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Gaia - A Praça de Natal de 2019


Texto publicado em O Gaiense, 22 de Dezembro de 2018


As praças e mercados de Natal são uma tradição que se está a enraízar no nosso país e a Praça de Natal de Gaia, inserida nesse movimento, é uma excelente ideia. Embora haja muito espaço para evoluir, tudo o que lá está me parece bem: os divertimentos, que acho bem que sejam grátis, os programas de animação, a casa do Pai Natal e as suas prendas solidárias, ou até a carrinha que não só transporta as pessoas como, talvez mais importante, vai abrindo o caminho para a ideia e para a prática mais alargada do transporte público municipal gratuito, ao serviço das populações, que é uma ideia estratégica com grande futuro.

Mas, passeando na Praça, senti que faltava ali qualquer coisa de fundamental e é sobre isso que vos queria falar. Não como uma crítica à Praça de Natal 2018, mas antes como uma sugestão para a Praça de Natal de 2019.

Senti que faltava ali comércio. Eu, que até sou altamente crítico da paranóia comercial em que o capitalismo conseguiu transformar esta quadra que devia ser só de amor e de solidariedade, que não gosto nada da obsessão das prendas de Natal, acho contudo que não podemos ignorar essa realidade. Um objectivo interessante para 2019 seria que o nosso Mercado de Natal, que hoje tem na Praça uma escassa dúzia de barraquinhas e uma limitadíssima gama de produtos, se transformasse num grande Mercado de Natal, que os gaienses (e os turistas) pudessem escolher como um sítio bom para irem comprar as suas prendas de Natal. Com dezenas e dezenas de barraquinhas, não numa lógica de shoppingcomercial, mas precisamente como alternativa, e suficientemente forte e atractiva para ser uma verdadeira alternativa àquela outra lógica de negócio, bem menos natalícia. E temos ainda muito espaço por ocupar lá naquele local do centro cívico, que dá perfeitamente para sermos ambiciosos neste projecto.

Mas, para conseguirmos ter êxito nessa lógica "comercial" alternativa, seria preciso fazer um programa atempado e ambicioso de ocupação das novas barraquinhas de venda. Com quem?

Uns ocupantes óbvios seriam os artesãos e os artistas do concelho, que teriam de ser aliciados a participar. E também a própria Câmara e todas as instituições municipais e de freguesia que tenham algo para vender: as suas edições de livros, de reproduções de arte ou outros objectos. Mas também as associações, e temos tantas em Gaia. Ou outras instituições culturais, ou os bombeiros, os escuteiros, os clubes desportivos, também. 

Mas, mais importante ainda do que estas instituições, seria a participação das escolas, das creches, dos lares, dos centros paroquiais. 

Não seria interessante que as crianças, durante todo o primeiro período lectivo, no âmbito das suas actividades ligadas às artes visuais, dando asas à sua criatividade, projectassem e fabricassem decorações natalícias para eles próprios irem vender na sua barraquinha durante as férias de Natal?

Ou os utentes de um lar? Não poderiam os idosos mais dotados para a cozinha (por exemplo) fazer doces ou rabanadas para venderem naquele mercado? E estarem lá eles mesmos a vendê-los, a conviver com o público, a praticar o seu raciocínio matemático com os trocos e o fecho de caixa? Talvez até com o aliciante de servirem as suas iguarias acompanhadas por um cálice de Porto que, estou certo, as nossas empresas de vinho, sempre generosas, não hesitariam em oferecer a estas instituições para as ajudar neste projecto. Tudo isto pode constituir em si uma actividade de grande relevância para os próprios projectos educativos ou de animação daquelas instituições. Mas também cria laços diferentes e mais fortes na comunidade gaiense. É o convívio, ou seja, a nossa vida em comumque se reforça.

Isto é comércio que é muito mais do que comércio. Tem outro espírito e tem outros objectivos. E permite também à Praça responder melhor a toda a família. Se as crianças e jovens vão à Praça de Natal para se divertirem, os pais podem ir com eles para irem às compras. 

Vivi muitos anos em cidades da Europa onde existe grande tradição destas feiras de Natal e muitos dos meus amigos, que faziam as suas compras normalmente nos shoppings, no Natal só compravam as prendas nestas feirinhas - prendas com espírito natalício. Diziam até que se sentiam mal se fossem fazer as compras de Natal noutro sítio, não era a mesma coisa…

Se conseguirmos trazer este espírito e esta tradição para Gaia, estamos a dar mais um passo no bom sentido: não só melhoramos a vida colectiva no concelho mas, mais do que isso, melhoramos um pouco o sentido da vidada nossa comunidade. E esse é que é o verdadeiro espírito do Natal.








O Rancho Folclórico da Afurada no Almoço de Natal Sénior de Santa Marinha e S. Pedro da Afurada:







Mensagem aos gaienses na morte de João Semedo


[ Texto para o semanário "O Gaiense", 21 de Julho de 2018 ]



Não podia deixar de responder positivamente ao convite d'O Gaiense para dirigir umas palavras aos leitores sobre a morte de João Semedo, um dos mais prestigiados políticos portugueses e um dos mais admirados dirigentes do Bloco de Esquerda.

Nestes dias que se seguiram à sua morte, todos ficaram a conhecer melhor o João, tal a quantidade de artigos de jornal, de programas de televisão, de testemunhos vindos de todos os quadrantes políticos, sublinhando as qualidades e a grandeza do político e do homem que o país acaba de perder.

Talvez seja um bom momento para reflectirmos neste defeito bem português de darmos mais valor às pessoas depois de as perdermos. Não que o João não tenha sido respeitadíssimo em vida: sempre foi. Mas hoje talvez muitos compreendam que deveria ter sido ainda mais.

O João Semedo foi candidato à Câmara de Gaia em 2009 e os gaienses não o elegeram para vereador. Conhecendo-o hoje melhor, podem pensar no que perderam, no enorme contributo que poderia ter dado para a elevação da nossa gestão municipal, para a qualidade de vida sobretudo dos nossos concidadãos para quem a vida é mais dura e difícil, que sempre foram os destinatários privilegiados da atenção e da acção política do Semedo.

Com um especial destaque na área da saúde em que, como médico e como político, deu contributos de inestimável qualidade e que vão ser de enorme relevância para enfrentarmos a difícil situação que o nosso Serviço Nacional de Saúde atravessa, fruto do desgaste que intencionalmente lhe tem sido causado em benefício dos negócios privados, que continuam a sugar os recursos que deveriam ser usados para benefício de todos.

Um dos grandes legados que nos deixa João Semedo, fê-lo em conjunto com outro grande político, o "pai do SNS" António Arnaut, um bloquista e um socialista, ambos conscientes da sua morte iminente e da urgência de lançar um alerta lúcido à sociedade e uma proposta detalhada de uma nova lei que possa salvar esta conquista fundamental da nossa democracia. Esta proposta de lei já foi entregue pelo Bloco no Parlamento e veremos se as palavras de profundo elogio dirigidas a cada um dos seus autores aquando das suas mortes recentes são concretizadas na aprovação da lei que nos deixaram como último contributo das suas vidas ao serviço de todos nós.

Uma coisa a morte de João Semedo veio definitivamente demonstrar: a falsidade da frase de que "os políticos são todos iguais". Não, não são. Essa afirmação, por vezes puramente boçal e ignorante, por vezes expressão de um intencional veneno anti-democrático, esbarra fatalmente em exemplos de vida como a de João Semedo: pura e desinteressada dedicação à causa pública. Que o exemplo deste homem que parte possa inspirar os políticos que ficam. E faça pensar todo o povo que os elege.

Há 500 anos, um português explicava ao mundo “a melhor forma de governação”





Há 500 anos, um português explicava ao mundo
“a melhor forma de governação”


Renato Soeiro
(Texto publicado no jornal “O Gaiense”, 31 de Dezembro de 2016)




ANIVERSÁRIO MARCANTE
Fez agora, neste mês de Dezembro de 2016, precisamente meio milénio que, num livro escrito em latim (a língua internacional da época) e publicado em Lovaina, o português Rafael Hitlodeu, marinheiro viajado e dotado de cultura clássica grega e latina, explicava ao mundo, com impressionante detalhe, aquela que lhe parecia ser “a melhor forma de governação” (é a expressão que figura no título do livro).


Esta obra viria a ter um enorme e imediato impacto na Europa: poucos meses depois sai uma segunda edição em Paris, seguida de outras duas em Basileia e uma quinta em Florença. Nesta, pela primeira vez, aparece no título a palavra por que ficaria conhecida até hoje: Utopia. É um dos livros mais marcantes da cultura europeia e, ao longo dos séculos, continuou – continua – a ser publicado e difundido em todo o mundo. Tão popular a Utopia se tornou que chegou até a ter, logo no século XVII, várias edições em práticos formatos de bolso, tão minúsculos como 6,5x5 cm ou 10,5x5,5 cm.


O seu autor: o inglês Tomás Moro (Thomas More), um dos grandes intelectuais europeus do século XVI, Provedor dos Direitos dos cidadãos de Londres, opositor militante dos impostos com que o rei esmagava o povo para financiar o seu luxo e as suas guerras, deputado ilustre, diplomata, chanceler do reino, homem da igreja e da universidade. Haveria de ser preso e decapitado em 1535 por se recusar a aceitar as pretensões do rei Henrique VIII sobre a regra de sucessão e sobre a chefia da igreja, entre protestos imensos de toda a Europa culta, que conhecia e admirava o autor da Utopia, um dos textos maiores do Humanismo renascentista.


Essa admiração nunca morreu. Tomás Moro ficaria para a história como uma das grandes referências para pessoas de diferentes épocas, diferentes geografias e diferentes ideologias. 
Dois exemplos: meses depois da vitória da Revolução Russa de 1917, Lenine fez gravar num obelisco comemorativo numa praça de Moscovo o nome de Tomás Moro ao lado de Marx e Engels, entre outros; em 1935, nos 400 anos da sua decapitação, a Igreja Católica procedeu à canonização do que é hoje São Tomás Moro. 



Convenhamos que só uma personalidade verdadeiramente excepcional conseguiria ser simultaneamente um herói para os revolucionários marxistas e um santo para a igreja. Isto apesar de a mesma igreja ter colocado a Utopia, durante muito tempo, no Index dos livros proibidos, nomeadamente nesta pátria de Hitlodeu, proibição que a Inquisição zelosamente fazia cumprir.
A nós, portugueses, não pode deixar de nos encher de orgulho que o ilustre autor tenha colocado na boca de um nosso conterrâneo todo o relato e todas as propostas contidas nesta sua obra-prima. No ano em que redigiu a Utopia – 1515 – Moro esteve em Bruges e em Antuérpia, integrado numa missão diplomático-comercial inglesa. Para esta cidade, novo e pujante entreposto comercial e praça financeira internacional de primeiro plano, se tinha transferido, no virar do século, a feitoria real portuguesa, que antes tinha estado em Bruges. Aí vivia uma numerosa e influente colónia de mercadores portugueses e aí aportavam constantemente as nossas embarcações. Moro, já bom conhecedor dos feitos marítimos de Portugal pelos textos e relatos que circulavam na Europa culta, terá contactado nesse porto da Flandres com a nossa gente do mar, falado com vários “Rafaeis Hitlodeus” e obtido talvez uma última inspiração para o seu livro.



ACTUALIDADE DESCONCERTANTE
O livro é apresentado como uma longa conversa que Tomás Moro, acompanhado pelo seu assistente John Clement, tem com um navegador português que lhe é apresentado por Pedro Gilles, cidadão de Antuérpia. Os quatro resolvem ir para o jardim da casa onde Moro estava instalado, para ouvir os relatos de Rafael sobre os novos mundos que conhecera nas suas viagens. 


A conversa é longa e variada; numa primeira parte analisa-se em detalhe os usos e costumes da sociedade inglesa, que o português terá conhecido bem e sobre a qual emite profundos juízos críticos; e fala-lhe depois de uma ilha onde encontrou uma civilização em que “administram as suas coisas com mais saber que nós as nossas”; Moro quer conhecer tudo sobre a vida e a organização da sociedade nessa terra que Rafael tanto admira e propõe que parem para tomar uma refeição, para depois continuarem “sem se importar com o tempo que vai demorar”.


Esta outra parte da conversa, tida depois de comer, constitui o Livro Segundo desta obra. Nele, o português faz um relato extremamente pormenorizado da vida na ilha da Utopia, abarcando todos os aspectos da sua organização política, social, administrativa e dos hábitos quotidianos dos seus habitantes. Não é uma sociedade primitiva, como outras que conheceu, mas uma sociedade avançada e culta, conhecedora tanto das culturas e civilizações clássicas, como dos problemas do resto do mundo contemporâneo.
É, obviamente, uma descrição muito datada, que reflecte os conhecimentos e as preocupações da época. Mas é interessante notar até que ponto denota um enorme avanço em relação aos cânones então vigentes e que haveriam ainda de perdurar dolorosamente até aos nossos dias. Seja sobre a justiça social, a distribuição da riqueza, a propriedade privada, o sistema de saúde e a protecção na velhice, os cuidados paliativos e até a questão da eutanásia, os direitos dos imigrantes, os horários de trabalho, ou mesmo sobre os tratados internacionais, os sistema de leis e os advogados, o urbanismo e a recuperação de casas antigas, a liberdade religiosa, o divórcio e até a crítica da caça e da astrologia e outras adivinhações. Entre muitos outros.
O leitor ficará certamente espantado com a desconcertante actualidade da forma como estes temas são abordados, fazendo pensar nas razões por que, meio milénio depois, ainda nos confrontamos com os mesmos problemas para os quais Moro tinha descrito possíveis soluções. Há várias edições em português, das quais destacamos uma recente e excelente edição da Fundação Calouste Gulbenkian. Aqui fica o desafio para uma leitura de enorme proveito para todos.


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E, para abrir o apetite, aqui ficam alguns extractos, retirados dessa edição:

Justiça social:
“De facto, que justiça é essa que faz com que alguém, por ser fidalgo ou por transaccionar dinheiro ou por se entregar à usura (enfim, seja ele quem for daqueles que ou nada fazem ou aquilo que fazem é como se nada fizessem em favor da comunidade), consiga uma vida lauta e esplêndida sem fazer nada ou em actividade supérflua, quando entretanto um intendente, um condutor de carros, um artesão, um agricultor, que aguentam trabalho penoso e ininterrupto (…) recebem um alimento tão fraco, arrastam uma vida tão miserável (…)?! Ora, não só é um trabalho sem recompensa e sem frutos que lhes retira o incentivo no presente como também é a perspectiva de uma velhice de indigência o que os mata, tanto mais que o seu salário do dia-a-dia é de si insuficiente para acorrer às necessidades diárias e está longe de sobrar para lhes permitir poupar cada dia alguma coisa que sirva em tempo de velhice. (…) Depois de se ter servido do seu trabalho em idade em que gozavam de forças, quando eles ficam carregados de anos e de doenças e necessitados de todas as coisas, não se lembrando de tantas vigílias, esquecendo tantos serviços, ela, para cúmulo de ingratidão, paga-lhes com uma morte da pior espécie. E quê? Até no salário do dia-a-dia que é concedido à gente pobre os ricos diariamente rateiam alguma coisa, não apenas em fraude privada, mas até com o apoio das leis (…).
É por isso que, quando olho para os Estados que hoje se apresentam em prosperidade, dou comigo a pensar (Deus me é testemunha) se não está a ocorrer uma conspiração de ricos que usurpam o nome e a autoridade do Estado para tratarem dos seus próprios interesses, congeminando e maquinando todos os modos e todas as estratégias para, primeiro, ficarem com os bens que desonestamente açambarcaram, sem medo de os perderem, depois, para pagarem o mínimo possível de mão-de-obra aos pobres e para deles abusarem. Estas maquinações, desde que alguma vez os ricos as promulguem em nome do bem público, isto é, em nome também dos pobres, logo se tornam em leis. Ora, estes homens, mais que abjectos, que com insaciável cupidez repartem entre si aquilo que bastaria para a todos acorrer, quão longe estão da bem-aventurança do mundo da Utopia!”

Distribuição da riqueza:
“[I]magine-se um ano sem produções e sem colheitas, em que a fome dizimasse muitos milhares de pessoas. Eu sustento, sem rebuços que, se no final deste período de carestia, se batesse à porta dos celeiros dos ricos, haveria de poder-se encontrar tanto cereal que, a ser distribuído entre todos aqueles de que a fome e a peste tomou conta, ninguém haveria de sentir minimamente a escassez causada pelas condições de clima e de solo. Seria tão fácil arranjar alimento, se o afortunado dinheiro, engenhosamente inventado para abrir as portas ao alimento, não fosse ele a barrar-nos o caminho para ele!”

Os ricos:
“Espanta-os também que, sendo o ouro, por própria natureza, tão pouco útil, tenha adquirido, hoje, em todo o lado, tanto valor que o próprio homem, por quem e para cuja utilização esse valor foi constituído, seja tido em menor estima que o ouro em si, de tal maneira que um bronco, que não tem mais inteligência que um cepo, nem menos descaramento que um tonto, acaba, apesar de tudo, por ver submetida a si muita gente, mesmo sapiente e boa, apenas por uma razão, a de lhe ter cabido um pecúlio de moedas de ouro (…) por um capricho da fortuna ou por qualquer artimanha das leis (…).
Uma outra coisa os espanta e eles detestam: a insensatez daqueles que, não devendo a ricos nem lhes estando sujeitos em nada, sem outro motivo que o de eles serem ricos, lhes prestam honras, que só faltava fossem divinas, muito embora sabendo que eles são tão sórdidos como gananciosos, para terem um pecúlio tão seguro e certo de dinheiro, e que, enquanto eles forem vivos, nem uma moedinha, alguma vez, lhes virá desse lado.”

Propriedade privada:
“Efectivamente, quando cada um se pode prevalecer de certos títulos para avocar a si tudo o que pode, seja qual for a quantidade de bens, poucos haverá que sejam admitidos a repartir o que existe, aos outros deixá-los-ão na miséria. Quase se diria que uns são muito mais merecedores que outros dos favores da sorte; enquanto uns são rapaces, desonestos e passam a vida na ociosidade, outros são modestos, simples e, nas tarefas quotidianas, mais dedicados ao interesse público que à procura do interesse pessoal.
É minha convicção firme que uma distribuição segundo critérios de equidade ou uma planificação justa das coisas humanas não é possível sem eliminar totalmente a propriedade privada.”

Horário de trabalho:
“(…) fazer com que ninguém passe a vida na ociosidade, mas cada um se entregue com afinco ao seu ofício, sem todavia se esfalfar desde a madrugada até à noite, sempre a trabalhar como bestas de carga. Tal forma de vida seria um peso maior que o de escravos; será a que levam em muita parte os trabalhadores, mas não na Utopia. Os seus habitantes dividem o dia, incluindo a noite, em vinte e quatro horas de tempos iguais: seis horas são dedicadas a trabalhar, três antes do meio dia, depois das quais tem lugar o almoço, que se prolonga pela sesta em descanso, retomando de seguida o trabalho durante três horas para tudo terminar com a refeição principal. (…) O tempo que houver entre as horas de trabalho e as de sono, com o comer pelo meio, cada um é livre de o utilizar como lhe aprouver (…). A maior parte consagra às letras estas horas de folga (…).
Havendo seis horas apenas para trabalhar, talvez alguém pense que daí decorre provavelmente uma certa falta de bens de primeira necessidade. Isso está longe de acontecer, pois esse tempo é suficiente para produzir bens abundantes que bastem para as necessidades e que cheguem não apenas para remediar, mas até sobrem.
Isso se compreenderá melhor se pensarmos que noutros povos há grande parte da população que passa a vida sem fazer nada. (…) A verdade é que, quando tudo se mede por dinheiro, se tornou inevitável exercer ofícios completamente inúteis e supérfluos, para servirem a ostentação ou bem assim a ganância. (…) Mas se todos aqueles que agora se entregam a mesteres inadequados e se toda essa multidão que acima de tudo vai enfraquecendo no ócio e na preguiça (…), se todos eles fossem postos a trabalhar e se isso se fizesse em coisas úteis, facilmente nos daríamos conta do pouco tempo que seria necessário para produzir tudo o que racionalmente se poderia prever como indispensável ou que o conforto postula (ou até mesmo uma parte de prazer que seja admissível e natural); nestas condições haveria abundância e haveria sobras.”

Manutenção de edifícios:
“Um outro factor de economia é de mencionar: na maior parte dos mesteres que produzem bens indispensáveis, há menos trabalho a executar que noutros povos. Efectivamente, por toda a parte, a manutenção dos edifícios ou a sua reparação exigem de muitos trabalho tão contínuo e generalizado que aquilo que o pai edificou um herdeiro pouco avisado deixa degradar a pouco e pouco (…); não é menos frequente que uma casa só se mantenha de pé devido a enormes gastos de outrem; ora a esta um outro, com espírito calculista, põe-na de parte e, ao ser abandonada, a breve trecho cai em ruínas; constrói ele uma nova noutra parte com gastos bem maiores.
Ora, na Utopia, onde todas as coisas estão previstas e onde a governação é bem gerida, muito raramente acontece que se eleja uma nova zona para levantar uma moradia; e não só se remedeiam rapidamente as deficiências manifestas, mas também se previnem as que ameaçam vir a ocorrer. Deste modo, com um trabalho mínimo, os edifícios aguentam-se por muitíssimo tempo.”

Imigrantes e viajantes:
“Todo o visitante que ali chega para tomar conhecimento da terra e se salienta por algum predicado intelectual ou pela experiência de ter viajado muito (…) é recebido com demostrações de simpatia. Na realidade, de bom grado prestam ouvidos ao que lhes contam do que acontece em qualquer parte do mundo.”
(…) [A]lguém de outro povo, trabalhador e pobre, que, de um momento para o outro e por própria iniciativa, escolhe colocar-se ao serviço dos utopienses. São tratados com respeito e nada se lhes impõe a mais que não seja do trabalho a que aliás estão habituados; não os tratam com muito menos deferência que aos cidadãos, deixam-nos partir se algum decide ir embora (o que não acontece senão raramente) e não obrigam a ficar quem não tem vontade disso nem o deixam ir de mãos vazias.”


Justiça:
“Dá-se assim o caso de a justiça no seu conjunto parecer que não é mais que virtude plebeia e de baixa extracção, sentada muitos degraus abaixo do trono régio, ou então que há duas justiças, uma que vale para o povo, que caminha a pé e ao nível do solo, sem ser capaz de alguma vez saltar as barreiras, limitada com peias por todos os lados, outra, a virtude dos príncipes que, sendo mais elevada que a do povo, também é de longe a mais liberal, de tal modo que só não lhe é permitido tudo quanto não lhe apraz.”

Leis e advogados:
“As leis são muito poucas, pois bastam umas tantas para quem possui tais instituições. Aliás, aos outros povos os utopienses censuram principalmente o facto de precisarem de um sem número de livros de leis e de comentadores. Por parte deles, consideram que é uma iniquidade enorme obrigar os homens ao cumprimento de leis que pelo facto de serem tantas não conseguem lê-las ou que pelo facto de serem tão obscuras ninguém as consegue entender; por isso é que dispensam de forma radical os causídicos – que se habituaram a tratar as causas com astúcia e discutem as leis com perfídia.”

Tratados:
“É facto que na Europa, sobretudo nos países em que vigora a fé e a religião cristã, proclama-se soberanamente o carácter sacrossanto e inviolável dos tratados (…). A justo título, realmente consideram que é uma vergonha inqualificável que seja a gente que a si mesma se designa com o nome peculiar de fiéis aquela que mais falta ao cumprimento dos compromissos dos tratados que assinou. (…) [Q]uanto mais eles se envolvem em cerimonial sacrossanto mais depressa se dissolvem, sendo até fácil descobrir que há sempre motivo de chicana nas palavras, que aliás, os próprios ditaram com tanta astúcia que lhes é possível nunca ficarem vinculados de forma escrita, sem retirarem alguma coisa e sem se furtarem igualmente ao cumprimento do tratado e da palavra dada.”
“(…) [E]ssa prática até parece levar os homens a crer que nasceram para serem adversários e inimigos uns dos outros e que têm por obrigação investir uns contra os outros, a menos que haja tratados a proibi-lo; assim, não é por haver tratados celebrados que se cultivam as boas relações de amizade, pois continua a haver direito de pilhagem, sempre que, por imprevidência dos redactores de um tratado, nenhuma interdição a esse respeito ficou compreendida e acautelada nos pactos. Ora, ao contrário de tudo isto, consideram eles que ninguém deve ser tomado por inimigo, se dele nunca partiu qualquer ofensa. Partilhar a mesma natureza vale de pacto, basta e é preferível que os homens vivam unidos entre si mais por bem quererem do que por protocolos, mais pelo coração do que pelas palavras.”

Liberdade religiosa:
“Facto é que entre as suas leis mais antigas se conta a de que ninguém pode ser desconsiderado por causa da sua religião. Com efeito, logo de início, Útopo (…) estipulou que cada um seria livre de seguir a religião que quisesse, mas que só podia angariar adeptos para ela expondo as suas razões de modo pacífico e com moderação, sem investir contra as outras de forma desabrida, doutrinando, mas através da persuasão, evitando toda a forma de violência e debatendo com moderação (…). Com razão pensava ele que exigir sob violência, ou sob ameaças, que todos reconhecessem como verdadeiro aquilo em que cada um acredita isso ultrapassava os limites e era insano. (…) Por tal motivo, Útopo colocou toda esta questão em aberto e deixou liberdade a cada um de decidir quanto àquilo em que se obrigava a acreditar.”



A guerra:
“A acção bélica, [em latim bellum], é algo de verdadeiramente bestial, [em latim belluinum], mesmo que não haja qualquer tipo de bestas para quem ela seja tão frequente como para o homem o recurso a ela; muito embora tal aconteça por parte do homem, é rotundamente proscrita pelos utopianos e, ao invés do que se passa em todas as nações, a custo se encontrará coisa tão desqualificada como a glória que se busca na guerra.”

Astrologia:
“Quanto à conjunção ou oposição dos planetas e a toda essa impostura que é a adivinhação pelos astros, nem sequer sonham com isso. (…)”
“Quanto a augúrios e a outras adivinhações de vã observância, a que é prestada muita atenção noutros povos, pela parte deles não lhes conferem qualquer importância e troçam dessa prática.”

Saúde:
“(…) [E]m primeiro lugar, colocam o cuidado dos doentes, que são tratados nos hospitais públicos, (…) tão amplos que (…) ninguém tem de ficar apertado e por isso em más condições (…). Estes hospitais estão tão bem planeados e tão completamente dotados de equipamentos de saúde, e, além disso, os cuidados são aí prestados com tanto carinho e solicitude, tão assídua é a assistência de médicos da maior competência, que, muito embora ninguém para ali seja enviado contra vontade, poucos serão, de verdade, os que (…) numa situação de doença, não prefiram estar ali do que ficar acamados em sua casa.”
“Dos prazeres que o corpo solicita, cabe a palma à saúde, pois têm bem presente que a satisfação de comer e de beber e tudo aquilo que corresponde a um plano de gozo da vida deve ser posto como finalidade mas em razão da saúde. (…) [O] homem de bem-pensar prefere esconjurar as doenças a optar por remédios, dar luta à dor a andar em busca de paliativos.”

Cuidados paliativos e eutanásia:
“[O]s que sofrem de doença incurável, procuram assisti-los e entretê-los com momentos de conversação, levando-lhes mesmo algo que lhes possa servir de paliativo. No entanto, se a doença não é apenas incurável, mas também se prolonga de forma acabrunhadora e intolerável, então, os sacerdotes e os magistrados, atendendo a que o doente já não consegue corresponder às funções vitais (…) ou que está apenas a sobreviver penosamente à sua própria morte (…) [aprovam que não] hesite em assumir a morte, já que a vida é para ele um tormento; (…) uma vez que pela morte não rompe com uma vida feliz, mas com um suplício, seria de todo sensato que assim procedesse (…). No entanto, por eles, os utopianos não forçam ninguém a isso nem diminuem o que quer que seja dos cuidados que antes lhes prestavam. Há, contudo, respeito por quem se deixar persuadir a morrer desta forma.”

Caça:
“Ou haverá maior sensação de prazer quando um cão persegue uma lebre do que quando corre atrás de outro cão? Na realidade, trata-se da mesma coisa, se é que é o correr que desencadeia o prazer! Pelo contrário, se é a espera do sangue e a expectativa da dentada que retêm suspenso o olhar, deve mover sobretudo à compaixão observar que um lebracho é desfeito por um cão, um fraco por outro mais forte, enfim, um ser inofensivo por outro que é cruel. Por isso os utopienses repudiam esta prática da caça, como coisa indigna para homens livres, remetendo-a para carniceiros (ofício que entregaram, como dissemos, nas mãos de serviçais). De facto, consideram que a caça é a parte mais degradada desse ofício de talhante, quando comparada com outras acções mais úteis e mais honrosas, que são de muito maior proveito; aliás, os talhantes não matam os animais senão por necessidade, ao passo que o caçador mata e destroça um animalito só por um pouco de prazer. Consideram eles que é indigno o anseio de assistir à matança dos animais e que ou brota de uma sensibilidade que roça pela crueldade ou procede de prática insofrida de prazer tão desenfreado que acaba em crueldade.”

Divórcio:

“Quanto ao mais, acontece por vezes que há esposos cujos temperamentos se tornam incompatíveis entre si e ocorre também que um e outro encontram alguém com quem criam expectativas de formar uma vida mais harmoniosa; separando-se um do outro por comum acordo, contraem novos matrimónios, mas não sem entretanto receberem autorização do senado, o qual, todavia, não admite o divórcio senão depois de ter sido instruída cuidadosamente a causa pelos próprios interessados com suas esposas.”


Retorno à normalidade


Publicado em: O Gaiense, 19 de Março de 2016



Não há memória de um Orçamento de Estado ter sido alvo de tanta polémica, tanto debate e tanta especulação. E contudo, o que este orçamento visa é, tão somente, um mero retorno à normalidade.

Que quem ganha menos possa ser ligeiramente aumentado, que ordenados e pensões há muito contratualizados sejam pagos com respeito por esses contratos, que as pessoas de menos recursos que têm direito à tarifa social de electricidade tenham mesmo acesso à tarifa social de electricidade, que os proprietários de imóveis sujeitos a IMI paguem IMI, quer se chamem José da Silva ou Fundo de Investimento Imobiliário, que no ensino básico, universal e gratuito, os manuais sejam igualmente universais e gratuitos, tudo isso deveria ser visto, há muito, como a perfeita normalidade de uma sociedade decente e desenvolvida. Mas não. Estas evidências normalíssimas são consideradas por sectores passadistas como ousadias irresponsáveis. O que diz muito sobre o estado deplorável a que tínhamos sido reduzidos.

Curiosamente, e numa aparente contradição, este retorno à normalidade está a ser protagonizado por um arranjo político que não era, até agora, considerado "normal", por incluir partidos que se considerava impróprios para responsabilidades governativas (Cavaco dixit). Mas talvez até neste aspecto estejemos, finalmente, a viver um retorno à normalidade democrática.

Verdadeiramente anormal foi o conjunto de malfeitorias a que, como povo, fomos sujeitos nos últimos anos. Às quais nenhum retorno é desejável.

Gente da mesma rua





Publicado em: O Gaiense

Por vezes, ligamos a televisão e não conseguimos de imediato perceber de que país estão a falar. Vemos gente, muita gente, na rua a protestar: o mesmo aspecto, os mesmos cartazes, a mesma polícia a dispersá-los com os mesmos equipamentos e as mesmas técnicas. Esta semana poderia ser em Sófia ou noutras cidades búlgaras, contra a nomeação do novo responsável pela segurança nacional. Ou em São Paulo, no Rio ou alhures no Brasil, por causa do aumento de vinte centavos nos transportes. Ou em Atenas, por causa do fecho da televisão. Ou em Istambul, contra a destruição de um parque para construir um centro comercial.

Como poderia ter sido em Lisboa ou no Porto, por causa de mais uma medida da troika e do governo. Ou em Madrid, contra a austeridade. Ou em Londres, contra o G8. Ou em Nova Iorque, onde se ocupou Wall Street. Ou no mundo árabe, onde a primavera derrubou vários governos.

Em cada caso, o motivo concreto pode ser específico e bem determinado, mas isso é apenas a faísca que incendeia a pradaria. Porque há uma razão comum, muito profunda, que alimenta este reaparecimento massivo dos povos nas ruas das suas cidades, parecendo-se cada vez mais uns com os outros. É uma idêntica e sofrida razão de queixa contra o mesmo sistema iníquo que, apesar das nuances nacionais, tem servido em todo o lado para enriquecer a mesma classe privilegiada à custa da exploração das mesmas vítimas e usando a mesma corrupção.

Por isso, no fundo, somos todos gente da mesma rua. E a televisão está, todos os dias, a ajudar-nos a sentir assim.


O poder da televisão





Publicado em: O Gaiense, 15 de Junho de 2013


Com a troika presente no país para mais uma das suas famosas avaliações, com as macabras exigências que sempre as acompanham, o governo grego decidiu numa manhã que à meia-noite desse mesmo dia acabavam as emissões das televisões e rádios públicas do país. À meia-noite cortou o sinal e mandou para o desemprego 2655 trabalhadores. Para cortar custos, disse o ministro.



Os trabalhadores ocuparam a televisão e continuaram a fazer o seu trabalho, o povo saiu para a rua e envolveu o edifício da ERT (a RTP lá do sítio) com uma massa protectora contra uma possível invasão. Canais privados de rádio e tv asseguram a retransmissão da ERT. Apesar de estes não custarem um cêntimo ao Estado, foram encerrados pela sua ousadia. Numa atitude de grande impacto internacional, a União Europeia de Radiodifusão, a que pertence a RTP, disse que o governo grego estava a exercer a pior forma de censura e forneceu os meios técnicos para a retransmissão internacional da programação que os trabalhadores da ERT continuam a fazer.

É bem possível que a direita grega tenha cometido um fatal erro de avaliação e, com esta atitude, tenha desencadeado o processo de encerramento do próprio governo.



Pode ser que sirva também de lição para Portugal. Lembram-se do que Passos Coelho e Miguel Relvas tentaram fazer com a RTP? Em Maio do ano passado, Passos anunciou a venda a privados até ao fim de 2012 e confirmou Relvas como líder do processo; pouco depois, adiada a privatização, este veio anunciar "um ambicioso processo de reestruturação muito exigente e doloroso". A seguir, foi posto fora do governo e nós ainda temos a RTP. Que, porém, nunca estará segura enquanto a troika andar por cá e tivermos um governo de fanáticos, semelhante ao grego, para executar as suas ordens.



Transportes gratuitos?



Publicado em: O Gaiense, 8 de Junho de 2013


E se não precisássemos de comprar bilhete nem passe para andar nos transportes públicos?

A ideia pode parecer bizarra ou utópica, mas a experiência de transporte público gratuito já existe em algumas cidades da Europa há alguns anos. Existe em cidades nórdicas, entrou este ano em vigor na capital e outras duas cidades da Estónia, existe na Bélgica, na Polónia, na Eslovénia, na Rússia e, mais perto de nós, na Espanha e na França.

Será que isto poderia alterar o uso que fazemos do transporte colectivo? Que impacto teria na qualidade de vida das populações? E na fluidez do tráfego urbano, na qualidade do ar, na forma como vivemos a cidade? Será economicamente sustentável para as autarquias que o promovem ou para o Estado? Como se financia? A gratuitidade deve ser geral ou só para alguns utilizadores? Em toda a rede, ou só em algumas linhas ou alguns modos de transporte?

A boa notícia é que vamos poder colocar directamente estas e outras perguntas a quem as sabe responder. Magali Giovannangeli, a presidente do agrupamento de municípios do Pays d’Aubagne e de l’Etoile, no Sul de França, que estabeleceu a gratuitidade dos transportes em 2009, vem a Portugal explicar como tem corrido esta experiência numa área com 100 mil habitantes. Estará no Porto, na Universidade de Verão da Esquerda Europeia, que vai ter lugar no Estádio do Dragão de 3 a 6 de Julho, para responder a todas as nossas (e vossas) perguntas.

A entrada é livre. 
E gratuita, como os transportes em Aubagne.








A concorrência contra a economia


Publicado em: O Gaiense


O presidente do Banco Europeu de Investimento veio a público acusar a Comissão Europeia de bloquear o montante de mais de mil milhões de euros que o BEI tem disponível para financiamento à economia portuguesa através das PME. O caso é sério, que não é nada frequente o presidente de uma instituição europeia ter este tipo de franquezas ou desabafos públicos contra outra instituição.

A Comissão já reagiu, explicando que a concessão pelo Governo de garantias aos bancos nacionais para fazerem face às exigências do BEI no empréstimo são consideradas ajudas de Estado que violam as regras da concorrência, aquela estrita ortodoxia que proíbe qualquer intervenção do Estado na economia. É a mesma regra que tínhamos visto recentemente bloquear a vida dos Estaleiros Navais de Viana do Castelo.

A Comissão não quer ceder aqui, porque este princípio lhe tem sido essencial para atingir outros fins mais importantes. Um dos grandes objectivos é a entrega a privados do negócio dos serviços públicos, como a água, a elecricidade, os correios, a televisão, o transporte aéreo e ferroviário, etc. Ora, acontece que a Comissão não tem mandato, nem autoridade, nem força para obrigar os Estados Membros a privatizarem esses serviços. Como procede então? Primeiro, no âmbito das suas competências referentes à construção do mercado interno, obriga os Estados a abrirem aqueles sectores de actividade a novos concorrentes num regime de mercado aberto; a seguir, ao abrigo da lei da concorrência, impede as ajudas do Estado às suas próprias empresas, enviando-as indefesas para a disputa com empresas privadas que têm todas as ajudas necessárias dos seus accionistas. E depois, espera que a vida faça o resto.

Pós-troika, já!





Publicado em: O Gaiense, 25 de Maio de 2013

 

O Conselho de Estado discutiu o pós-troika (ninguém sabe em que termos, que o contributo dos ilustres da nação é para mero consumo interno de Belém). Foi uma reunião muito útil para o Presidente se dotar de informação relevante para basear a sua inacção.

A verdade é que por todo o lado se discute o pós-troika, mais concretamente, a forma de nos vermos livres das imposições da dita, quanto antes melhor, para podermos finalmente recuperar o país devastado pelo tornado da austeridade. Já se sabe que, quando a troika sair, todos os nossos indicadores (défice, dívida, desemprego, falências, etc.) estarão pelas ruas da amargura. Um caso de sucesso, como diz o ministro das Finanças alemão.

Mas há dois pós-troika possíveis. Um seria um pós-troika podre, tipo "evolução na continuidade", daquela forma como o marcelismo foi, no final dos anos sessenta, um pós-salazarismo, mantendo os fundamentos do sistema, num processo de contínua degenerescência nacional. Tivemos de resolver o assunto com a revolução de Abril.

A outra possibilidade é um pós-troika a sério, que corte com a lógica desta política e demita os seus promotores, mudando de vida para reconstruirmos o país numa base minimamente decente.

Se é assim, por que haveríamos de esperar por Junho de 2014? Os capitães de Abril não esperaram pelo fim do mandato de Marcelo Caetano, porque sabiam que, a cada mês que passasse, Portugal estaria pior. Hoje também, há que cortar o mal pela raiz e passar ao pós-troika quanto antes. Pós-troika que quer dizer: pós-Passos, pós-Gaspar, pós-Portas e que será também, no fundo, um pós-Cavaco.