamente como poderá ser essa eventual nova configuração do capitalismo pós-2008. Não sabemos nós, nem sabem também aqueles que o projectam e protagonizam. Porque a eventualidade de um novo Bretton Woods e a refundação do sistema em novas bases é um projecto em plena criação, ainda em fase de definição das suas linhas gerais. Fase que se caracteriza necessariamente por uma grande incerteza, mas também por uma grande dinâmica; os seus contornos irão certamente ganhar maior nitidez a curto prazo.

É verdade que não temos dados sólidos e consistentes para sustentar a tese de que estamos perante uma verdadeira mudança de fase. Mas, apesar de não constituir ainda uma tese plenamente defensável, parece haver já sinais suficientes para que tenhamos de a considerar como uma hipo-tese, uma hipótese plausível.

A vir a verificar-se esta hipótese, as consequências serão de grande monta para todo o movimento crítico. Porque os nossos instrumentos teóricos e políticos de crítica e combate ao neoliberalismo não serão adequados à crítica e combate à nova forma que o capitalismo irá assumir. Se entramos na nova fase armados apenas com o tradicional argumentário anti-neoliberal, vamos com certeza errar o alvo.

Temos de aceitar que vai seguramente haver um desfasamento entre a elaboração da nossa resposta e o eventual aparecimento de novas fórmulas do sistema capitalista. Este desfasamento é inevitável, porque a crítica tem sempre que se construir depois de o objecto a criticar estar minimamente definido e consolidado.

Mas o perigo que temos de evitar é o de este desfasamento ser excessivo, de as novas respostas tardarem de tal maneira que, nos grandes embates políticos e eleitorais europeus e nacionais que vamos viver em 2009, e que definirão o panorama político para os próximos anos, as populações serem confrontadas com propostas inovadoras (pelo menos aparentemente) das forças da «refundação capitalista», e com velhas críticas do campo anti-capitalista, dirigidas sobretudo ao modelo da fase anterior. Isto criaria uma incomunicabilidade no debate político, que seria desfavorável a quem aparecesse, perante a opinião pública, como estando em atraso face ao momento de transição histórica que estamos a atravessar.

O diálogo ou a barbárie

Publicado em: O Gaiense, 25 de Outubro de 2008

Esta semana, na sessão solene do Parlamento Europeu, em Estrasburgo, o convidado foi Jorge Sampaio, na qualidade de Alto Representante da ONU para a Aliança das Civilizações. Esta sessão integrou o Ano Europeu do Diálogo Intercultural.

Portador de uma mensagem de Ban Ki-moon, Secretário-Geral da ONU, Sampaio lembrou que a Europa, que é hoje um espaço de "enorme diversidade – étnica, cultural e religiosa", é também uma ponte entre civilizações, que deve enfrentar os desafios da imigração e da incerteza económica e política num ambiente de tolerância intercultural e de diálogo.

Para o ex-presidente português são necessárias novas estratégias e novas políticas, baseadas nos direitos humanos, "criando as condições para uma paz sustentável" e dando "prioridade ao desenvolvimento de uma governação democrática da diversidade cultural", concretizadas em "acções europeias, acções de governos nacionais e medidas locais, políticas integradas na educação, juventude e integração de migrantes" e a criação de estatísticas e indicadores que avaliem a implementação dessas políticas.

O diálogo de culturas não se faz só à macro-escala planetária. A diversidade está hoje instalada em cada país, em cada cidade, por vezes na mesma rua ou no mesmo prédio. A abertura ao reconhecimento do outro, daquele que é diferente de nós, é uma componente indispensável do espírito do nosso tempo, um tempo confrontado com a alternativa: o diálogo ou a barbárie. Este século ainda jovem já tem conhecido um pouco de ambos. Vindo de ambos os lados.

Os negócios e a democracia

Publicado em: O Gaiense, 18 de Outubro de 2008

Uma tendência que marcou profundamente os últimos trinta anos consistiu em tentar libertar as grandes opções económicas do alcance da decisão política. A democracia, os governos e os parlamentos - tidos como demasiado inseguros, porque dependentes do voto popular -, deveriam ser impedidos de interferir no funcionamento do mercado que, evoluindo livremente, haveria de produzir o bem-estar para todos.

O que os grandes negócios aparentemente pediam, para se desenvolver, era que a política os deixasse em paz. Ou melhor, que lhes entregasse os sectores públicos rentáveis, e depois os deixasse em paz.

Pediam menos constrangimentos, menos intervenção do Estado, menos regulação. Foi uma ideologia que se tornou dominante, mas foi sobretudo uma receita que permitiu acumular, nas mãos de muito poucos, enormes fortunas e imensos recursos. São esses mesmos recursos que hoje estão em falta nos orçamentos das famílias, nas contas das empresas e no financiamento dos serviços de interesse público.

Vai continuar a ser assim? Ainda ninguém sabe qual será o alcance da crise, muito menos como sairemos dela. Mas uma coisa é certa: durante algum tempo não ouviremos as velhas teses de “menos Estado” e os mais fanáticos defensores das privatizações vão aguardar melhores dias. A economia vai estar por ora sujeita à decisão política e à intervenção do Estado.

Esta pode ser já em si uma vitória da democracia sobre a “mão invisível” dos negócios. Mas o debate transfere-se agora para a definição do tipo de intervenção e das medidas concretas a adoptar. E os suspeitos do costume irão jogar, também neste campo, a cartada dos seus interesses.

A Comissão Europeia e o Tribunal de Justiça contra o Luxemburgo

Publicado em: Global (in Esquerda 31), Outubro de 2008

Continuam as lutas em torno do direito do trabalho na UE


1. O que está em causa

Um recente acórdão do Tribunal de Justiça, no caso que opôs a Comissão Europeia (CE) ao Luxemburgo, veio aumentar a incerteza e a revolta no mundo do trabalho. É uma decisão que se situa na linha outros polémicos acórdãos, como os dos casos Laval, Viking ou Rüffert, a que o Global já se referiu (ver Esquerda 28).

Está em causa uma lei relativa a trabalhadores destacados por empresas estrangeiras para prestarem serviços no Luxemburgo. Trata-se do país com maior percentagem de trabalhadores estrangeiros: imigrantes de longa duração, trabalhadores destacados e outros que atravessam a fronteira diariamente para trabalhar.

A lei previa a obrigação de haver um contrato de trabalho escrito, a adaptação automática da remuneração à evolução do custo de vida, estabelecia que as empresas colocassem à disposição da Inspecção do Trabalho os elementos indispensáveis para a fiscalização, como a identificação dos trabalhadores, qualificação profissional, qualidade em que foram contratados, actividade que exercem, local de trabalho no Luxemburgo e duração dos trabalhos, entidade de segurança social junto da qual esteja seguro e uma cópia do contrato de trabalho.

Qualquer empresa que não se encontre domiciliada neste país estaria obrigada a conservar no Luxemburgo os documentos necessários à fiscalização através de um mandatário ad hoc aí residente.


2. Actualização dos salários pela inflação

Relativamente à actualização automática das remunerações, a CE afirma que a Directiva europeia sobre destacamento de trabalhadores apenas autoriza a regulamentação das remunerações salariais mínimas e não das restantes. Assim, o Luxemburgo estaria a exorbitar das suas competências, ao exigir que qualquer salário seja actualizado pela inflação.
O Luxemburgo alegou que a sua lei tem por objectivo garantir a paz social por proteger os trabalhadores contra a inflação, constituindo um imperativo de ordem pública.

Mas o Tribunal recusou o argumento por considerar que não foi demonstrado se, e em que medida, a adaptação automática dos salários à evolução do custo de vida pode contribuir para a realização da paz social.

Para o Tribunal, esta actualização automática constitui uma derrogação ao princípio da livre prestação de serviços, que só poderia justificar-se por motivo imperativo de ordem pública, o qual deve ser sempre objecto de interpretação estrita e não pode ser determinado unilateralmente, sem controlo da Comunidade Europeia.


3. Imposição de existência de um contrato escrito

O Luxemburgo considerou que a realização de contratos escritos é de interesse público, pois tem por objectivo a protecção dos trabalhadores contra um eventual desconhecimento dos seus direitos e proporciona maior transparência no mercado de trabalho.

O Tribunal contrapôs que esta disposição submete as empresas a uma obrigação a que já estariam sujeitas no Estado onde estão estabelecidas. Acresce que esta obrigação suplementar é susceptível de dissuadir as empresas de exercerem a sua liberdade de prestação de serviços.


4. A fiscalização dos contratos

À Inspecção do Trabalho do Luxemburgo foram atribuídas vastas funções de fiscalização da situação dos trabalhadores destacados. Pode ordenar a suspensão da actividade se o empregador não satisfizer o pedido de informações e dar origem a procedimentos penais.

Diz a CE que é ao Estado de estabelecimento da empresa que cabe fiscalizar a legalidade dos contratos e não ao Estado de acolhimento. Em Portugal, todos sabemos como é eficaz a fiscalização das condições em que se contratam trabalhadores para os destacar temporariamente. As autoridades do Luxemburgo também estão cientes dessa eficaz fiscalização feita em vários países. Daí terem considerado que era sua obrigação confirmar que tudo se passa conforme a lei.

Mas o Tribunal considerou que o procedimento da fiscalização pode ser ambíguo e pode dissuadir as empresas de exercerem a sua liberdade de prestação de serviços, violando o Tratado.


5. Sobre a conservação dos documentos necessários à fiscalização

A CE considera que obrigar as empresas a entregar, no início do destacamento, os documentos necessários à fiscalização, consubstancia uma restrição à livre prestação de serviços, já que a cooperação entre os países da UE tornaria supérflua esta obrigação. Durante o serviço, também não pode ser exigido que os documentos sejam depositados num mandatário residente, já que podem ser conservados na posse de um dos trabalhadores.

Concluído o destacamento, obrigar as empresas que têm sede fora do território a designarem um mandatário encarregado de conservar os documentos, constituiria uma restrição à livre prestação de serviços, já que os inerentes custos poderiam afectar a concorrência e levar algumas empresas a desistir de prestar serviços no Luxemburgo.

O Luxemburgo contrapõe que a cooperação a que a CE se refere não funciona e que a obrigação de ter um depositário era uma exigência indispensável. Mas o Tribunal não concordou.

A reunião da NATO e as vantagens da crise financeira


Publicado em: Opinião - esquerda.net em 12 de Outubro de 2008

Sobre a reunião dos ministros da Defesa dos países da NATO, nos dias 9 e 10 de Outubro, em Budapeste, pairou o espectro da crise financeira e económica global.

O porta-voz da organização, James Appathurai, começou uma conferência de imprensa de apresentação da cimeira com um desabafo informal e humorado, avisando os jornalistas que, se estava com um ar preocupado, é porque o tinham acabado de informar que perdera 80% do seu orçamento: "sinto-me um bocado como a maioria dos bancos europeus". Emendou depois, num tom mais sério, que não conhecia qualquer implicação directa da crise financeira nas operações da NATO, já que a aliança dispõe das verbas necessárias para as operações programadas.

Mas alguns responsáveis civis e militares temem que o seu desejado reforço dos orçamentos militares esteja seriamente comprometido pela injecção maciça de fundos públicos no sistema financeiro.

O que pode, de facto, ter implicações nos projectos da NATO. A aliança quer aumentar a disponibilidade de efectivos dos Estados-membros para operações NATO, passando de 40 para 50% do total dos efectivos nacionais, o que não é bem aceite pelos países que se consideram situados em zonas de vizinhança insegura, como a Polónia, a Turquia e os Estados bálticos, mas também é visto com reservas em muitos outros países, já que o aumento de efectivos a disponibilizar implica o aumento de meios logísticos para a sua deslocação e manutenção, ou seja, mais custos.

Pretende-se também aumentar o número de militares da ISAF (International Security Assistance Force) no Afeganistão, uma força internacional sob comando NATO, cujos efectivos foram já aumentados recentemente de 45 000 para 50 700.
E foi recomendado ao governo afegão um aumento das suas forças armadas até 134 000 homens, o que requereria também um enorme apoio financeiro e logístico da comunidade internacional. Os Estados Unidos, em crise económica e campanha eleitoral, esperam que sejam os seus aliados a fornecer os fundos necessários para apoiar este crescimento do Exército Nacional Afegão. Mas as boas vontades não abundam em tempos de vacas magras.

Irá a crise quebrar temporariamente os ímpetos imperiais e as capacidades operacionais dos EUA e seus aliados, debilitando as suas aventuras militares e tornando o mundo um pouco mais calmo? Ou haverá a tentação contrária de, sob a pressão do complexo industrial-militar americano e europeu, se tentar revitalizar a economia, dinamizar os negócios e criar empregos, produzindo alguns ajustamentos internacionais através de mais acções militares? A luta pela causa da paz tem aqui uma oportunidade, mas os riscos estão presentes.

Uma crise financeira destas proporções é uma ocasião em que milhões de pessoas compreendem muito rapidamente que o actual modelo económico e social neoliberal é um colosso com pés de barro. Isto significa que as suas cabeças estão mais disponíveis para olhar para outras alternativas. Nem sempre as melhores, como a história das crises do século XX dramaticamente nos lembra. Mas não necessariamente as piores, como o século passado também nos mostrou.

Ainda não sabemos como será o olhar da história sobre este período que estamos a viver. Mas sabemos que o ano de 2008 e seguintes e a sua crise, mais passageira ou mais profunda, serão certamente referidos com destaque. Assim como aquilo que nós tivermos conseguido realizar. Ou não.

Caem mais uns dogmas económicos da UE

Publicado em: O Gaiense, 11 de Outubro de 2008

Os líderes dos países da UE que participam no G8 (França, Alemanha, Itália e Reino Unido) reuniram para analisar a crise financeira, em conjunto com os presidentes da Comissão Europeia (CE), do Banco Central Europeu e do Eurogrupo.
O presidente do Conselho Europeu considerou que a "Comissão deve fazer prova de flexibilidade na aplicação de regras em matérias de ajuda do Estado às empresas" e que a "aplicação do Pacto de Estabilidade e de Crescimento deve reflectir as circunstâncias excepcionais" que o mundo enfrenta.

Estes eram dois dos dogmas mais sagrados da doutrina económica da UE. Muitas vezes as oposições tinham dito que, face à crise social e ao desemprego, a rigidez do PEC deveria ser abandonada e que, em alturas de crise, o Estado deveria intervir nos sectores económicos fundamentais. No entanto, as respostas dos governos e da CE sempre foram de intransigente recusa. O desemprego aumentou e muitos sectores económicos entraram em crise sem que qualquer ajuda fosse esboçada, porque as regras do mercado não o permitiam.

Agora, tudo é possível porque a crise já não é apenas dos operários têxteis, dos pescadores ou dos serviços públicos. A crise chegou aos banqueiros e à alta finança. E no coração sensível dos líderes europeus começou a derreter a rigidez dos princípios sagrados do PEC e da concorrência. O apoio público às empresas já não viola as regras da concorrência e se o défice ultrapassar os 3% previsos no PEC, paciência, é por uma boa causa. Até as nacionalizações, esse veneno terrível que tinha sido extirpado com o antídoto radical das privatizações a preço de saldo, até essas estão de volta, sem que isso pareça perturbar a sensibilidade dos fundamentalistas do mercado.

Os governos e o seu povo

Publicado em: O Gaiense, 4 de Outubro de 2008

No domingo, ao ver as televisões belgas, confesso que fiquei emocionado. Enquanto, por toda a Bélgica, os cidadãos normais recuperavam das fadigas do fim-de-semana no conforto dos sofás, o governo, esforçado, diligente, reunia o executivo de emergência. Sim, que eles até trabalham ao domingo à noite, quando é preciso. Os jornalistas transmitiam em directo o conta-gotas informativo com que um ou outro ministro ia alimentando a audiência. Já tarde, veio finalmente a grande decisão, para alívio de todos. O governo belga, em conjugação com o governo francês, ia salvar o banco Dexia. Mesmo a tempo, antes da abertura das bolsas na segunda-feira de manhã.

Dias antes, já tinham salvado da falência o maior banco privado, o Fortis, desta vez em conjunto com a Holanda e o Luxemburgo.

Não é só George Bush que se preocupa e reage. Os europeus também.

É claro que haverá sempre maledicentes que dizem que os governos não se preocupam com o povo, que os pobres de New Orleans continuam à espera que haja dinheiro para reconstruir as casas destruídas pelo Katrina, ou que os serviços de saúde ou de apoio social bem precisariam de mais uns milhões, que são recusados porque as finanças públicas não aguentariam tal despesa. Mas as más-línguas não têm razão. Os governos preocupam-se, actuam com rapidez, encontram o financiamento necessário, seja qual for o montante, quando o seu povo precisa dele.

O que muitos talvez não tivessem entendido bem, pelo menos até ao explodir desta crise, é qual é verdadeiramente o "seu povo". Mas bastou que os banqueiros e altos magnatas da finança estivessem verdadeiramente em apuros, para que os governos esquecessem os objectivos de "menos estado" e a primazia do mercado. E o dinheiro aparecesse, a rodos. Aquele dinheiro que sempre foi negado para as políticas sociais, consideradas irrealistas porque impossíveis de financiar.