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A Comissão Europeia e o Tribunal de Justiça contra o Luxemburgo

Publicado em: Global (in Esquerda 31), Outubro de 2008

Continuam as lutas em torno do direito do trabalho na UE


1. O que está em causa

Um recente acórdão do Tribunal de Justiça, no caso que opôs a Comissão Europeia (CE) ao Luxemburgo, veio aumentar a incerteza e a revolta no mundo do trabalho. É uma decisão que se situa na linha outros polémicos acórdãos, como os dos casos Laval, Viking ou Rüffert, a que o Global já se referiu (ver Esquerda 28).

Está em causa uma lei relativa a trabalhadores destacados por empresas estrangeiras para prestarem serviços no Luxemburgo. Trata-se do país com maior percentagem de trabalhadores estrangeiros: imigrantes de longa duração, trabalhadores destacados e outros que atravessam a fronteira diariamente para trabalhar.

A lei previa a obrigação de haver um contrato de trabalho escrito, a adaptação automática da remuneração à evolução do custo de vida, estabelecia que as empresas colocassem à disposição da Inspecção do Trabalho os elementos indispensáveis para a fiscalização, como a identificação dos trabalhadores, qualificação profissional, qualidade em que foram contratados, actividade que exercem, local de trabalho no Luxemburgo e duração dos trabalhos, entidade de segurança social junto da qual esteja seguro e uma cópia do contrato de trabalho.

Qualquer empresa que não se encontre domiciliada neste país estaria obrigada a conservar no Luxemburgo os documentos necessários à fiscalização através de um mandatário ad hoc aí residente.


2. Actualização dos salários pela inflação

Relativamente à actualização automática das remunerações, a CE afirma que a Directiva europeia sobre destacamento de trabalhadores apenas autoriza a regulamentação das remunerações salariais mínimas e não das restantes. Assim, o Luxemburgo estaria a exorbitar das suas competências, ao exigir que qualquer salário seja actualizado pela inflação.
O Luxemburgo alegou que a sua lei tem por objectivo garantir a paz social por proteger os trabalhadores contra a inflação, constituindo um imperativo de ordem pública.

Mas o Tribunal recusou o argumento por considerar que não foi demonstrado se, e em que medida, a adaptação automática dos salários à evolução do custo de vida pode contribuir para a realização da paz social.

Para o Tribunal, esta actualização automática constitui uma derrogação ao princípio da livre prestação de serviços, que só poderia justificar-se por motivo imperativo de ordem pública, o qual deve ser sempre objecto de interpretação estrita e não pode ser determinado unilateralmente, sem controlo da Comunidade Europeia.


3. Imposição de existência de um contrato escrito

O Luxemburgo considerou que a realização de contratos escritos é de interesse público, pois tem por objectivo a protecção dos trabalhadores contra um eventual desconhecimento dos seus direitos e proporciona maior transparência no mercado de trabalho.

O Tribunal contrapôs que esta disposição submete as empresas a uma obrigação a que já estariam sujeitas no Estado onde estão estabelecidas. Acresce que esta obrigação suplementar é susceptível de dissuadir as empresas de exercerem a sua liberdade de prestação de serviços.


4. A fiscalização dos contratos

À Inspecção do Trabalho do Luxemburgo foram atribuídas vastas funções de fiscalização da situação dos trabalhadores destacados. Pode ordenar a suspensão da actividade se o empregador não satisfizer o pedido de informações e dar origem a procedimentos penais.

Diz a CE que é ao Estado de estabelecimento da empresa que cabe fiscalizar a legalidade dos contratos e não ao Estado de acolhimento. Em Portugal, todos sabemos como é eficaz a fiscalização das condições em que se contratam trabalhadores para os destacar temporariamente. As autoridades do Luxemburgo também estão cientes dessa eficaz fiscalização feita em vários países. Daí terem considerado que era sua obrigação confirmar que tudo se passa conforme a lei.

Mas o Tribunal considerou que o procedimento da fiscalização pode ser ambíguo e pode dissuadir as empresas de exercerem a sua liberdade de prestação de serviços, violando o Tratado.


5. Sobre a conservação dos documentos necessários à fiscalização

A CE considera que obrigar as empresas a entregar, no início do destacamento, os documentos necessários à fiscalização, consubstancia uma restrição à livre prestação de serviços, já que a cooperação entre os países da UE tornaria supérflua esta obrigação. Durante o serviço, também não pode ser exigido que os documentos sejam depositados num mandatário residente, já que podem ser conservados na posse de um dos trabalhadores.

Concluído o destacamento, obrigar as empresas que têm sede fora do território a designarem um mandatário encarregado de conservar os documentos, constituiria uma restrição à livre prestação de serviços, já que os inerentes custos poderiam afectar a concorrência e levar algumas empresas a desistir de prestar serviços no Luxemburgo.

O Luxemburgo contrapõe que a cooperação a que a CE se refere não funciona e que a obrigação de ter um depositário era uma exigência indispensável. Mas o Tribunal não concordou.

Direitos do Trabalho na União Europeia

Publicado no jornal Global, Maio 2008

*com Carmen Hilário e Miguel Portas



O SALÁRIO PELO PAÍS DE ORIGEM

Este número do Global dedica-se a dois recentes acórdãos do Tribunal de Justiça Europeu no âmbito da prestação transnacional de serviços, na área da construção civil. O tema pode parecer, à primeira vista, exotérico, “especioso”, mas não é.
Entre o respeito pelas convenções colectivas de trabalho nos países de destino e o regime jurídico aplicável à contratação transnacional de empresas prestadoras de serviços, está aberto o conflito.
Nos casos analisados, as disputas foram parar aos tribunais dos países onde ocorreram, o que levou os juízes nacionais a pedir esclarecimentos sobre a aplicabilidade do direito comunitário ao Tribunal de Justiça da União Europeia, no Luxemburgo.
As respostas do TJE foram favoráveis às empresas prestadoras de serviços. Ao contrário do que se possa pensar, não foi a directiva Bolkestein a fundamentar tais pareceres, mas o artigo 49º do Tratado da Comunidade Europeia, que se manterá em vigor se o Tratado de Lisboa vier a ser ratificado pelos 27.


O CASO VAXHOLM

A empresa Laval, da Letónia, ganhou um concurso para a construção de uma escola, na cidade de Vaxholm, na Suécia. Os sindicatos suecos da construção civil pressionaram a Laval para que assinasse a convenção sueca do sector. A empresa recusou porque queria aplicar aos seus trabalhadores, destacados na Suécia, as convenções da Letónia.

O conflito estalou de imediato. Os sindicatos suecos bloquearam o estaleiro, impediram a entrega das mercadorias e piquetes de greve impediram a entrada de homens e veículos na obra. A Laval pediu o apoio das forças policiais. Estas responderam que, como a acção colectiva era lícita à luz do direito nacional, não podiam intervir. As autoridades informaram a Laval que as condições mínimas previstas nas convenções colectivas eram igualmente aplicáveis aos trabalhadores estrangeiros destacados. A Laval manteve a recusa de adesão à referida convenção. Pouco depois, os trabalhadores destacados pela Laval regressaram à Letónia. A cidade de Vaxholm pediu a rescisão do contrato e a filial da Laval na Suécia declarou-se em situação de falência.

O modelo sueco
Na Suécia, os parceiros sociais negoceiam a convenção colectiva relativa às condições de trabalho e, em seguida, a discussão dos salários, que tem a contrapartida de uma cláusula obrigatória de paz social durante a vigência dos acordos.
Os salários são acordados a nível local entre o sindicato e cada empregador. Só quando os parceiros não chegam a acordo, os salários são objecto de negociações centralizadas. Se, ainda assim, falhar o acordo, o salário de base é determinado por uma «cláusula de reserva» da convenção colectiva. Este salário «de reserva» é um mecanismo de último recurso e não um salário mínimo.

As posições das partes
Na Suécia, o direito à acção sindical e à acção colectiva gozam de protecção constitucional. O TJE considerou, no entanto, que, de acordo com o estipulado na Carta dos Direitos
Fundamentais, tais garantias estão sujeitas a restrições específicas, se colidirem com a legislação comunitária sobre as liberdades fundamentais da União. Na opinião do tribunal europeu, o artigo 49º do Tratado da Comunidade, ficaria comprometido se obstáculos colocados por associações que não são de direito público tornassem menos atractiva, ou mais difícil, a execução de trabalhos de construção por firmas de outros Estados membros no território sueco.
A proibição de acções colectivas para modificar uma convenção em vigor já existe e é aceite pelos sindicatos suecos. Mas o TJE lembra que, se não se pode ir contra uma convenção colectiva sueca, também não se pode contrariar a convenção colectiva do país de origem da empresa que presta serviço no estrangeiro. Resumindo, o ponto de vista do TJE considera que o boicote lançado pelos sindicatos suecos se dirige contra as convenções abrangidas pela lei de outro Estado-Membro, no caso a Letónia, e portanto modificam a regra a meio do jogo.
As organizações sindicais e o Governo sueco, por sua vez, sustentaram que o boicote era justificado porque visava proteger os trabalhadores letões, bem como os suecos, contra a prática do dumping social.
Consequentemente, os sindicatos acusaram a Laval de fugir às obrigações resultantes da regulamentação sueca em matéria de convenções colectivas, e de se escudar por detrás das normas europeias de modo a obter vantagens injustas.

O acórdão do TJE
O direito comunitário não impede os Estados membros de obrigarem as empresas que destacam trabalhadores a observarem o salário mínimo. Mas como a Suécia não tem salário mínimo, esta prerrogativa não se podia aplicar.
As condições de trabalho e de emprego podem ser fixadas, para prestações de serviços transnacionais no domínio da construção, por disposições legislativas, regulamentares ou administrativas, por convenções colectivas nacionais ou decisões arbitrais de aplicação geral. Tais instrumentos devem ser respeitadas por todos. Mas no caso em apreço não existia nenhum acordo de aplicação geral respeitante a massas salariais.
Na ausência de dispositivos de aplicação geral, o tribunal considerou que um Estado-Membro não tinha o direito de impor a uma empresa estabelecida noutro Estado o resultado de uma negociação “caso a caso”.
Os sindicatos suecos consideram que esta decisão põe em causa o direito a um modelo próprio de negociação colectiva. Formalmente, eles perdem porque não têm salários mínimos com força de lei.
Paradoxalmente, a derrota é consequência de um modelo de organização do conflito entre capital e trabalho que funcionou, em marco nacional, de forma razoavelmente favorável para a parte mais fraca.
Ao invés, a Laval ganhou porque fez vingar o critério do “país de origem” pelo buraco da agulha. Só o pôde fazer porque, independentemente da Directiva Bolkestein, foi o Tratado da Comunidade Europeia que a confortou.



O CASO RÜFFERT

O caso mais recente, conhecido como Rüffert, tem acórdão a 3 de Abril de 2008. O litígio opôs D. Rüffert, representante da empresa alemã de construção Objekt und Bauregie, ao Estado alemão da Baixa Saxónia (Land Niedersachsen). A empresa ganhou por concurso uma empreitada e subcontratou parte a uma empresa polaca, que não pagou o salário mínimo estipulado. O Estado rescindiu, ganhou o processo em Tribunal de primeira instância, mas perdeu o recurso devido ao parecer do Tribunal europeu.

O Land Niedersachsen tem uma lei para a adjudicação de contratos públicos com valor acima dos 10 mil euros: as empreitadas só podem ser entregues a empresas que se comprometam a pagar aos seus trabalhadores, pelo menos, a remuneração fixada na convenção colectiva da construção civil. O adjudicatário responsabiliza-se ainda por impor aos seus subempreiteiros as mesmas obrigações. Os contratos incluem uma cláusula penal no montante de 1 por cento por cada incumprimento culposo e, em caso de incumprimentos múltiplos, a pena pode chegar a 10 por cento do valor do contrato. A violação do contrato autoriza a rescisão sem pré-aviso.

Os factos
No Outono de 2003, após concurso, o Land Niedersachsen adjudicou à Objekt und
Bauregie um contrato para a construção dos toscos no estabelecimento prisional de Göttingen Rosdorf. A Objekt und Bauregie contratou uma empresa com sede na Polónia, que empregou 53 operários a quem pagava um salário 53,43 por cento abaixo do salário mínimo previsto na convenção colectiva da construção civil. O Land Niedersachsen rompeu o contrato de empreitada, acusando a Objekt und Bauregie de ter violado a convenção e aplicou as penalizações previstas na lei.

O acórdão do Tribunal de Justiça
Aberto o conflito, regressou o artigo 49. A empresa polaca estava obrigada a cumprir a lei do Land? O tribunal alemão tinha dúvida e colocou-a ao TJE. Observa que a obrigação de respeitar as convenções colectivas impõe às empresas de construção de outros Estados-Membros a perda de uma vantagem concorrencial decorrente dos seus custos salariais mais baixos, logo é um obstáculo à livre prestação de serviços.
O Tribunal do Luxemburgo começa por dizer que devem ser garantidas aos trabalhadores destacados, condições de trabalho e de emprego dignas, entre as quais, uma protecção e remuneração salarial mínima. Mas lembra que estas condições de trabalho e de emprego têm de ser fixadas por disposições normativas, por convenções colectivas ou decisões arbitrais de aplicação geral. Assim, o efeito de uma lei como a que estava em causa, apenas tocava uma parte do sector da construção porque só se aplicaria aos contratos públicos. Daí não se poder considerar que a rescisão e multa aplicada pelo Land se pudesse justificar com o objectivo de garantir uma protecção mínima dos trabalhadores já que, segundo o Tribunal europeu, nenhum indício permite concluir que a protecção resultante da lei do Land é necessária a um trabalhador quando este exerce as suas actividades no âmbito de um contrato de obras públicas, mas não quando trabalha numa obra privada…
Em consequência, o Land perdeu a causa porque o seu quadro legal, fixando uma remuneração salarial mínima, não cumpria os requisitos de aplicação geral previstos na Directiva 96/71 da União sobre o Destacamento de trabalhadores, e não podia, portanto, ser imposta a empresas estabelecidas noutros Estados membros, constituindo antes uma restrição à liberdade de prestação de serviços.


TRATADO DA COMUNIDADE EUROPEIA

Artigo 49º
As restrições à livre prestação de serviços na Comunidade serão proibidas em relação aos nacionais dos Estados-Membros estabelecidos num Estado da Comunidade que não seja o do destinatário da prestação.

Este artigo é retomado pelo Tratado de Lisboa como art. 56º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia

Estónia: a luta pelos símbolos

Texto de Renato Soeiro e Miguel Portas, em Tallinn
Publicado em: Global em Maio de 2007


Tallinn, capital da Estónia - Na tarde de 27 de Abril, mil a dois mil manifestantes, em regra muito jovens, acusam a polícia de ser “fascistii”. Não têm grande experiência neste tipo de andanças. Vários vestem-se à moda dos jovens das banlieues de Paris, com blusões de capuz, para dificultar a identificação. Pertencem à comunidade russa de Tallinn. São empurrados pelos serviços de segurança que, a pouco e pouco, limpam a praça. Os miúdos desafiam abertamente os polícias que, em raides selectivos, apanham os mais combativos.
Um pouco mais tarde, irrompe por uma avenida adjacente, um grupo de duas centenas de nacionalistas estónios, também muito novos. De bandeira nacional, a polícia deixa-os passar perto dos adversários. O confronto, contudo, não se concretizou. Ele sobra, inteiro, para a polícia. Ao terceiro dia de conflitos de rua, há dezenas de feridos e as detenções elevam-se a quase um milhar. A destruição de vitrinas e paragens de autocarro pelo centro da cidade, sinalizam, do lado russo, a fúria dos mais jovens. É impossível a um observador mais experimentado neste tipo de acontecimentos, não constatar uma estranha inépcia securitária na protecção da propriedade. Durante três dias, as forças de repressão fecharam todas as entradas no centro medieval de Tallinn e sua envolvente. Recorreram a inúmeros check points e gradeamentos. Com o coração da cidade bloqueado, sem trânsito automóvel ou de peões, e com apelos governamentais a que os cidadãos não saíssem de suas casas, grupos de miúdos puderam, durante três noites, dar largas à sua ira.
Não se pode dizer que os agentes não levassem a sério o papel que o governo lhes destinou: “estou aqui a defender o meu país”, confessou-nos um deles. Na fronteira, cidadãos da vizinha Letónia foram barrados desde que circulassem com símbolos pró-russos ou de memória soviética. E autocarros que se dirigissem para Tallinn, a partir de outras cidades da Estónia, foram igualmente impedidos de aí chegar. Do lado do governo, o dispositivo de forças parecia agir como se estivesse em marcha uma insurreição popular. Como foi, então, possível, a destruição de tantas montras? A resposta talvez se encontre no modo como os jornais e as televisões abordaram os acontecimentos: com abundante profusão de imagens destinadas a martelar o “vandalismo da canalha”. Um dos principais jornais da Estónia, na sua edição de 28 de Abril, publica 16 páginas de fotos chocantes de incêndios e destruição de lojas, carros virados, e manifestantes carregados com a mercearia retirada das lojas. Todas as suas páginas, capa incluída, têm como cabeçalho uma bandeira da Estónia no chão a arder...

UMA ESTÁTUA NO CENTRO DO MOTIM

Quando, em Agosto de 1991, o Soviete Supremo da República da Estónia ratificou uma Resolução que estabelecia a sua independência face à URSS, mais de um terço da população descendia dos imigrantes russos que afluíram aos países bálticos após o fim da II guerra mundial.
O que então aconteceu na Estónia não diferiu, na substância, dos outros países do Leste europeu. Na transição do capitalismo de Estado para o capitalismo tout court, e da ditadura para a democracia parlamentar, os símbolos foram os primeiros a cair. De todas as estátuas do período soviético, só uma escapou à limpeza: a do “soldado de bronze”, que assinalava a libertação do nazismo. A estátua, situada numa colina nas proximidades do centro medieval, “guardava” ainda uma vala onde repousavam vários corpos de soldados soviéticos. Foi a decisão de trasladar o conjunto para um cemitério militar da periferia que esteve na origem dos conflitos. Dificilmente um monumento poderia traduzir mais drasticamente as diferentes percepções da História. A minoria russa considera os soldados soviéticos como libertadores, e a união da Estónia com a Rússia, como uma aliança natural; o nacionalismo estónio, pelo contrário, considera que o último meio século foi de ocupação ilegal, e que os russos não passam de ocupantes e colonialistas. Os mais radicais consideram mesmo os nazis como libertadores... A estátua de homenagem ao soldado soviético, símbolo material deste período, é vista, portanto, sob olhares bem distintos.
Seja como for, o memorial nunca deixou de ser objecto de romagem por ocasião das tradicionais manifestações do 9 de Maio, o dia que assinala a vitória sobre o nazismo na Europa. Mas nos últimos anos, o mero encontro evocativo de veteranos da Segunda Grande Guerra, transformou-se num momento de afirmação de massas, onde a presença de símbolos russos e soviéticos tinha o condão de irritar os governos e os nacionalistas estónios. O memorial instituiu-se em símbolo de uma comunidade que se sente discriminada no país. Não se pode dizer que lhe faltem razões. Em 1992, recuperando uma antiga lei da nacionalidade, a cidadania automática só foi dada a quem já a tinha antes de 1940, e aos seus descendentes. Só os estónios de “sangue puro” puderam votar no referendo constitucional. Todos os outros - e entre estes a população de origem russa - foram obrigados a realizar exames de língua e de História estónias, internacionalmente considerados como extraordinariamente exigentes, se quisessem aceder à nacionalidade do país em que nasceram. O resultado desta política está hoje à vista: 15% da população da Estónia não tem direitos de cidadania e é discriminada nos empregos e nos serviços sociais. Os motins de fins de Abril reflectem o profundo descontentamento que grassa entre esta minoria nacional. Mas não só. Disputas de natureza geo-estratégica entre a Rússia e um nacionalismo estónio alinhado com Bruxelas e Washington, jogaram também o seu papel.

ESCALADA

Em 2006, os nacionalistas estónios decidiram confrontar os manifestantes do 9 de Maio. Desde então, as tensões subiram. A polícia passou a controlar a zona e o parlamento estónio passou ao ataque. Em Janeiro deste ano, e com boa dose de cinismo, aprovou, apenas com 6 votos contra, que as normas internacionais de respeito pelas sepulturas dos mortos de guerra, implicavam a transferência dos restos mortais dos soldados russos para um cemitério... A escalada prossegue em Fevereiro, quando o Parlamento aprova, por 46 votos contra 44, uma lei que proíbe monumentos que exaltem a União Soviética. O texto exigia o desmantelamento do monumento no prazo de 30 dias, mas o presidente vetou-o invocando a sua inconstitucionalidade.
Com a polémica a subir de tom – ela marcou as legislativas de Março - criaram-se condições legais para a trasladação, a concretizar antes das celebrações do 9 de Maio. Escusado será dizer que a minoria russa respondeu à ofensiva nacionalista. Para além da permanente deposição de flores e de velas, grupos de “guardas da noite” passaram a fazer vigília nocturna do monumento. Estónios garantem que tais permanências eram pagas pela embaixada da Rússia, que garantia igualmente os transportes para as manifestações. Como diria um italiano, si non é vero, é benne trovato...
Quando, a 25 de Abril, chega a Tallinn um enorme aparato policial que cobre o monumento com uma tenda branca e veda a colina, todas as condições para a tragédia estavam reunidas. A comunidade russa revolta-se nessa mesma noite. Alguns milhares de manifestan¬tes são então violentamente dispersados pela polícia. Um morto, dezenas de feridos e três centenas de detidos selam a noite. O resto é conhecido. Moscovo corta relações com Tallinn e Bruxelas, em¬bora em diferentes registos, alinha ao lado do seu Estado-membro. Num repente, os motins de Tallinn ocupam o centro das relações entre Moscovo e a União. Mas, verdadeiramente, o alvo de Vladimir Putin é Washington. Ele vê nas atitudes “anti-russas” do governo estónio um episódio mais do seu alinhamento com G.W. Bush, que procura o apoio europeu para a instalação de novas bases e equipamentos militares anti-míssil no Leste europeu.

Direita pura e dura vence em França

Publicado em: Global em Maio de 2007

Trabalho - autoridade – mérito: eis a trilogia de Sakozy no seu discurso de vitória na noite de 6 de Maio. Esqueçam as ideias obsoletas de liberté, égalité e fraternité, bem como os sonhos absurdos do Maio de 68. Franceses preparem-se: a mudança vem mesmo aí! Não se pode negar a arte de um candidato que, sendo um ministro marcante do governo de direita ao longo dos últimos anos, com um papel chave nos acontecimentos que criaram revoltas atrás de revoltas, se conseguiu apresentar a si próprio como o rosto da mudança... e apresentar a candidata da oposição como a continuidade. A ideia de mudança era de facto a chave para o sucesso numa França essencialmente insatisfeita e ansiosa, como se vira no referendo ao Tratado Constitucional. A insegurança, ou melhor, a multiplicação dos sentimentos de insegurança, são sempre um terreno fértil para propostas fortes. E essa era a única das críticas que o novo presidente não merecia. Sarkozy optou por uma campanha forte, afirmativa e claramente situada à direita, o que se revelou decisivo para aglutinar mais de metade dos eleitores. Do outro lado, Ségolène Royal tentou precisamente o contrário: opções tímidas e um estilo suave, que evitava a clarificação política em nome da conquista do centro. Sarkozy encerra em França um ciclo político. Não apenas no que se refere ao modelo social e à tradição de intervenção do Estado na economia, mas também no posicionamento internacional da França. A sua vitória agrada a Bush, que terá agora uma França mais atlantista e colaborante. Agrada a Downing street pelas mesmas razões e mais uma, fundamental para o governo inglês, que é o facto de Sarkozy querer resolver o problema do tratado europeu sem recurso a referendo, e com uma redacção minimal. Eis o que, tanto para o Labour como para os Conserva dores, soa a música celestial. A sua Europa é a do Directório dos grandes países e nisso coincidem com Sarkozy. O referendo, pesadelo maior dos dois grandes partidos do Reino Unido, pode ter começado a resolver-se ontem em França. Nem mesmo Durão Barroso ficou descontente. Ele quer ultrapassar o impasse constitucional seja como for. Também na questão da Turquia, onde os governantes europeus se sentiam obrigados a dizer o que não pensam, Sarkozy trouxe algum alívio: frontalmente contra a adesão, numa matéria que exige unanimidade, pode ter resolvido o assunto sem que os restantes governos tenham o incómodo darem o dito pelo não dito. Mais incrível ainda é a afirmação do ex-ministro, já na qualidade de futuro presidente, de que “esta noite, a França está de volta à Europa”. Por onde terá andado a França nos últimos anos em que ele esteve no governo? E o que vai mudar agora? Algo. A palavra-chave de Sakozy em matéria europeia é “protecção”. Conjura os seus pares europeus “a ouvirem a voz dos povos que querem ser protegidos”, “a não ficarem surdos perante a cólera dos povos que vêm a UE não como uma protecção, mas como o cavalo de Tróia de todas as ameaças contidas nas transformações do mundo”. A nova França recuperará a sua grandeza na Europa e no mundo reforçando o seu proteccionismo. Pode ser absurdo, mas agradou aos eleitores. Não por muito tempo, mas agradou. A tarefa da esquerda, agora, é a de resistir aos tempos difíceis que se avizinham. Em França, evidentemente. Mas também por toda a Europa terá de estar à altura das responsabilidades que a emergência das novas direitas vem colocar.

IRLANDA: os muros também se abatem


Publicado em: Global, Abril de 2007

Quando, a 26 de Março, os líderes do Sinn Féin e do Democratic Unionist Party (DUP) se sentaram pela primeira vez face a face no palácio de Stormont em Belfast, todos sentiram o peso enorme deste encontro entre os representantes máximos de uma violenta luta secular que marcou a vida de várias gerações.
Todos sabiam também que as memórias desta guerra não se apagarão tão cedo. As suas cicatrizes nas famílias e nas comunidades não desaparecerão facilmente. Nem sequer as marcas que deixaram em Belfast, ainda cheia de grades, torres de vigia e câmaras de filmar. Ainda repleta de muros que dividem bairros, cortam ruas, e separam em dois os jardins onde crianças brincam e olham as árvores altas de além-muro sem nunca terem visto os rostos das suas congéneres que brincam do outro lado.
Mas, para além das divisões do passado, os dirigentes compreenderam que os escassos 27 mil votos e 3,9% de percentagem que nas últimas eleições separaram o DUP do Sinn Féin, significam que as duas forças políticas estão para ficar e que as populações que neles votaram são realidades incontornáveis.
Ambos os partidos assumiram a responsabilidade de dotar esta parte da Irlanda de um parlamento e de um governo próprios, que possam promover um desenvolvimento que não pode esperar por decisões tomadas em Londres, ou mesmo em Dublin. Numa Europa que esbate as suas barreiras, o contraste do sucesso do “tigre celta” com o atraso que sofrem os seus irmãos do Norte torna-se ainda mais insuportável.
É grande a esperança neste governo de unidade, que não se limita ao DUP e ao Sinn Féin, já que os acordos de St. Andrews - como antes, o da Sexta-feira Santa - prevêem a formação do governo a partir de uma aplicação do método de Hondt aos resultados eleitorais.
O mundo saudou a coragem realista partilhada pelos dois protagonistas desta histórica convergência forçada pela vida. Mas há uma diferença entre Paisley e Adams que foi pouco notada e comentada: essa diferença chama-se Irlanda. O DUP é um partido do Norte, dos 6 condados sob domínio britânico. O Sinn Féin é um partido da Irlanda, dos 6 condados do Norte e dos 26 condados da República. O partido de Gerry Adams tem uma agenda política para toda a Irlanda, e o seu peso aumenta dos dois lados da linha que marca a fatídica partição da ilha. Para o Sinn Féin, as eleições de Março nos 6 condados foram um momento de um processo eleitoral que prossegue em Maio ou Junho nos outros 26, com propostas comuns. Propostas para a unificação, é claro, mas também para a economia, para a justiça e a segurança, para os serviços públicos e para a política social de toda a ilha. Não é por acaso que as suas duas deputadas europeias integram o GUE/NGL, a bancada situada mais à esquerda no Parlamento Europeu. A prazo, esta marca, já presente nos pioneiros do movimento nacionalista e republicano, poderá fazer toda a diferença.
A participação no governo do Norte não deixará de ser observada com toda a atenção pelos eleitores da República, a braços com os problemas causados por um desenvolvimento rápido, mas profundamente marcado pelas desigualdades. No último congresso do Sinn Féin, realizado em Dublin no fim-de-semana anterior às eleições, a novidade que mais atraiu a atenção dos jornalistas foi a presença e a intervenção, pela primeira vez, de dirigentes dos maiores sindicatos e do Irish Congress of Trade Unions, a confederação sindical irlandesa. Até agora as trade union frequentavam
os congressos do partido trabalhista social-democrata. Hoje, no programa e nas propostas do Sinn Féin, os irlandeses começam a entrever um futuro diferente. An Ireland of equals. Unida, democrática e justa.

Com votos do PSE e da direita, aprovada a Directiva Bolkestein

Publicado em: Global, Novembro de 2006
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O Parlamento Europeu aprovou a chamada directiva Bolkestein que permite trabalhadores imigrantes ganharem o salário do país de origem, em vez da remuneração que ganham todos os trabalhadores nacionais do país de destino. Significa que um trabalhador português pode ser obrigado a trabalhar na Alemanha por um salário quatro vezes menor ao de um trabalhador alemão. Esta aprovação foi feita com os votos dos socialistas e da direita. A esquerda e os verdes propuseram ainda um conjunto de alterações pontuais que iam no sentido de proteger os direitos de quem trabalha. As alterações foram rejeitadas pelos signatários do compromisso. Mas o grupo socialista partiu-se: grande parte dos eurodeputados franceses, italianos e gregos do grupo do Partido Socialista Europeu votaram essas emendas com a ala esquerda do PE. O mesmo não aconteceu com os eurodeputados socialistas portugueses que votaram a favor desta medida.
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Estrasburgo, 15 Nov. 2006 - No momento em que escrevo estas linhas, acaba de ser votada no Parlamento Europeu a Directiva sobre Serviços no Mercado Interno, que ficou conhecida como directiva Bolkestein. Trata-se de uma votação em segunda leitura, após uma série de alterações ao texto inicial ter sido introduzida pelo PE na primeira leitura (ver artigo anterior "Directiva Bolkestein: uma questão central da luta de classes em curso na Europa"). Os grandes grupos políticos (PPE e PSE), que tinham feito um mau acordo aquando da primeira leitura, capitulam agora face ao seu próprio compromisso anterior, sob pressão do comissário Charles McCreevy, herdeiro, na Comissão Barroso, do pelouro do Mercado Interno, de que Fritz Bolkestein era responsável na anterior Comissão Prodi. McCreevy ameaçou que não aceitaria nenhuma alteração do Parlamento face à recente posição comum proposta pelo Conselho, “tão difícil de conseguir”, segundo afirmou. PPE e PSE poderiam e deveriam ter reagido a esta chantagem, defendendo as prerrogativas do Parlamento, que pode aprovar as posições que entender. No caso de não coincidirem com a posição comum do Conselho, obrigariam a directiva a entrar numa terceira fase de negociações, a chamada conciliação. Com esta capitulação, o processo legislativo termina aqui e a terceira fase é anulada. Jogo viciado na segunda parte, não há prolongamento. Esta posição comum poderia ter sido vetada à nascença por qualquer dos governos; sobretudo, poder-se-ia alimentar a esperança de que esse veto fosse introduzido por algum dos governos em que participam forças de esquerda. Lamentavelmente, os governos estiveram todos de acordo, todos do lado errado nesta luta. É precisamente essa unanimidade que hoje dá força ao herdeiro de Bolkestein. A posição comum do Conselho (que é, desde hoje, também a do Parlamento), atacando eventuais medidas com que os Estados Membros possam querer proteger os seus serviços sociais ou os direitos dos trabalhadores, atribui um peso exagerado ao poder da Comissão e às “interpretações” que vierem a ser feitas pelo Tribunal de Justiça no que respeita ao controle de quaisquer novas disposições legislativas, regulamentares e administrativas que os Estados Membros adoptem neste campo. A ideia de subordinar à legislação comunitária todas as disposições dos Estados Membros nesta matéria, embora se aplique a todos, tem um alvo preferencial: as práticas laborais dos países nórdicos, onde as taxas de sindicalização são muito elevadas e o forte poder negocial dos sindicatos tem construído um conjunto de relações laborais que produz uma redistribuição de rendimentos mais equitativa do que noutros países menos desenvolvidos, que passarão agora, na prática, a ser o novo padrão de referência europeu. É demasiado incómodo para a propaganda neoliberal que os países onde o leque salarial é mais pequeno, onde a riqueza está menos concentrada, e onde os serviços públicos e a protecção social pesam mais nas contas públicas, sejam precisamente os países mais ricos e desenvolvidos do mundo, segundo todos os índices publicados. A desregulamentação, os cortes nas despesas sociais e nos investimentos e serviços do Estado, as baixas taxas de sindicalização, a concentração da riqueza, a diferenciação exagerada de rendimentos, e o aumento da precariedade laboral e social devem ser encarados como factores de empobrecimento geral da população e obstáculos ao desenvolvimento. Não são as condições indispensáveis para o progresso económico e a modernização, são, isso sim, as marcas do subdesenvolvimento. Marcas demasiado fortes no nosso país.

A escola com assinatura

Texto de Miguel Portas e Renato Soeiro
Publicado em: Global, Fevereiro de 2006

1. Os recentes acontecimentos de Paris obrigam os responsáveis políticos a um rigoroso exame das políticas que têm sido aplicadas. É verdade que a revolta se deu em zonas de subúrbio de cidades francesas - e não em Londres, Berlim, Madrid ou Lis boa. Mas todos reconheceremos, sem dificuldade, que as condições materiais de existência nesses territórios são extensíveis ao conjunto dos subúrbios de todas as nossas grandes cidades. Essas condições podem ser resumidas numa só palavra: discriminação. Ou melhor: dupla discriminação. A discriminação inerente à vida nas periferias e a discriminação que vem da cor da pele, do nome que se usa ou da religião que se pratica.

2. Os acontecimentos de Paris revelam, acima de tudo, a fragilidade e o estado de regres são em que se encontram as políticas públicas – em particular, as de proximidade –, num contexto em que todas se encontram sob forte ataque ideológico. Num mundo onde a mão invisível do Mercado condiciona os comportamentos sociais e determina os sonhos e as expectativas sociais, as políticas sociais que temos revelam-se incapazes de suster a queda de muitos nos abismos da vida.

3. Tanto ou mais do que a falta de empregos, a revolta francesa é reveladora da crise da escola pública. Tivesse a escola outro sucesso, e a pressão da procura no mercado de trabalho seria bem distinta. Os números não enganam: a grande maioria dos jovens detidos estava em ruptura com as respectivas famílias e tinha abandonado precocemente o sistema educativo. Na sua maioria, são franceses descendentes, em segunda e terceira geração, de imigrantes do norte de África, onde a incidência do desemprego é o dobro das, já de si, elevadas taxas de desocupação nos bairros das periferias de Paris. A importância da escola não resulta apenas do que ela representa enquanto aquisição civilizacional – nestes bairros, é o mais importante instrumento de combate ao desemprego precoce e desqualificado.

4. Se tivéssemos que hierarquizar as grandes aquisições que o século XX trouxe à Humanidade, a escola pública encontrar-se-ia, seguramente, entre elas. A democratização do acesso ao ensino alterou em profundidade as relações de poder nas famílias, os mercados de trabalho, e os níveis de formação e civilidade existentes nas nossas sociedades. Mas a escola não existe sozinha. Ela concorre com a família, a rua, a televisão e as novas comunicações. Nas últimas décadas, a centralidade que a escola antes ocupara nos processos educativos entrou em crise - uma crise de centralidade, de lugar.

5. A resposta que os sistemas educativos têm procurado encontrar para essa crise é, não raro, a da “facilidade”: melhorar os índices de sucesso escolar por via da diminuição da exigência. É uma escolha errada. A escola tem é que se reinventar, recriando-se como território de novas e antigas sociabilidades. Essa reinvenção é mais urgente nas periferias das grandes metrópoles. Precisamos de uma “escola menos escola”, de espaços que sejam, ao mesmo tempo, cosmopolitas e identificadores do lugar onde a escola existe, que se afirme como motivo de orgulho da comunidade em que se integra e se projecte como janela do bairro para o mundo.

6. Não precisamos de escolas que se imitem umas às outras. Precisamos de projectos educativos sensíveis ao lugar onde existem e às diferenças que aí se manifestam. Elas, que hoje discriminam, podem constituir-se em oportunidades para todos. Na condição das escolas encontrarem as suas razões de ser e inspiração nos miúdos e nas populações concretas que servem. As escolas dos bairros devem transformar-se em espaços comunitários e inter-geracionais. Devem funcionar durante a semana e ao fim-de-semana, servindo diferentes tipos de formação e actividades. E devem ter autonomia contratualizada com o ministério para desenvolverem os seus focos de atenção e novas potencialidades formativas. A alternativa a esta revolução é a derrota ante a concorrência das fontes informais de educação e formação.

7. Os países europeus têm diferentes abordagens ao problema da integração. Nenhuma delas resolveu o problema do gueto. Nem a escola, de per si, o pode fazer. Mas ela pode - e tem a obrigação - de combater o gueto dentro do gueto, enquanto este não acaba. A chave para essa escola de combate é uma nova articulação entre o direito à igualdade e o direito à diversidade. A integração não é, como tem sido, assimilação. Nem pode reproduzir modelos de “desenvolvimento separado”, como o faz a tradição anglo-saxónica. Essa nova articulação não é um meio caminho entre os modelos multiculturais e integracionistas. É uma nova síntese, uma mudança de paradigma dos próprios projectos educativos.

8. Nessa mudança, a questão da língua é decisiva. A língua não é uma mera técnica ou instrumento que permite a comunicação. É um modo de pensar. É, até, um modo de sonhar. A escola tem-se preocupado em ensinar a língua do país de acolhimento aos descendentes dos imigrantes. Tem-se preocupado, também, em ensinar uma segunda língua, em regra o inglês, a todas as crianças. Tudo isto é correcto, mas não chega. Onde as comunidades de imigrantes são socialmente relevantes, é indispensável que a escola proporcione também o ensino das suas línguas maternas.

9. Na Europa, isto tem sido feito de modo incipiente e limitado. Em Portugal nem isso. Incipiente porque os dois modelos dominantes estão condenados ao fracasso. O mais generalizado assenta em turbo-professores que andam de escola em escola, em horários extra-curriculares, dando lições de língua materna aos filhos dos imigrantes. Todos os anos, a procura deste tipo de ensino diminui. Porque são os Estados de origem dos imigrantes que pagam estes professores, e o dinheiro escasseia. E porque, à medida que as gerações passam, os pais e as crianças dão prioridade a outras escolhas. O segundo modelo não resulta melhor: trata-se de incluir línguas maternas de imigração no leque de opções curriculares de ensino de línguas estrangeiras nas escolas. Sucede que os pais escolhem invariavelmente o inglês. E as outras línguas são “democraticamente” afastadas.

10. As escolas europeias, destinadas aos filhos dos funcionários e representantes da União Europeia, funcionam noutro registo: são, de raiz, bilingues. Ensina-se e aprende-se em duas línguas, a de origem dos alunos e a de destino. E, para lá destas, que são línguas de trabalho, aprendem-se ainda outras línguas estrangeiras. É um ensino de luxo para imigrantes de luxo. Mas porque hão-de os filhos de Bruxelas ter mais direitos do que os dos subúrbios das nossas cidades? Porque hão-de uns ser filhos e outros enteados? Esta a questão de sempre, que justifica combates de sempre.

11. Mas a escola multilingue não é apenas um instrumento de luta contra a discriminação. É uma alavanca para o entendimento intercultural. A integração dos imigrantes não deve ser feita por esmagamento das diferenças, pelo abandono das línguas e culturas de origem. Nem estas devem sobreviver fechadas e separadas. Pelo contrário, o que nos enriquece é a incorporação e a “mistura” das diferentes raízes num património comum cosmopolita. A nossa Europa passa por aqui. Pela certeza de que o resultado da interacção entre culturas é muito mais do que a mera soma ou justaposição das parcelas que interagem.

12. Eis as razões que levaram o Bloco a apresentar ao Parlamento Europeu um relatório – aprovado no fim de Outubro passado – que estabelece o apoio da UE aos projectos educativos que pratiquem a Aprendizagem Integrada de Línguas e Conteúdos. E que nos levará, brevemente, a traduzir esta mesma proposta na legislação nacional.

O Sinn Féin e os difíceis caminhos da paz

Publicado em: Global, Março de 2005

O Sinn Féin (SF) celebrou este ano o centenário da sua fundação, que ocorreu em Dublin, hoje capital da república do Sul. É o único partido do complexo cenário irlandês que elaborou um “livro verde” para toda a ilha, em coerência com a sua estratégia para uma reunificada “Irlanda de iguais”, livre, democrática e republicana.
Recentemente, desafiaram o governo de Dublin a apresentar, também ele, um livro verde para a unidade nacional e para a construção democrática e pacífica de uma sociedade que inclua todos os irlandeses, aposta que nenhum governo do Sul fez até hoje.
O congresso realizou-se, contudo, sob fortíssima pressão dos meios de comunicação de ambos os lados da fronteira. Em parte, tal explica-se como reacção preventiva à grande subida eleitoral que o Sinn Féin tem tido, não apenas nos 6 condados do Norte, mas também nos 26 condados do Sul. Com efeito, nas últimas eleições europeias, elegeram pela primeira vez duas deputadas para o Parlamento Europeu, que viriam a integrar o GUE/NGL. Bairbre de Brun, eleita pela Irlanda do Norte, alcançou 26,3%, ficando em segundo lugar, logo atrás dos unionistas, com 32%.
Mas no Sul, na República da Irlanda, o Sinn Féin também cresceu, elegendo em Dublin Mary Lou McDonald, com uma votação de 14,3%. Globalmente, os republicanos são hoje o terceiro maior partido da Irlanda do Sul, com 11,3%, ultrapassando os
Trabalhistas. Têm ainda muitos eleitos no poder local. Esta consolidação tem gerado muita preocupação e mesmo algum pânico entre os unionistas do Norte e entre as forças de direita e de centro no Sul.

O caso McCartney

Para a atitude da comunicação social irlandesa e internacional, contribuiu o “caso McCartney”. O que se passou a 30 de Janeiro, num pub de Belfast, pesa sob a política republicana. Na sequência de ditos desagradáveis sobre um grupo de mulheres, uma briga violenta que transborda para fora do bar e redunda no assassinato de um dos presentes: Robert McCartney.
A história nada teve de política e em qualquer país seria um caso de polícia. Mas na rixa estiveram envolvidos vários membros do movimento republicano que, depois da tragédia, teriam roubado a cassete de video-vigilância, apagado vestígios, e intimidado os presentes para não testemunharem sobre os factos. Daqui à acusação que o IRA seria responsável pelo crime, foi um pequeno passo. De imediato, a direcção do IRA declarou não ter tido nada a ver com o incidente e procedeu a um inquérito interno, que confirmou o envolvimento de três dos seus membros. A organização condenou veementemente a sua atitude e expulsou três militantes.
Um deles prestou depoimento às autoridades e os outros dois foram instados a assumirem as suas responsabilidades. O IRA reafirmou o apoio às exigências da família e declarou não tolerar que alguém use o nome da organização para intimidar testemunhas que queiram ajudar à descoberta dos criminosos. Mas o mal estava feito.

Os ataques crescem
O apoio também


O SF, que foi também atacado devido a este caso, tomou uma posição muito clara. Gerry Adams afirmou, no Ard Fheis, que não descansará enquanto “os que mancharam a causa republicana não forem levados à justiça”. Sem retórica, explicou aos delegados que não poderia fazer campanhas sobre as vítimas dos britânicos e dos paramilitares unionistas, se não fosse igualmente claro na exigência de justiça neste caso.
Aliás, o momento mais emotivo do congresso foi quando o presidente entrou na sala na companhia das irmãs McCartney e a assembleia aplaudiu de pé a família da vítima e a sua presença confirmando o papel que o SF está a ter na descoberta e castigo dos autores do crime.
Estes acontecimentos ocorreram em cima de eleições intercalares num círculo eleitoral da Irlanda do Sul: Meath, pelo que o tom das acusações contra os republicanos visava em boa parte o esvaziamento eleitoral da sua base de apoio. Em Meath, o Sinn Féin tinha tido 3,53% em 1997 e 9,43% em 2002. Com estas circunstâncias verdadeiramente anormais a rodearem a campanha, muito se especulou sobre os resultados. Mas, mais uma vez, o apoio do SF cresceu, obtendo esta semana em Meath 12,25%, confirmando-se como o terceiro partido, à frente do Labour.
A importância deste resultado é, contudo, maior, porque o processo de paz se encontra bloqueado. A leitura dos resultados pesará na avaliação estratégica dos britânicos e dos unionistas que, a Norte, querem dificultar e/ou impedir a participação dos republicanos no futuro governo. E até mesmo no Parlamento de Londres (onde o SF ganhou 4 lugares nas últimas eleições), que acaba de votar a retirada do direito do SF às comparticipações financeiras.
Mas o tempo corre contra eles. A favor da paz conta o caminho já percorrido e ainda a vontade expressa do povo da ilha.

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Um congresso singular

Durante três dias os congressistas do Sinn Féin discutiram e votaram 380 moções, além de uma série de emendas. As moções, agrupadas em 18 grandes temas, são de pequena dimensão, algumas de um parágrafo apenas, e são apresentadas por estruturas de direcção ou de base, por militantes ou grupos de militantes. Os congressistas são concretos - a favor ou contra em cada ponto - e vota-se, uma a uma, no fim de cada tema. Este método de trabalho, praticado também por outros partidos de esquerda do Norte da Europa, permite aos delegad@s uma maior proximidade em relação às decisões, precisas e delimitadas. Mas como não há bela sem senão, a coerência entre as escolhas é
difícil de garantir. Assim, com periodicidade anual e de forma inteiramente aberta à comunicação social, @s militantes decidem a linha do partido nestes congressos, a que chamam em gaélico Ard Fheis (lêse ardéch). Os órgãos dirigentes nacionais são eleitos em votação secreta durante o congresso, em listas separadas masculinas e femininas, para assegurar a paridade. Quem viu esta instância a funcionar e a decidir sem soluções predefinidas por outrem, não pode deixar de sentir alguma revolta ao ver nos canais de televisão internacionais John Bruton, o novo representante da União Europeia junto dos EUA e ex-primeiro-ministro da Irlanda, afirmar que no Sinn Féin as decisões “são impostas de fora”. A União não deveria permitir que John Bruton utilize o seu novo posto institucional para efeitos de propaganda doméstica.

Empregos com filhos e enteados



Publicado em: Jornal Global, Fevereiro de 2005

Texto de Renato Soeiro e Carmen Hilário

Uma grande polémica atravessa, já, o movimento sindical e político da Europa: a proposta de Directiva relativa aos serviços no mercado interno, aprovada em 13 de Janeiro de 2004 pela Comissão Europeia (CE). Este polémico texto foi redigido por Frederik Bolkestein, então co- missário europeu, que do pas- sado trazia um invejável curriculum ex-director da Shell, ministro holandês do Comércio e, em seguida, da Defesa, além de presidente da Internacional Liberal.

A “Directiva Bolkestein” inscreve-se no processo de reformas lançado pelo Conselho Europeu de Lisboa do primeiro semestre de 2000. Desse conclave resultou um documento que Blair e Aznar prepararam, mas que ficaria conhecido como Estratégia de Lisboa. Para realizar a ambição deste documento - transformar a União Europeia (UE), até 2010, no “espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo” - as elites de Bruxelas consideram fundamental a criação do mercado interno no domínio dos serviços, sem os “obstáculos que o obstruem”. Tratando-se de uma Directiva-quadro, a proposta visa criar um quadro jurídico aplicável a cerca de 50 por cento do PIB europeu e a 60 por cento do emprego na União. Ou seja, tem consequências de enorme amplitude, que se estendem da mediação do emprego temporário à indústria da construção civil, e do comércio ao abastecimento de água, aos infantários ou à televisão, sem excluir serviços de saúde e prestação de assistência... Um processo legislativo coerente e uniforme para realidades tão distintas é quase uma odisseia. Mas foi a isso mesmo que o comissário se atirou.

O “país de origem”

Em substância, trata-se de remover quer os obstáculos nacionais à liberdade de estabele cimento, quer os obstáculos à livre circulação dos serviços em espaço comunitário. Para tanto, a proposta introduz o “princípio do país de origem”, por força do qual os prestadores de serviços só estão sujeitos à lei do país de onde são provenientes. Este princípio não se encontra expressamente consagrado em nenhum dos tratados europeus e foi inicialmente concebido para o domínio da livre circulação de mercadorias. Exemplificando, um produto oriundo do país A pode ser vendido no país B da União, desde que a sua qualidade tenha sido certificada no país A. Agora, Bolkestein quer adaptar e alargar este critério a boa parte do trabalho contratado no espaço comunitário - fazendo dele a norma para a circulação dos trabalhadores. A Comissão defende que a consagração deste princípio é o único modo realista de conciliar a “livre circulação” com a manutenção dos diferentes regimes jurídicos existentes nos Estados-membros. Como se verá, este é um ponto decisivo da directiva em causa.

Muitos têm sido os debates e audições que a este propósito se têm realizado. E no Parlamento, a eurodeputada Evelyne Gebhardt (do Partido Social Democrata Alemão) elaborou um relatório onde considera que a proposta deverá ser substancialmente modificada. Ela coloca dois grandes problemas: por um lado, o âmbito de aplicação do projecto de Directiva; e por outro, a consagração geral do princípio referido.

Reservas e oposição

No que concerne ao âmbito de aplicação, a proposta distingue os “serviços económicos de interesse geral” dos serviços públicos, que ficariam de fora da Directiva. Sucede que muitos já hoje funcionam com recurso a trabalho contratado exterior à administração pública. Por exemplo, o hospital pode ficar de “fora”, mas um conjunto de trabalhos - da limpeza a múltiplas funções técnicas contratadas - podem ficar “dentro”. Pela porta do cavalo, prestando o mesmo tipo de serviços, passaríamos a ter trabalhadores submetidos a diferentes regimes jurídicos... no mesmíssimo emprego.

A introdução do “princípio do país de origem” entra ainda em conflito com um projecto de Directiva, relativo ao reconhecimento das qualificações profissionais. Escreve a eurodeputada socialista: “Na directiva relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais aplica-se o princípio do país de destino e não o do país de origem”. E exemplifica: “a profissão de pedreiro é muito regulamentada na Alemanha, mas na Grã-Bretanha não. A aceitação generalizada do princípio do país de origem teria como consequência que um pedreiro alemão no Reino Unido seria abrangido pela lei alemã, mas o seu colega inglês não!”. Esta é a versão mais benigna do filme. Se o leitor(a) substituir o pedreiro alemão por um português e o colocar na Alemanha ou em França, a diferença fica muito mais nítida: amarrado à legislação portuguesa, em caso de acidente, os serviços de saúde desses países prestar-lhe-iam gratuitamente apenas os cuidados previstos na regulamentação portuguesa, obviamente inferiores. Como é que a realidade dos factos se enquadra no objectivo proclama do da “igualdade de tratamento e não discriminação”, é que não se descortina facilmente...

A eurodeputada Evelyne Geghardt adianta ainda outro exemplo: “será necessário, para melhorar a livre circulação de serviços na UE, deixar que o prestador de serviços traga consigo o seu direito nacional? Como deverá um empreiteiro sueco, enquanto destinatário de um serviço, intentar uma acção contra um ladrilhador letão? Perante um tribunal cível na Suécia, de acordo com o direito letão? Ou perante um tribunal na Letónia?”...

O dumping intra-muros

Durante uma audiência realizada no Parlamento Europeu, foram enérgicas as objecções à introdução deste princípio. De acordo com as vozes críticas, ele incentiva os prestadores de serviços a estabelecerem-se nos Estados-membros com normas de protecção menos rigorosas e, nos mais desenvolvidos, aumenta a pressão para baixar as exigências legais ao livre estabelecimento, sob argumento da competitividade e da captação de empresas. Daqui a colocar em perigo os direitos sociais, dos consumidores e dos utentes dos serviços de saúde, vai uma ténue fronteira que o mercado se encarregará de saltar.

Por outro lado, a Directiva prevê que seja o país de origem a controlar os serviços prestados pelas suas empresas e profissionais nos outros Estados. É absurdo, mas é assim. Mas as consequências podem ser desastrosas na óptica dos consumidores: não se vê bem que interesse terá um Estado em deslocalizar para países terceiros mecanismos de controlo; e muito menos se vê como poderão reagir, em termos de laxismo, tais serviços do país de destino, amputados do seu papel. No Parlamento, a discussão atravessa agora outras Comissões, avaliando o impacto da proposta nos diferentes sectores de actividade, em particular sobre a mercantilização de outros serviços essenciais, como o das actividades culturais e educativas.

Um grupo de trabalho no âmbito do Conselho Europeu procedeu entretanto a uma revisão e comentário do texto original, artigo a artigo, procurando responder às muitas objecções que lhe têm sido apontadas. A partida não se apresenta encer rada, apesar das alterações que a Comissão Europeia anuncia, mantém-se o essencial da proposta. Mas o calendário previsto para a adopção final da Directiva, em fim de 2005, parece hoje dificilmente concretizável. A palavra, agora, tem que passar para o “lado de cá”. Para os que defendem que a livre circulação de trabalhadores se deve fazer no quadro legal dos países de destino e que é necessária legislação comunitária que regule os direitos “por cima” em vez de contribuir para a dualização dos mercados de trabalho.

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O 16° artigo da polémica

1. Os Estados-Membros diligenciam para que os prestadores estejam sujeitos apenas às disposições nacionais do seu Estado-Membro de origem que digam respeito ao domínio coordenado.

São abrangidas pelo primeiro parágrafo as disposições nacionais relativas ao acesso à actividade de um serviço e o seu exercício, nomeadamente aquelas que regem o comportamento do prestador, a qualidade ou o conteúdo do serviço, a publicidade, os contratos e a responsabilidade do prestador.

2. O Estado-Membro de origem é responsável pelo controlo do prestador e dos serviços que este fornece, mesmo quando os serviços sejam fornecidos noutro Estado-Membro.


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A Directiva inteligente

A desburocratização e simplificação de processos é vital para o mundo das pequenas e médias empresas (PME), que não têm possibilidade de ultrapassar as barreiras legais que lhes são hoje impostas em muitos Estados-Membros.

Os consumidores também ficam a ganhar com um mais fácil e livre acesso aos serviços prestados por qualquer PME da União, desde que garantida a qualidade do serviço. Estes são os aspectos positivos em que é forçoso haver avanços e remover entraves.

Mas estas melhorias só aparentemente são o objecto primordial do projecto de Directiva. Com efeito, a regressão nos direitos, se feita por via da modificação das legislações nacionais, é um processo doloroso para os governos... A nova proposta segue um caminho mais inteligente e eficaz. Com o alargamento da União, os baixos salários, a fraca protecção social e a regulamentação de baixa intensidade, passaram para dentro das fronteiras da União. São hoje legais, mas confinadas a espaços geográficos algo periféricos.

Não existindo possibilidade de impor esses padrões a toda a União, a nova Directiva oferece a possibilidade da sua generalização prática. Por via da deslocalização de grandes empresas para novos países de origem, por um lado; e da livre-circulação de mão-de-obra barata para os países centrais. A obsessão liberal pela competição quer exportar para o centro as piores regulamentações hoje existentes.

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Movimento social em marcha

A proposta Bolkestein foi rejeitada pela Confederação Europeia de Sindicatos e tem sido considerada em meios da esquerda como uma “máquina de guerra contra os serviços públicos”. Prevêem-se acções nos vários Estados e mesmo a nível europeu, a 19 de Março, em Bruxelas. E multiplicam-se entretanto na Internet os sítios com petições e campanhas*. Nos partidos de esquerda, a rejeição é a nota dominante. Mesmo entre os membros do PS francês, que recentemente se mostraram muito divididos no referendo interno sobre a Constituição da UE, há agora unidade na rejeição da directiva. Nos meios culturais, a inquietação não é menor. Se os serviços ligados à cultura passarem a estar submetidos à nova directiva, a lógica de concorrência que ela contém degradará a qualidade dos projectos culturais. Como bem assinala a Fundação Copérnico, “não é pondo em concorrência os povos que se poderá construir uma Europa solidária. Estas políticas arriscam-se a conduzir à rejeição da própria ideia europeia”.

O caso Vaxholm

ou como o princípio do país de origem começa a mostrar as suas potencialidades

Publicado em: www.be-global.org em 2005-10-26

No dia 25 de Outubro, Durão Barroso veio finalmente ao Parlamento Europeu responder pelas afirmações provocatórias do seu Comissário responsável pelo Mercado Interno e os Serviços contra a Suécia e o seu modelo social.

Mas recuemos um pouco para entendermos melhor os contornos deste caso, que fez subir a temperatura dos debates na Europa nas últimas semanas.

A empresa Laval, da Letónia, tinha ganho o concurso para a empreitada de construção de uma escola na Suécia, na cidade de Waxholm. O sindicato sueco da construção civil pressionou então a empresa para que assinasse o contrato colectivo de trabalho do sector. A empresa recusou, afirmando querer aplicar aos seus trabalhadores destacados na Suécia as convenções de trabalho da Letónia. Gerou-se um conflito e os sindicatos organizaram um bloqueio à Laval, do qual viria a resultar a sua declaração de falência e um processo nos tribunais suecos e europeus. O Comissário McCreevy declarou então que em todo o processo defenderia a posição da Laval e que as condições sociais suecas estavam a ser um entrave ao desenvolvimento do mercado único.

As reacções às declarações do Comissário foram enérgicas, não só na Suécia, mas também da Confederação Europeia de Sindicatos e de alguns grupos do Parlamento Europeu, que exigiram a presença do presidente da Comissão para explicações.

Defendendo as liberdades de circulação e de prestação de serviços, Barroso deu uma no cravo outra na ferradura, elogiando o modelo social sueco e o seu balanço muito positivo. Mas a clivagem não podia ser mais nítida. Os liberais defendendo uma Europa "aberta, dinâmica e competitiva" e colocando-se do lado da construtora, as diferentes forças de esquerda e centro-esquerda defendendo a preservação dos programas sociais e criticando que se possa lançar trabalhadores com menos regalias contra outros a fim de rebaixar os seus níveis salariais e de protecção social.

A verdade é que isto hoje já é possível à luz das regras em vigor na União. Mas a procissão ainda vai no adro. O princípio do país de origem é a espinha dorsal da directiva Bolkestein que está neste momento em discussão no Parlamento Europeu e que em breve será votada. Será que o caso Waxholm irá fazer soar os alarmes nas consciências empedernidas de muitos socialistas europeus que estão dispostos a aceitar a directiva, mesmo que numa versão vagamente mitigada?

Directiva Bolkestein

uma questão central da luta de classes em curso na Europa

Publicada em: www.be-global.org em 2005-11-22

1. Situação do processo legislativo

A proposta de Directiva relativa aos Serviços no Mercado Interno está a chegar a uma fase decisiva, embora ainda não final, do longo percurso que caracteriza a tomada de decisão das instituições europeias. Foi votada hoje mesmo no Parlamento Europeu (PE) no âmbito da Comissão parlamentar do Mercado Interno (IMCO) com uma retumbante vitória da direita, apesar das muitas alterações que sofreu, de um modo geral no sentido de atenuar os aspectos mais chocantes. “Agora as empresas terão mais liberdade para exercer os seus direitos” disse satisfeito, no fim da votação, o deputado conservador britânico que liderou o Partido Popular Europeu (PPE-DE) nesta questão, resumindo bem o sentido da decisão. A directiva deverá agora ser agendada para uma votação no plenário do PE no próximo mês de Janeiro de 2006.

Recordemos (em termos muito simplificados) que entre as três instituições intervenientes – o Parlamento Europeu, o Conselho Europeu e a Comissão Europeia – a iniciativa legislativa cabe à Comissão, que é portanto quem pode propor as directivas, não tendo no entanto poder de decisão sobre elas, cabendo este poder às outras duas instituições em conjunto, no que se chama o processo de co-decisão. Após aprovação no plenário do PE em primeira leitura, a directiva é comunicada ao Conselho onde os chefes de Estado e de governo decidirão por maioria qualificada. Se o texto aí aprovado for semelhante ao do PE, passa então a constituir uma lei europeia. Caso contrário, o processo recomeçará.

Esta proposta de directiva foi apresentada pela Comissão num documento datado de 13 de Janeiro de 2004, já quase com dois anos. O seu autor foi Frits Bolkestein, o comissário que tinha o pelouro do Mercado Interno, uma figura importante do mundo dos negócios e da política, ex-director da Shell, ex-ministro holandês do Comércio e, em seguida, da Defesa, além de presidente da Internacional Liberal. Um curriculum que fala por si. Estamos perante um documento chave da institucionalização do liberalismo económico na sua versão mais dura, e outra coisa não seria de esperar de um homem como Bolkestein.

Mas uma questão que não tem estado suficientemente presente no debate em curso, é que este documento só é uma proposta de directiva porque foi aprovado pela Comissão, a qual era presidida pelo socialista Romano Prodi. Poderia, portanto, com propriedade, ser chamada também de “directiva Prodi”. E não consta que o comissário socialista António Vitorino tenha votado contra.

Sendo a mais polémica, liberal e anti-social directiva em discussão na UE, ela é contudo o resultado de um consenso forte do bloco central.

A reunião do Conselho de 11 de Março de 2004, em que o governo português esteve representado por Carlos Tavares (Min. da Economia) e Maria da Graça Carvalho (Min. Ensino Sup. e Invest. Cient.), sublinhou a importância da directiva proposta e decidiu atribuir-lhe uma prioridade elevada com vista a realizar “rápidos progressos”.

2. Directiva Bolkestein: filha da Estratégia de Lisboa, neta do AGCS

Já em artigo recente, no número anterior da Comuna, sublinhámos a importância da Estratégia de Lisboa como âncora da política europeia e a consequente necessidade da sua crítica para podemos atacar os fundamentos do projecto neoliberal europeu. Lembremos que a Estratégia de Lisboa é assim chamada porque foi aprovada na reunião do Conselho realizada em Março de 2000, em Lisboa, quando Portugal exercia o cargo rotativo da presidência do Conselho Europeu. Tem sido apresentada como o principal contributo do governo socialista português e de António Guterres para a grande política europeia. E é, sem dúvida.

A Estratégia de Lisboa não tem sido alvo de ataques tão claros e frontais como acontece com a directiva Bolkestein, que tem a mais enérgica rejeição por parte do movimento sindical e social europeu, mesmo daquele onde a influência da social-democracia e da Internacional Socialista é dominante. É, porém, importante perceber que a directiva Bolkestein decorre directamente da Estratégia de Lisboa e que a sua aprovação é considerada mesmo como uma condição essencial para o êxito daquela estratégia.
Para que não se pense que esta é uma afirmação forçada ou gratuita, visando comprometer os socialistas com as teses ultraliberais do liberalíssimo e detestado Bolkestein, nada melhor do que remeter para os próprios documentos oficiais.

O texto da directiva Bolkestein começa precisamente assim:

“ 1. A presente proposta de directiva inscreve-se no processo de reformas económicas lançado por Conselho Europeu de Lisboa para transformar a Europa, até 2010, no «espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo». Com efeito, a realização deste objectivo torna indispensável a criação de um verdadeiro mercado interno para os serviços. O considerável potencial de crescimento e de criação de empregos no domínio dos serviços não pôde ser concretizado até ao momento devido aos numerosos obstáculos que obstruem o desenvolvimento das actividades de serviços no mercado interno. Esta proposta faz parte da estratégia adoptada pela Comissão para suprimir os referidos obstáculos e dá seguimento ao relatório sobre a situação do mercado interno dos serviços que revelou a sua amplitude e gravidade.

2. O objectivo da proposta de directiva é estabelecer um quadro jurídico que suprima os obstáculos à liberdade de estabelecimento dos prestadores de serviços e à livre circulação dos serviços entre os Estados-Membros e que garanta aos prestadores, bem como aos destinatários dos serviços, a segurança jurídica necessária para o exercício efectivo destas duas liberdades fundamentais do Tratado. A proposta cobre uma larga variedade de actividades económicas de serviços, com algumas excepções como os serviços financeiros, e só se aplica aos prestadores estabelecidos num Estado-Membro.”

A filiação da directiva está pois estabelecida e documentada. E é talvez essa filiação que tem dificultado a construção de uma frente política clara e alargada contra ela, como pareceria a alguns ser lógico e esperável, atendendo à amplitude da frente social e sindical da contestação.

Mas para além desta origem europeia, a directiva filia-se mais globalmente nas disposições da Organização Mundial do Comércio – OMC, decididas na ronda do Uruguai, concretamente no Acordo Geral sobre o Comércio dos Serviços – AGCS, também conhecido pela sua sigla inglesa GATS – General Agreement on Trade in Services.
Na capítulo IV deste Acordo, intitulado "Progressiva liberalização", determina-se, no artigo XIX, que os signatários começarão, no prazo máximo de cinco anos, "sucessivas rondas de negociações com vista a atingir um nível mais elevado de liberalização" e que "essas negociações serão dirigidas para a redução ou eliminação das medidas que tenham um efeito adverso para o comércio de serviços, como meio para conseguir um eficaz acesso aos mercados".

Este acordo está datado de 1994, e o prazo limite de cinco anos que era então dado para o início das negociações de liberalização corresponde ao fim de 1999. Elas foram efectivamente lançadas em Janeiro de 2000 com enormes pressões para a liberalização do acesso ao mercado de serviços. Logo a seguir, em Março de 2000, era aprovada a Estratégia de Lisboa. E no âmbito desta estratégia é apresentada a Directiva europeia sobre os Serviços no Mercado Interno, dita Bolkestein. A árvore genealógica não tem segredos. O que está em curso tem um plano de longo prazo e objectivos bem claros.

3. Que serviços?

O comércio livre de mercadorias, acordado no GATT, assenta em princípios relativamente simples de redução ou anulação de tarifas aduaneiras e restrições às importações. Mas o comércio de serviços, de que trata o GATS ou AGCS, é bem mais complicado. Pode assumir basicamente quatro formas: um fornecimento transfronteiriço (como acontece quando enviamos uma carta ou um fax para outro país), um consumo realizado no estrangeiro (como fazemos quando, como turistas, utilizamos um hotel ou um restaurante), uma presença comercial empregando pessoal local (como acontece com as lojas de cadeias estrangeiras presentes no nosso país que empregam portugueses) ou uma prestação noutro país com deslocação de pessoas (sejam técnicos, consultores ou operários da construção).

Por vezes tem-se uma noção um pouco restritiva do âmbito das actividades económicas que correspondem à designação "serviços", já que tradicionalmente se mencionavam separadamente os sectores da indústria, do comércio e dos serviços. Mas na definição do AGCS ou da directiva Bolkestein, "serviços" são muito mais do que resulta dessa divisão, já que incluem um vastíssimo sector onde cabem muitas actividades industriais (como a indústria de construção civil), toda a actividade comercial e ainda a os serviços privados e a maior parte dos serviços públicos.

Na directiva Bolkestein, serviços são definidos como “toda e qualquer prestação através da qual um prestador participe na vida económica, independentemente do seu estatuto jurídico, das sua finalidades e do domínio de acção em causa. Assim, são abrangidos: os serviços aos consumidores, os serviços às empresas ou os serviços fornecidos a ambos”. No seu conjunto, os serviços assim considerados, geram quase 70% dos PNB e do emprego da União Europeia.

No definição incluída no artigo I.3 do AGCS, estão compreendidos “todos os serviços de todos os sectores com excepção dos serviços fornecidos no exercício do poder governamental, entendidos estes como os que não são fornecidos numa base comercial nem em regime de concorrência”. Para a implementação do AGCS, a UE e os EUA têm feito enormes pressões no sentido de reduzir estas excepções previstas. Compreende-se que a abertura de um qualquer serviço público à concorrência, por limitada que seja, tem como efeito imediato, em consequência deste artigo, que o sector em causa fica abrangido pelo AGCS e sob a alçada da OMC.

Eis apenas um exemplo do que isto significa: a União Europeia requereu a países como o Botswana, o Egipto, as Honduras ou a Tunísia, o fim do monopólio de gestão pública do sector da água, com vista a integrá-lo no conceito de serviço abrangido pelo AGCS para que as grandes empresas europeias do sector possam começar a vender água aos habitantes desses países (uma água que já é deles, já que não se prevê a construção de nenhum pipeline para transportar água de França ou de Inglaterra para o Botswana ou para as Honduras).

4. O complemento necessário das deslocalizações

O conceito de serviços exposto acima, correspondendo a muito diferentes actividades, inclui no entanto uma característica comum, que é a chave do problema: são actividades que são exercidas necessariamente junto do consumidor.

O que não acontece com a indústria. O capital tem utilizado o método da deslocalização das suas empresas industriais, indo atrás de mão-de-obra mais barata, tornando as empresas mais competitivas e aumentando a rentabilidade dos investimentos. Enquanto houver grandes desigualdades de uns países para os outros, a deslocalização resulta, é rentável e irá continuar.

Mas há sectores de actividade que, pelas suas características intrínsecas, não podem ser deslocalizados. Por exemplo, a construção civil tem de ser feita no local, pelo menos a grande maioria das tarefas de que se compõe. O abastecimento de água e de electricidade tem de ser levado até à casa das pessoas e das empresas. A hotelaria e a restauração são indeslocalizáveis, são serviços que têm de ser prestados onde estão os clientes. Assim como o ensino, a saúde, os transportes, etc.

Mas isto não significa que, por não poderem deslocalizar a prestação do serviço, os empresários destes sectores desistam da busca de mão-de-obra barata. Uma das soluções clássicas é a utilização de mão-de-obra de imigração, sobretudo se for possível manter os trabalhadores imigrantes sem acesso completo aos direitos laborais e sociais, trabalhando abaixo dos níveis salariais dos outros trabalhadores do país de acolhimento. Mas há outra possibilidade, é aquela que é prevista nesta directiva: os trabalhadores imigram mas não como trabalhadores à procura de um emprego no país de destino, viajam como empregados deslocados das empresas sedeadas nos países de origem, vinculados portanto às condições contratuais que aí vigoram. E como variante desta solução, é possível até dispensar a deslocação de pessoal e recrutar trabalhadores directamente no país de destino ao mesmo preço e com as mesmas condições que teriam os imigrantes, desde que o contrato seja feito através de empresa estabelecida no chamado país de origem.

O empresário da era Bolkestein terá, pois, apenas que ou deslocalizar a sede da sua empresa para os países em que as condições salariais, fiscais e de exigência ambiental constituam um custo menor, ou tão somente comprar uma empresa aí existente ou constituir uma nova, e depois prestar o serviço onde for preciso, onde for mais bem pago. É o dumping social.

Este método dá os mesmos resultados do que a utilização de imigrantes a baixo preço, tantas vezes ilegais, mas é muito mais limpo e mais próprio de europeus civilizados. Agora, os trabalhadores poderão estar completamente legais a ganhar a mesma miséria, com a vantagem adicional de que não haverá qualquer vínculo do trabalhador ao país mais rico onde o serviço é prestado, podendo ser recambiados sem problemas logo que não sejam necessários. As leis de imigração, sejam quais forem, não se aplicam. Em caso de os trabalhadores ficarem desempregados, serão desempregados do país de origem da empresa, onde haverá eventualmente (diríamos: provavelmente) um custo baixo ou nulo com o apoio social.

Este sistema tem também a vantagem, para o capital, de estabelecer novos padrões europeus de preço e regalias para a contratação de mão-de-obra, com influência nas negociações das próprias empresas com sede nos países mais desenvolvidos, fazendo enorme pressão para um nivelamento pelos valores mais baixos da União, sob pena de perda de competitividade face às empresas concorrentes que já estejam bolkesteinizadas.

5. A alma do processo tem um nome: Princípio do País de Origem – PPO

O voto de hoje da comissão IMCO retirou formalmente a designação do PPO, altamente impopular em França e nos meios sindicais europeus, mas o PPE e os Liberais conseguiram que os seus pressupostos continuassem subjacentes à directiva. Mas, para que não haja qualquer dúvida ou ambiguidade sobre este princípio, que é essencial para todo o processo, recorramos à definição que é apresentada no texto oficial da directiva Bolkestein:

“ A proposta de directiva baseia-se numa combinação de técnicas de enquadramento das actividades de serviços, designadamente:

O princípio do país de origem por força do qual o prestador só está sujeito à lei do país em que se encontra estabelecido e os Estados-Membros não devem restringir os serviços fornecidos por um prestador estabelecido noutro Estado-Membro. Este princípio permite ao prestador fornecer um serviço num ou em vários outros Estados-Membros sem estar sujeito à respectiva regulamentação. Este princípio permite também responsabilizar o Estado-Membro de origem, obrigando-o a assegurar um controlo eficaz dos prestadores estabelecidos no seu território, ainda que estes forneçam serviços noutros Estados-Membros.
Além disso, a preocupação de limitar as interferências em relação às particularidades dos regimes nacionais justificou algumas escolhas legislativas:

A proposta não efectua uma harmonização pormenorizada e sistemática de todas as regras nacionais aplicáveis aos serviços, limitando-se às questões essenciais cuja coordenação é estritamente necessária para assegurar a liberdade de estabelecimento e a livre circulação dos serviços;

O recurso ao princípio do país de origem permite a realização do objectivo que consiste em assegurar a livre circulação dos serviços, permitindo simultaneamente a coexistência pluralista dos regimes jurídicos dos Estados-Membros, com as suas especificidades, não podendo estas últimas ser utilizadas para restringir os serviços de um prestador estabelecido noutro Estado-Membro.

[...]
Com vista a criar um verdadeiro mercado interno dos serviços, é necessário suprimir as restrições à liberdade de estabelecimento e à livre circulação dos serviços que ainda estejam previstas pelas legislações de alguns Estados-Membros e que sejam contrárias aos artigos 43.º e 49.º do Tratado. As restrições proibidas afectam, nomeadamente, o mercado interno dos serviços e devem ser desmanteladas de maneira sistemática o mais depressa possível.”

Citamos o texto da directiva, porque é difícil ser mais claro do que os seus redactores. Prestar um serviço num país sem estar sujeito à respectiva regulamentação; não-harmonização das regras; coexistência pluralista dos regimes jurídicos (sem estas diferenças entre os países o negócio não compensava); atribuir o controlo ao país de origem (imagine-se o controlo da Estónia de uma empresa com sede no seu país mas a prestar serviços em Chipre ou nos Açores, ou vice-versa - estamos portanto basicamente livres de controlos sérios); desmantelar de maneira sistemática e o mais depressa possível as restrições que possam advir dos regimes jurídicos nacionais: tudo está preto no branco e não deixa margens para dúvidas sobre as verdadeiras intenções, honra seja feita ao documento.

A estratégia será portanto: a indústria deslocaliza a produção, os serviços deslocalizam a sede.

Nesta nova fase que vive a União, assume-se claramente uma viragem de rumo. Após uma época em que a harmonização era um objectivo assumido, quase considerado um princípio fundador no projecto europeísta de Delors, trata-se agora, sobretudo depois do alargamento a Leste e das tentativas de redução dos montantes dos orçamentos comunitários, de aceitar e manter as diferenças e encará-las sobretudo como uma oportunidade de negócio.

Esta directiva e o seu princípio do país de origem cumprem no vastíssimo sector de serviços o mesmo papel que as deslocalizações cumprem no sector industrial; são o seu complemento, e vão ser um complemento tão mais importante quanto o peso relativo dos serviços for continuando a aumentar nas nossas sociedades.

Este inestimável serviço prestado pela Comissão Europeia às empresas privadas deve ser por ela considerado tão importante que a levou mesmo a entrar num processo de legalidade questionável: pretender com uma simples directiva modificar o estabelecido no Tratado que institui a Comunidade Europeia, que está em vigor, e que estabelece no seu capítulo 3, sobre os serviços, artigo 50º, que “o prestador de serviços pode, para a execução da prestação, exercer, a título temporário, a sua actividade no Estado onde a prestação é realizada, nas mesmas condições que esse Estado impõe aos seus nacionais.” Poderemos assim vir a assistir a uma interessante guerra jurídica nos tribunais europeus mas, apesar da sua relevância, não devemos alimentar grandes esperanças de bloqueio da directiva por essa via.

6. Pontos fortes e fracos da luta contra a directiva

O movimento popular e muito especialmente o movimento sindical nos países da parte mais central e ocidental da UE estão bastante mobilizados e unidos contra a directiva Bolkestein. Nas grandes manifestações europeias de 2005, todos se manifestavam contra a directiva, tanto os partidários do Não, como os partidários do Sim ao Tratado Constitucional. Esta unidade é um ponto forte, com certeza. Porém, contrariamente ao que aconteceu com o Tratado, a directiva não será sujeita a referendo, pelo que este vasto sentimento de rejeição não terá tradução imediata com efeito deliberativo.

A deliberação está, pois, nas mãos do Parlamento Europeu e do Conselho. Não se pode dizer que esteja em muito boas mãos, mas a esperança de rejeição ainda existe.

O PE tem uma maioria de direita, e uma imensa maioria oriunda do mesmo bloco central que promoveu e apoiou a directiva desde o início. No entanto, muitas contradições existem, nomeadamente no que se refere ao âmbito de aplicação, isto é, à definição dos sectores que se considerará excluídos da directiva, às competências de controlo e verificação, e mesmo em relação à aplicação do PPO. Mas, subtilezas e emendas à parte (na Comissão parlamentar foram apresentadas mais de mil emendas e o relatório final é um documento com 355 páginas), a composição do PE não permite alimentar grandes esperanças desta parte. No voto realizado hoje em Comissão, a emenda que propunha a rejeição global da directiva foi derrotada por 7 votos contra 33 e no voto final, a directiva já emendada foi aprovada com 25 votos a favor, 10 contra e 5 abstenções.

O outro titular do poder de decisão é o Conselho. E aí a situação é bem mais instável. Embora à partida a directiva tivesse merecido apoio unânime (como referimos no fim ponto 1), os últimos tempos trouxeram grande desgaste a essa unidade. Chirac, apoiante convicto no início, tornou-se feroz crítico quando compreendeu que a rejeição do Tratado Constitucional em França se devia em parte a que as pessoas entendiam (muito justamente) estes dois documentos como fazendo parte do mesmo projecto de uma Europa anti-social. Os patéticos apelos feitos durante a campanha para que os franceses dissociassem a directiva do Tratado não resultaram e hoje Chirac culpa o neoliberalismo da Comissão e directivas como esta pela derrota no referendo. O chanceler austríaco Wolfgang Schüssel, homem de direita, afirmou em 27 de Outubro, no último Conselho Europeu informal promovido por Blair em Hampton Court, que a Áustria poderia não votar a favor. O liberal primeiro-ministro da Dinamarca poderá também abandonar o lado dos apoiantes, sentimento em que é razoavelmente acompanhado nos outros países do Norte. Enfim, nos países com nível mais elevado de vida, em que se prevê que haja uma entrada massiva de prestação de serviços oriunda dos países com salários mais baixos, o mal estar geral entre a população cresce e tem reflexos nos governantes, sobretudo nos que terão eleições mais próximas. Existe pois a hipótese de ser precisamente no Conselho que a directiva encrava. Não talvez pelos melhores motivos, mas por mero eleitoralismo de circunstância.

Desta situação decorre uma estratégia concreta de luta: é preciso promover sobretudo grandes mobilizações e movimentos de opinião, acompanhados onde possível por acções nos Parlamentos nacionais, fazendo sentir aos governos que o seu voto favorável à directiva lhes poderá ser fatal em termos de apoio eleitoral. Foi esta força que em França fez mudar Chirac e que vai semeando hesitações noutros governantes. Este é um ponto forte. Toda a pressão é necessária neste momento. É preciso exigir explicações sobre a posição do PS em todo o processo, tanto a nível do governo Sócrates como dos deputados europeus e nacionais.

A rejeição da directiva Bolkestein seria uma importantíssima vitória para o movimento popular, sobretudo porque se segue à vitória contra o Tratado. O ânimo que estas duas vitórias poderiam trazer aos trabalhadores teria consequências animadoramente imprevisíveis.

Porém, e há sempre o outro lado da questão, creio que os verdadeiros dirigentes do projecto de liberalização da Europa estão preparados para esta eventual derrota.

São os mesmos que já fizeram marcha-atrás na questão da Constituição. A sua estratégia assenta no reconhecimento de que avançaram demasiado depressa e sobretudo que avançaram para campos demasiado expostos à crítica e ao voto popular. O seu projecto não precisa disso, muito pelo contrário, vive melhor com uma certa distância e opacidade, com o sentimento de que as questões europeias são demasiado complexas para serem decididas por uma população incapaz de compreender os meandros do que está em causa. Como se constata na prática do dia-a-dia e no sentido das decisões que continuam a ser tomadas, a União não deixou de seguir os caminhos do neoliberalismo subjacentes à Constituição pelo facto de não haver Constituição.

Da mesma forma, o aproveitamento das oportunidades abertas pela existência na UE a 25 de países com salários baixos e condições sociais, fiscais e ambientais pouco exigentes, não deixará de ser aproveitado, mesmo que a directiva Bolkestein sofra um revés. O processo já está em curso, aliás. Ainda este ano, no mês de Maio, foi levantada a questão do trabalho em França de uma centena de trabalhadores do nosso país com salários baixos e bem portugueses, porque vinculados pelo contrato de trabalho do país de origem a uma empresa de direito português prestando serviços em França para a France Telecom. Também na Suécia, o caso Waxholm, de uma empresa da Letónia que pretendia utilizar os seus contratos de trabalho e os seus salários baixos numa obra pública sueca, o que foi boicotado pelos sindicatos suecos para grande irritação da Comissão Europeia, mostra que os empresários não estão parados à espera que termine o longo e incerto processo legislativo da Bolkestein (ver explicação detalhada no texto sobre o caso Waxholm publicado neste site).

Um outro ponto fraco desta luta reside no apoio que os objectivos da directiva podem obter junto dos trabalhadores dos países para onde será feita a deslocalização das empresas de serviços os quais, apesar de manterem baixos salários, verão certamente aumentar as suas possibilidades de emprego, podendo ser jogados contra os trabalhadores dos países mais ricos. O alargamento da solidariedade e a entrada na luta dos trabalhadores do leste da UE é absolutamente essencial.

Se não conseguirmos que a directiva Bolkestein seja rejeitada, estaremos perante uma situação muito mais difícil para as condições sociais e a vida de todos os trabalhadores na Europa, embora haja ainda muitas frentes de combate que podem ser travadas país a país com as legislações nacionais e as excepções à aplicação. Se conseguirmos mandar esta directiva para o mesmo balde do lixo onde está o Tratado Constitucional, o movimento dos trabalhadores ganhará uma importante batalha, mas não poderá descansar sobre os louros da vitória, porque o dumping social expulso pela porta voltará a entrar por uma qualquer obscura janela dos múltiplos instrumentos legislativos e da jurisprudência comunitária. Mas isso poderá ser tema para um outro artigo.