Dois jornais de Gaia de há meio século
Morreu o grande deputado que o Porto nunca teve
Texto do Manuel António Pina sobre o Coliseu
Na conversa sobre o Manuel António Pina em que participei na Feira do Livro do Porto, cujo vídeo está disponível no post anterior, li um pequeno texto do MAP que é de difícil acesso.
Respondendo a vários pedidos que recebi, aqui o disponibilizo para acesso público, com uma explicação: o texto é de 1995, foi escrito a propósito da grande luta que mobilizou as gentes do Porto contra a venda do Coliseu à IURD e cuja vitória permitiu que ainda hoje tenhamos a nossa grande sala de espectáculos como uma referência cultural da cidade.
A propósito dessa luta muita tinta correu. Destacados juristas, poetas e outros intelectuais se pronunciaram diabolizando ou ridicularizando quem se batia em defesa do Coliseu. É a esses ilustres detractores que o Pina responde neste texto, que foi publicado no número especial da revista Porto de Encontro totalmente dedicado a esta luta vitoriosa, publicado em Setembro de 1995 (cuja capa acima se reproduz).
O texto é o seguinte:
AFRONTA e AFRONTAMENTO
Há pessoas que não compreendem, pessoas excessivamente seguras daquilo que aprenderam nas faculdades sobre Direito e sobre Estado de Direito e sobre a chamada lei da oferta e da procura. Só que há por aqui, no unânime “O Coliseu é nosso!”, gritado na rua por gente que, como o outro, também não percebe nada de Finanças nem consta que tenha biblioteca, uma grande e desrazoável razão que não se aprende em faculdade nenhuma. Uma razão fundadora (olhem para as orelhas deles, escandalizadas e espetadas!) do próprio Direito, sem cujo desordenado sangue o Direito seria apenas um seco, duro e estéril monte de fórmulas e de princípios, onde só trepariam os astutos e os sabidos. Podem tais pessoas estar certas de que quando milhares de gargantas, perante a afronta iminente, gritavam aqui à porta: “Não há direito!”, não era no Código Civil que estavam a pensar!
E se nos juntássemos todos para comprar a “Galeria Abel Salazar”?
Jornal Público de 26 de Agosto. de 2023
Um desafio
Há um desafio muito concreto que gostaria de deixar aos leitores deste texto e à sociedade em geral, muito especialmente aos portuenses e a todas as pessoas que se interessam pela cultura e pelo património.
Um dos cafés mais interessantes do Porto morreu. Hoje, felizmente, ainda temos o Majestic, o Guarany, o Ceuta e outros, mas este morreu há muito. Era o Café Rialto, na esquina da rua de Sá da Bandeira com a praça de D. João I, ponto de encontro de artistas e intelectuais. Foi inaugurado em 1944, pleno de obras de arte. Quando fechou, as obras de arte foram retiradas. Todas menos uma, que era inamovível: uma enorme pintura mural com 5 metros de largura e mais de 3 metros de altura, uma obra prima do grande mestre Abel Salazar a que este chamou “Síntese da História”.
O espaço foi tendo outros usos. Como muitos outros espaços da baixa, um dia foi uma dependência bancária, mas o mural lá estava, magnífico, cobrindo toda a parede de fundo.
Hoje é uma loja. Para optimizar o espaço, a pintura foi totalmente coberta com uma parede que permitiu colocar mais umas quantas prateleiras. Esta é a triste situação actual.
Podemos fazer alguma coisa em relação a isto?
Penso que sim, que podemos e devemos. Mas fazer o quê?
Uma solução
A solução mais simples e rápida, respeitadora de todas as leis e normas vigentes, seria comprarmos aquele espaço. Comprarmos o espaço e oferecê-lo à Casa Museu Abel Salazar.
A Casa Museu, uma instituição de grande mérito, com um acervo fabuloso e uma actividade a todos os títulos meritória, é propriedade da Universidade do Porto. Situa-se em S. Mamede de Infesta, relativamente distante do centro do Porto.
Com este espaço, poderia passar a ter um pequeno pólo na baixa da cidade, dando maior visibilidade à obra de Abel Salazar junto do grande público. Talvez se possa chamar “Galeria Abel Salazar”. É um bom local para ter pequenas exposições temporárias em que se pode ir mostrando as várias facetas da produção do artista, uma loja onde as várias edições da Casa se disponibilizam, e tudo com o esplendor de uma parede de fundo monumental com uma pintura que apenas ali pode ser vista.
Modus operandi
Não seria certamente difícil encontrar um mecenas que pudesse fazer a aquisição do espaço (é apenas uma loja), mas a minha proposta é outra. O Porto tem tradição de fazer homenagens - erguer estátuas, por exemplo - através de subscrições públicas. É um modo activo de afirmação de cidadania que nos caracteriza e diz muito da sociedade que somos e queremos ser. Uma subscrição pública para resgatar o mural de Abel Salazar seria em si mesmo uma bela homenagem a um homem que a cidade já homenageou comparecendo em massa no seu funeral, em afrontamento directo com a ditadura, já homenageou com uma estátua, já deu o seu nome a uma das escolas da Universidade do Porto. Abel Salazar ficaria certamente emocionado ao saber que a compra deste espaço com a sua pintura foi um acto colectivo e popular.
É claro que na subscrição pública contaremos não só com o cidadão que empenhadamente contribuirá com uns poucos de euros retirados do seu magro salário ou pensão, mas também com o contributo dos bancos e das empresas, do Ministério da Cultura e da Gulbenkian, da Câmara e das associações empresariais, das fundações e dos mecenas.
O ideal seria que, para receber directamente as contribuições, fosse aberta uma conta especial da Casa Museu ou da sua Associação para este efeito, pormenor a decidir pela própria Casa Museu, pela Universidade e pelo seu Reitor.
A Câmara Municipal poderia ter um papel importante no contacto com o actual proprietário do espaço e na negociação das condições da transação.
Talvez que a Faculdade de Arquitectura possa assumir o projecto de remodelação do espaço e as Belas Artes da sua divulgação.
Se sobrar algum dinheiro da subscrição após a aquisição (e esperemos que sobre), será para apoiar as actividades da galeria, a primeira das quais poderia ser a edição de um livro com a história desta subscrição pública e o nome de todos os que contribuíram, a quem seria oferecido um exemplar como agradecimento.
O Porto é capaz
Enfim, o que se pretende é uma mobilização geral de vontades e de capacidades de uma cidade que já mostrou que o sabe fazer sempre que é preciso.
O Coliseu está aí para o comprovar e foi uma conquista muito mais difícil do que será a pequena “Galeria Abel Salazar”. Ou o Bolhão. Ou o Batalha, que esteve quase morto e hoje brilha de novo. Se conseguimos salvar o grande mural de Júlio Pomar que o velho fascismo tapou, não deixaremos certamente de salvar também o de Abel Salazar que o moderno comércio tapou.
Memórias de José Mattoso e o Bloco
No dia da morte de um dos grandes intelectuais portugueses, deixo-vos aqui dois documentos: uma notícia de jornal de 29 de Setembro de 1999 e a primeira página de um texto que escreveu nessa altura (que o arquivo “Estante Distante” há-de publicar na íntegra).
O TURISTA E O BALÃO Uma história de proveito e exemplo
O TURISTA E O BALÃO
Uma história de proveito e exemplo
O balão de S. João é um objecto voador não tripulado com uma chama acesa. Dizem os técnicos (e é sempre prudente acreditar nos técnicos) que pode constituir um perigo para a aviação. Ora, é a aviação que nos traz os turistas, que sustentam a nossa economia.
Postos perante o dilema: o balão ou o avião, as autoridades, mais concretamente a Autoridade Nacional de Aviação Civil decidiu "fechar o espaço aéreo do Porto durante o período previsto de maior intensidade de lançamento". E o nosso céu lá se encheu outra vez de balões, deixando os aeroturistas à espera.
É bom que, uma vez ou outra, possamos ter uma notícia como esta para não perdermos o que nos resta da esperança na construção de um país decente e que se dê ao respeito.
E o que é que os turistas terão pensado disto? Não sei se foi feito algum inquérito, por isso limito-me a especular. Talvez tenham pensado que o Porto é uma terra que vale mesmo a pena visitar, já que tem tradições tão fortes que até param a aviação, uma das indústrias mais poderosas do planeta. Nesse sentido, esta decisão de deixar os turistas à espera pode ter sido, paradoxalmente, muito boa para o turismo, ao valorizar simbolicamente a força e originalidade das tradições culturais deste "destino".
Da mesma forma poderia funcionar a existência de certas zonas nas nossas cidades onde os turistas nunca pudessem alojar-se, porque eram zonas tão típicas e tão autênticas que só os locais as poderiam habitar.
É claro que na lógica primária dos turistólatras e das gentes do negócio fácil, isto seria um ataque ao turismo, a nossa galinha dos ovos de ouro. Numa perspectiva mais estratégica - para além dos fundamentos urbanísticos e sociais da solução -, isto acabaria por ser uma valorização permanente e duradoura do interesse turístico das nossas cidades, logo, um factor real de desenvolvimento do turismo de qualidade.
Já agora, convém não confundir o conceito "turismo de qualidade" com a utilização perversa (e um bocado bacoca) que a indústria e a comunicação social fazem desta expressão, identificando-a com turismo caro para viajantes ricos.
Não é a mesma coisa. Pode haver muita falta de qualidade no turismo dos ricos e muita qualidade no turismo de preços mais baixos (estou certo, e apenas para dar um exemplo, que qualquer gastrónomo exigente já deve ter vivido em Portugal experiências que o comprovem). Se o preço fosse medida de qualidade, a viagem turística mais qualificada do momento seria no submarino Titan...
O turismo de qualidade - e isto não tem nada a ver com o preço - é aquele que respeita e não agride, nem prejudica, nem descaracteriza os sítios que visita, antes reconhece e valoriza as características que os tornam únicos e portanto interessantes para serem visitados.
Como o Porto com os seus balões de S. João que os fizeram esperar nos aeroportos.
O nosso turismo está a precisar de mais algumas decisões com esta lógica só aparentemente contraditória.