Dois jornais de Gaia de há meio século

Há 50 anos, em 1973, no último ano de vigência do fascismo português, a agitação democrática e popular estava ao rubro. Um dos sectores mais activos era o movimento estudantil. 

Em Vila Nova de Gaia não havia ensino superior, mas os estudantes do secundário estavam em processo de organização das suas associações. Nas duas principais escolas do concelho - a velhinha Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia (hoje Escola Secundária António Sérgio) e no novo Liceu Nacional de Vila Nova de Gaia (hoje Escola Secundária de Almeida Garrett) os estudantes iniciavam a publicação dos seus jornais, sem qualquer submissão à censura nem autorização das direcções das escolas. 

No Liceu publicou-se o "Iniciativa" e na chamada Escola Técnica publicou-se "A Semente". 

No Arquivo ESTANTE DISTANTE, nomeadamente na versão digital, pode encontrar estes jornais completos, em formato ampliável para leitura. O "Iniciativa" aqui e os dois números de "A Semente" aqui e aqui.

Morreu o grande deputado que o Porto nunca teve

Morreu Mário Brochado Coelho, eminente advogado e democrata portuense, símbolo enorme de coragem e coerência antifascista. Outros falarão do seu notável percurso de vida e da importância que teve a vários títulos. Conheci-o bem e longos anos trabalhei com ele nas causas que partilhámos. Mas hoje queria só lembrar o grande deputado que o Porto nunca teve. Apresentámos o seu nome como cabeça de lista em eleições para o Parlamento. Sabíamos que seria sem dúvida uma das figuras mais marcantes da Assembleia da República. Mas nunca foi eleito. E essa é uma falha grave no currículo. Não do Mário Brochado Coelho, cujo currículo notável não precisava disso para nada. Mas sim no currículo dos eleitores do distrito do Porto, sobretudo dos eleitores democratas e progressistas que lhe faltaram com o seu voto sem saberem o que estavam a perder. Em momento pré-eleitoral, faço votos de que a memória desta falha, que não vamos a tempo de reparar, possa ser um instrumento útil para a vossa reflexão.

Texto do Manuel António Pina sobre o Coliseu


Na conversa sobre o Manuel António Pina em que participei na Feira do Livro do Porto, cujo vídeo está disponível no post anterior, li um pequeno texto do MAP que é de difícil acesso. 

Respondendo a vários pedidos que recebi, aqui o disponibilizo para acesso público, com uma explicação: o texto é de 1995, foi escrito a propósito da grande luta que mobilizou as gentes do Porto contra a venda do Coliseu à IURD e cuja vitória permitiu que ainda hoje tenhamos a nossa grande sala de espectáculos como uma referência cultural da cidade.

A propósito dessa luta muita tinta correu. Destacados juristas, poetas e outros intelectuais se pronunciaram diabolizando ou ridicularizando quem se batia em defesa do Coliseu. É a esses ilustres detractores que o Pina responde neste texto, que foi publicado no número especial da revista Porto de Encontro totalmente dedicado a esta luta vitoriosa, publicado em Setembro de 1995 (cuja capa acima se reproduz).

O texto é o seguinte:


AFRONTA e AFRONTAMENTO

Há pessoas que não compreendem, pessoas excessivamente seguras daquilo que aprenderam nas faculdades sobre Direito e sobre Estado de Direito e sobre a chamada lei da oferta e da procura. Só que há por aqui, no unânime “O Coliseu é nosso!”, gritado na rua por gente que, como o outro, também não percebe nada de Finanças nem consta que tenha biblioteca, uma grande e desrazoável razão que não se aprende em faculdade nenhuma. Uma razão fundadora (olhem para as orelhas deles, escandalizadas e espetadas!) do próprio Direito, sem cujo desordenado sangue o Direito seria apenas um seco, duro e estéril monte de fórmulas e de princípios, onde só trepariam os astutos e os sabidos. Podem tais pessoas estar certas de que quando milhares de gargantas, perante a afronta iminente, gritavam aqui à porta: “Não há direito!”, não era no Código Civil que estavam a pensar!

Conversa sobre o Manuel António Pina


 Feira do Livro do Porto, 26 de Agosto de 2023

E se nos juntássemos todos para comprar a “Galeria Abel Salazar”?

 




Jornal Público de 26 de Agosto. de 2023



Um desafio


Há um desafio muito concreto que gostaria de deixar aos leitores deste texto e à sociedade em geral, muito especialmente aos portuenses e a todas as pessoas que se interessam pela cultura e pelo património.


Um dos cafés mais interessantes do Porto morreu. Hoje, felizmente, ainda temos o Majestic, o Guarany, o Ceuta e outros, mas este morreu há muito. Era o Café Rialto, na esquina da rua de Sá da Bandeira com a praça de D. João I, ponto de encontro de artistas e intelectuais. Foi inaugurado em 1944, pleno de obras de arte. Quando fechou, as obras de arte foram retiradas. Todas menos uma, que era inamovível: uma enorme pintura mural com 5 metros de largura e mais de 3 metros de altura, uma obra prima do grande mestre Abel Salazar a que este chamou “Síntese da História”. 


O espaço foi tendo outros usos. Como muitos outros espaços da baixa, um dia foi uma dependência bancária, mas o mural lá estava, magnífico, cobrindo toda a parede de fundo.

Hoje é uma loja. Para optimizar o espaço, a pintura foi totalmente coberta com uma parede que permitiu colocar mais umas quantas prateleiras. Esta é a triste situação actual.


Podemos fazer alguma coisa em relação a isto? 

Penso que sim, que podemos e devemos. Mas fazer o quê?



Uma solução


A solução mais simples e rápida, respeitadora de todas as leis e normas vigentes, seria comprarmos aquele espaço. Comprarmos o espaço e oferecê-lo à Casa Museu Abel Salazar. 


A Casa Museu, uma instituição de grande mérito, com um acervo fabuloso e uma actividade a todos os títulos meritória, é propriedade da Universidade do Porto. Situa-se em S. Mamede de Infesta, relativamente distante do centro do Porto.


Com este espaço, poderia passar a ter um pequeno pólo na baixa da cidade, dando maior visibilidade à obra de Abel Salazar junto do grande público. Talvez se possa chamar “Galeria Abel Salazar”. É um bom local para ter pequenas exposições temporárias em que se pode ir mostrando as várias facetas da produção do artista, uma loja onde as várias edições da Casa se disponibilizam, e tudo com o esplendor de uma parede de fundo monumental com uma pintura que apenas ali pode ser vista.



Modus operandi


Não seria certamente difícil encontrar um mecenas que pudesse fazer a aquisição do espaço (é apenas uma loja), mas a minha proposta é outra. O Porto tem tradição de fazer homenagens - erguer estátuas, por exemplo - através de subscrições públicas. É um modo activo de afirmação de cidadania que nos caracteriza e diz muito da sociedade que somos e queremos ser. Uma subscrição pública para resgatar o mural de Abel Salazar seria em si mesmo uma bela homenagem a um homem que a cidade já homenageou comparecendo em massa no seu funeral, em afrontamento directo com a ditadura, já homenageou com uma estátua, já deu o seu nome a uma das escolas da Universidade do Porto. Abel Salazar ficaria certamente emocionado ao saber que a compra deste espaço com a sua pintura foi um acto colectivo e popular.


É claro que na subscrição pública contaremos não só com o cidadão que empenhadamente contribuirá com uns poucos de euros retirados do seu magro salário ou pensão, mas também com o contributo dos bancos e das empresas, do Ministério da Cultura e da Gulbenkian, da Câmara e das associações empresariais, das fundações e dos mecenas.


O ideal seria que, para receber directamente as contribuições, fosse aberta uma conta especial da Casa Museu ou da sua Associação para este efeito, pormenor a decidir pela própria Casa Museu, pela Universidade e pelo seu Reitor.


A Câmara Municipal poderia ter um papel importante no contacto com o actual proprietário do espaço e na negociação das condições da transação.


Talvez que a Faculdade de Arquitectura possa assumir o projecto de remodelação do espaço e as Belas Artes da sua divulgação.


Se sobrar algum dinheiro da subscrição após a aquisição (e esperemos que sobre), será para apoiar as actividades da galeria, a primeira das quais poderia ser a edição de um livro com a história desta subscrição pública e o nome de todos os que contribuíram, a quem seria oferecido um exemplar como agradecimento.



O Porto é capaz


Enfim, o que se pretende é uma mobilização geral de vontades e de capacidades de uma cidade que já mostrou que o sabe fazer sempre que é preciso. 


O Coliseu está aí para o comprovar e foi uma conquista muito mais difícil do que será a pequena “Galeria Abel Salazar”. Ou o Bolhão. Ou o Batalha, que esteve quase morto e hoje brilha de novo. Se conseguimos salvar o grande mural de Júlio Pomar que o velho fascismo tapou, não deixaremos certamente de salvar também o de Abel Salazar que o moderno comércio tapou.






Memórias de José Mattoso e o Bloco

 No dia da morte de um dos grandes intelectuais portugueses, deixo-vos aqui dois documentos: uma notícia de jornal de 29 de Setembro de 1999 e a primeira página de um texto que escreveu nessa altura (que o arquivo “Estante Distante” há-de publicar na íntegra).





O TURISTA E O BALÃO Uma história de proveito e exemplo

O TURISTA E O BALÃO

Uma história de proveito e exemplo 


O balão de S. João é um objecto voador não tripulado com uma chama acesa. Dizem os técnicos (e é sempre prudente acreditar nos técnicos) que pode constituir um perigo para a aviação. Ora, é a aviação que nos traz os turistas, que sustentam a nossa economia.


Postos perante o dilema: o balão ou o avião, as autoridades, mais concretamente a Autoridade Nacional de Aviação Civil decidiu "fechar o espaço aéreo do Porto durante o período previsto de maior intensidade de lançamento". E o nosso céu lá se encheu outra vez de balões, deixando os aeroturistas à espera.


É bom que, uma vez ou outra, possamos ter uma notícia como esta para não perdermos o que nos resta da esperança na construção de um país decente e que se dê ao respeito. 


E o que é que os turistas terão pensado disto? Não sei se foi feito algum inquérito, por isso limito-me a especular. Talvez tenham pensado que o Porto é uma terra que vale mesmo a pena visitar, já que tem tradições tão fortes que até param a aviação, uma das indústrias mais poderosas do planeta. Nesse sentido, esta decisão de deixar os turistas à espera pode ter sido, paradoxalmente, muito boa para o turismo, ao valorizar simbolicamente a força e originalidade das tradições culturais deste "destino".


Da mesma forma poderia funcionar a existência de certas zonas nas nossas cidades onde os turistas nunca pudessem alojar-se, porque eram zonas tão típicas e tão autênticas que só os locais as poderiam habitar. 


É claro que na lógica primária dos turistólatras e das gentes do negócio fácil, isto seria um ataque ao turismo, a nossa galinha dos ovos de ouro. Numa perspectiva mais estratégica - para além dos fundamentos urbanísticos e sociais da solução -, isto acabaria por ser uma valorização permanente e duradoura do interesse turístico das nossas cidades, logo, um factor real de desenvolvimento do turismo de qualidade. 


Já agora, convém não confundir o conceito "turismo de qualidade" com a utilização perversa (e um bocado bacoca) que a indústria e a comunicação social fazem desta expressão, identificando-a com turismo caro para viajantes ricos. 


Não é a mesma coisa. Pode haver muita falta de qualidade no turismo dos ricos e muita qualidade no turismo de preços mais baixos (estou certo, e apenas para dar um exemplo, que qualquer gastrónomo exigente já deve ter vivido em Portugal experiências que o comprovem). Se o preço fosse medida de qualidade, a viagem turística mais qualificada do momento seria no submarino Titan...


O turismo de qualidade - e isto não tem nada a ver com o preço - é aquele que respeita e não agride, nem prejudica, nem descaracteriza os sítios que visita, antes reconhece e valoriza as características que os tornam únicos e portanto interessantes para serem visitados. 


Como o Porto com os seus balões de S. João que os fizeram esperar nos aeroportos. 

O nosso turismo está a precisar de mais algumas decisões com esta lógica só aparentemente contraditória.