Miguel Portas




Publicado em: O Gaiense, 28 de Abril de 2012

Nas 223 cartas semanais que escrevi para O Gaiense tentei sempre respeitar dois critérios que atribuí a mim próprio: não fazer crónicas de carácter partidário, nem de carácter pessoal. Vou tentar hoje manter o respeito por esses princípios, sem qualquer certeza de o conseguir, pelo que vos peço antecipadamente desculpa. Não vos falarei do Miguel, com quem partilhei intensamente o dia a dia destes últimos oito anos, desde que em 2004 ele foi eleito para o Parlamento Europeu e emigrámos para Bruxelas, para uma intensa aventura pelos caminhos complexos, e para nós largamente desconhecidos, da política europeia e internacional. Essa aventura para ele acabou esta semana, num hospital de Antuérpia, com sua a família vinda de Portugal e com aquela espécie de pequena família em que se transformou o grupo de camaradas que partilharam os seus dias europeus.

Prefiro falar-vos da Europa. Da Europa como o Miguel a via e como ajudou todo o Bloco a vê-la. Não como aquela coisa estranha e distante que ainda é para a maioria dos portugueses, mas como a nossa nova casa, onde temos de agir e reagir, sobre a qual temos responsabilidades como temos sobre o nosso pequeno país. É certo que não tem sido conduzida por bons caminhos, mas o nosso país também não e não é por isso que nos desinteressamos dele. Pelo contrário. Se a desgraçada situação que vivemos é, em grande parte, fruto das escolhas políticas que os cidadãos europeus têm vindo a fazer, isso significa que tudo pode ser mudado, basta que os europeus alterem a visão que têm dos problemas que os afectam e se decidam a enfrentá-los com coragem para os resolver. É um longo e duro trabalho, é certo, mas é isso que vale a pena. Pelo menos, o Miguel achava que sim. E a isso dedicou a sua vida.

Hipocrisia espanhola




Publicado em: O Gaiense, 21 de Abril de 2012
O governo espanhol está indignado com a decisão da Argentina de recomprar 51% da empresa YPF - Yacimientos Petrolíferos Fiscales, uma antiga empresa pública fundada em 1922, na presidência de Hipólito Yrigoyen, com a perspectiva de garantir a independência económica e a propriedade pública dos recursos petrolíferos argentinos. Antes de conseguir atingir plenamente estes objectivos, em 1930, o presidente seria deposto por um golpe militar financiado pelas grandes petrolíferas estrangeiras interessadas na exploração dos recursos naturais do país.
Nos anos 90, sob intervenção do FMI, a Argentina viveu uma profunda crise. Na receita habitual estava a privatização de empresas públicas. A YPF foi privatizada e acabaria nas mãos da Repsol. A Repsol, originária também de uma empresa pública espanhola, foi resultado da política de privatização dos anos 80 em Espanha, sendo que recentemente a maioria do seu capital nem sequer tem estado em mãos de fundos ou empresas espanholas; o único Estado que tem uma intervenção directa na Repsol é o México através da Pemex - Petróleos Mexicanos. Aliás, a Repsol em Espanha declara apenas 24,8% dos seus rendimentos globais.
No entanto, o ministro espanhol dos "Asuntos Exteriores y Cooperación" disse que "um ataque à Repsol se considerará um ataque à Espanha". Tanto fervor nacionalista não teria sido mais útil quando eles próprios decidiram vender a Repsol? Ou é indignação que depende do comprador? Ou ela própria comprada?

Está votado que não se pode votar




Publicado em: O Gaiense, 14 de Abril de 2012

Este Tratado orçamental, “um condensado de tudo o que está errado na actual política europeia” (como o classificou Pacheco Pereira), é um triste episódio da história da UE. E a sua ratificação é um dos momentos mais lamentáveis e democraticamente degradantes da história da Assembleia da República.

Custa ver o nosso Parlamento votar a sua própria secundarização nas decisões orçamentais que são da sua competência, substituindo a opção democrática que em cada ano responde às condições concretas do país por uma draconiana regra automática, cega à variação do contexto e das eventuais necessidades dos portugueses e da economia.

Será que os actuais deputados temem que os que forem eleitos a seguir possam ter opinião diferente da sua em matéria orçamental? Ou não confiam que os seus sucessores possuam aquela clarividência rara que só a eles iluminou? Estranha falta de confiança de uma imensa maioria que sempre dominou a Assembleia da República... E se os próximos eleitos do povo vierem a ter uma opinião diferente, que direito têm os deputados de hoje de perpetuar numa blindagem legal as suas actuais opiniões orçamentais, impedindo os seus sucessores de decidir tão livremente como eles próprios puderam fazer?

Esta é uma velha questão da teoria política: será democrático votar que não se pode mais votar?

O Eurogrupo e o fogo





Publicado em: O Gaiense, 7 de Abril de 2012

A decisão mais mediática da reunião dos Ministros das Finanças do Eurogrupo foi a constituição de uma “firewall” (literalmente: parede corta-fogo) para protecção da zona euro face aos ataques especulativos dos mercados financeiros. O mecanismo resulta da combinação do FEEF – Fundo Europeu de Estabilidade Financeira, um fundo temporário que manterá os programas existentes no valor de cerca de 200 mil milhões de euros, com o novo MEE – Mecanismo Europeu de Estabilidade, de caráter permanente, com um volume máximo de empréstimo de 500 mil milhões. Somando os 102 já comparticipados pela UE nos empréstimos à Grécia, Irlanda e Portugal, temos então uma “firewall” de pouco mais de 800 mil milhões. Um valor insuficiente se for preciso fazer empréstimos à Espanha ou à Itália. Um valor substancialmente abaixo do bilião que tinha sido proposto. Mas temos, ao menos, uma “firewall”.

É já um reconhecimento importante: a parede corta-fogo é uma proteção contra as chamas dos mercados financeiros que têm especulado contra as dívidas soberanas, aprofundando a crise. Porém, qual é o objectivo assumido nos programas de resgate? Que os países possam voltar a financiar-se nos mercados financeiros, ou seja, quando parecerem salvos, serão lançados de novo para o fogo. No caso de Portugal, a condenação à fogueira está marcada para 23 de Setembro de 2013.

Não seria mais inteligente, para além de construir um corta-fogo, tentar apagar o fogo? Há soluções para que os Estados se possam financiar fora dos circuitos especulativos dos mercados, nomeadamente através do Banco Central Europeu, que nos últimos meses já disponibilizou aos bancos privados mais do que o valor total desta “firewall”, cobrando-lhes apenas 1% de juro, taxa que faria sonhar qualquer Ministro das Finanças e que ajudaria a resolver o endividamento dos Estados chamuscados pelo fogo da especulação. Mais decisivo do que fazer paredes corta-fogo seria cortar o alimento ao fogo, como qualquer bombeiro principiante poderá confirmar.