100 anos da Tuna Musical de Santa Marinha

A Tuna Musical de Santa Marinha, uma das mais importantes e históricas associações populares de Vila Nova de Gaia, está a comemorar o seu centenário.

Aproveito o momento comemorativo para partilhar com os leitores alguns documentos com meio século, do tempo em que a TMSM comemorou o seu cinquentenário, que ocorreu num ano altamente marcante na vida da instituição porque começou em pleno fascismo e acabou em plena liberdade, alterando drasticamente as condições em que se desenvolviam as suas muitas actividades.

Uma dessas actividades era a edição regular de um Boletim Interno, que se distribuía aos associados, uma publicação periódica que não submetíamos aos serviços de censura, o que criava uma situação potencialmente interessante, mas delicada. (1)


 Eu colaborava regularmente nesse Boletim e tinha combinado com o Presidente, Zé da Micha (José Marques Monteiro) e com o chefe de redacção, Fernando Peixoto — dois amigos que conhecia de reuniões bastante discretas de um núcleo da Oposição Democrática em Gaia —, que era melhor não assinar com o meu nome por causa da PIDE que andava demasiado atenta ao que eu fazia na vida, sobretudo depois de eu ter sido posto fora da Universidade e proibido de estudar em todos os estabelecimentos de ensino de Portugal e colónias. Assinaria portanto “Manel”, simplesmente. Na altura havia uma radio-novela de grande sucesso que era o “Simplesmente Maria”, eu seria o simplesmente Manel; eles acharam piada à coisa e assim fizemos.


Outra das actividades da Tuna em que colaborava era o grupo de Teatro. Mesmo antes do 25 de Abril estávamos a ensaiar o “Felizmente há luar” do Luís de Stau Monteiro, dirigidos pelo Fernando Peixoto. Mas tínhamos já o projecto de representar “As mãos de Abraão Zacut” com encenação de Artur Almeida. Deixo-vos aqui uma interessante entrevista feita sobre este assunto e publicada no Boletim em Fevereiro de 1974. O entrevistador é o Fernando Peixoto e o entrevistado o Artur Almeida.

É interessante notar a preocupação de há meio século relativa ao conflito entre Israel e a Palestina.




Fica aqui também, como curiosidade, o requerimento ao Director de Serviços de Espectáculos (que eu tinha escrito e o Presidente tinha assinado) pedindo autorização para levarmos à cena esta peça. Está datado de 20 de Abril de 1974. Fi-lo no fim de semana, mas nunca o entreguei porque na quinta-feira seguinte o teatro passou a ser livre e a não precisar nunca mais de “autorização superior”. 


Tudo mudou nesse ano. Deixo-vos também um comunicado da Direcção da Tuna do primeiro sábado de liberdade, dia 27, a convocar a sua “massa associativa e o Povo da Beira-Rio” para irem “TODOS À TUNA”.


E, por fim, deixo-vos uma significativa primeira página do Boletim de Setembro de 1974 sobre o carácter popular da Tuna e uma notícia das comemorações do cinquentenário, já feitas em liberdade.

 





(1) Nessa mesma época, houve em Gaia outras publicações periódicas que não eram submetidas à censura. Duas delas, os jornais “A Semente” e “Perspectiva”, podem ser encontrados aqui.

Grande 25 de Abril fizemos este ano em todo o país.

Penso que no futuro, talvez não muito distante, se compreenderá a enorme importância política das comemorações do cinquentenário da Revolução.

As fotografias de Lisboa, do Porto e doutros locais são verdadeiramente eloquentes de que algo de especial se passou.

Também em Gaia, ou melhor, de Gaia até ao Porto, o 25 de Abril ficou marcado uma inabitual (pode dizer-se mesmo: inédita no concelho) manifestação multipartidária e popular, de que vos deixo aqui algumas fotografias.















25 de Abril em Gaia: E eu, que bandeira vou levar?



No dia 25 de Abril, cinquentenário da Revolução, vou estar às 13h em frente à Câmara de Gaia para a grande manifestação.

E, como é sugerido no convite dos organizadores, vou levar uma bandeira. Mas, sabem uma coisa? Acontecimentos recentes no Parlamento deram-me uma vontade enorme (talvez anacrónica, reconheço) de levar esta bandeira.


Valerá a pena explicar porquê e espero que memórias tão antigas não contenham imprecisões. 


É que fará em breve cinquenta anos que andava eu, neste mesmo local de Gaia onde começa a manifestação, a recolher assinaturas para legalizar este partido.


No dia 21 de Março de 1976, no 2º Congresso, fui eleito para a direcção nacional. Fomos chamados ao palco com o anúncio dos resultados da eleição; entre os novos dirigentes que subiram comigo ao palco estava o Maximino Barbosa de Sousa, o padre Max.


Menos de duas semanas depois, a 2 de Abril, a Assembleia Constituinte aprovava a Constituição, a magnífica Constituição da nova democracia, uma derrota histórica das forças reaccionárias, o enterro formal do fascismo. E foi nesse dia de profunda alegria democrática que uma organização terrorista chamada MDLP fez explodir o padre Max e a camarada Maria de Lurdes Correia dentro do carro, perto de Vila Real.


Estou certo de que percebem que, com a eleição de um dos dirigentes máximos do MDLP para a vice-presidência da Assembleia da República, me tenha dado esta vontade súbita de marchar neste 25 de Abril com a bandeira que era a do Max e da Maria de Lurdes.

As comemorações do cinquentenário são também um momento de lembrar a história.




Quarta-feira, 20 de Março, 17h30: sessão "Como foi o 25 de Abril na FEUP?"

 📅 20/03 🕒 17h30 📍 Auditório José Marques dos Santos (FEUP) 


Branca Gonçalves, Manuel Matos Fernandes e Renato Soeiro 






[do site da FEUP:]

"A Faculdade de Engenharia da Universidade do Porto inicia no dia 20 de março no seu auditório um ano de programação cultural dedicado às comemorações do 50º aniversário do 25 de abril de 1974. 

Sob o mote “As Equações da Liberdade”, o Comissariado Cultural da FEUP reuniu uma comissão interna para o efeito e propõe um conjunto de atividades que inclui debates, concertos, teatro e exposições. O programa pretende evocar a memória do período de resistência, celebrando em simultâneo as conquistas e valores de Abril. 

A proposta que marca o arranque destas atividades é uma conversa, a primeira de um ciclo que ao longo do ano reunirá personalidades da cultura, política, ciência e jornalismo para celebrar 50 anos de democracia, e acontece já na próxima quarta-feira às 17:30. É parte integrante do Clube de Leitura e contará com três convidados de relevo, sendo pontuada com um momento musical no final da sessão. 

Como foi vivido o dia 25 de Abril na FEUP? O que sentiam os estudantes e trabalhadores antes da revolução? Quais foram as reivindicações conquistadas na FEUP? 

Estas são algumas das perguntas que servem de mote para a primeira conversa deste ciclo, que lança também o ano de comemorações. Vamos tentar entender como foi o fim da ditadura, a revolução e o PREC na FEUP, a partir dos testemunhos de quem os viveu: Branca Gonçalves, licenciada em Engenharia Químico Industrial, era trabalhadora da FEUP; Manuel Matos Fernandes, na altura estudante do 4º ano de Engenharia Civil e dirigente associativo; Renato Soeiro, estudante de Engenharia Civil, membro da direção da Associação de Estudantes, atividade que levou a que fosse suspenso e proibido de frequentar qualquer Universidade do país e colónias."

Dois jornais de Gaia de há meio século

Há 50 anos, em 1973, no último ano de vigência do fascismo português, a agitação democrática e popular estava ao rubro. Um dos sectores mais activos era o movimento estudantil. 

Em Vila Nova de Gaia não havia ensino superior, mas os estudantes do secundário estavam em processo de organização das suas associações. Nas duas principais escolas do concelho - a velhinha Escola Industrial e Comercial de Vila Nova de Gaia (hoje Escola Secundária António Sérgio) e no novo Liceu Nacional de Vila Nova de Gaia (hoje Escola Secundária de Almeida Garrett) os estudantes iniciavam a publicação dos seus jornais, sem qualquer submissão à censura nem autorização das direcções das escolas. 

No Liceu publicou-se o "Iniciativa" e na chamada Escola Técnica publicou-se "A Semente". 

No Arquivo ESTANTE DISTANTE, nomeadamente na versão digital, pode encontrar estes jornais completos, em formato ampliável para leitura. O "Iniciativa" aqui e os dois números de "A Semente" aqui e aqui.

Morreu o grande deputado que o Porto nunca teve

Morreu Mário Brochado Coelho, eminente advogado e democrata portuense, símbolo enorme de coragem e coerência antifascista. Outros falarão do seu notável percurso de vida e da importância que teve a vários títulos. Conheci-o bem e longos anos trabalhei com ele nas causas que partilhámos. Mas hoje queria só lembrar o grande deputado que o Porto nunca teve. Apresentámos o seu nome como cabeça de lista em eleições para o Parlamento. Sabíamos que seria sem dúvida uma das figuras mais marcantes da Assembleia da República. Mas nunca foi eleito. E essa é uma falha grave no currículo. Não do Mário Brochado Coelho, cujo currículo notável não precisava disso para nada. Mas sim no currículo dos eleitores do distrito do Porto, sobretudo dos eleitores democratas e progressistas que lhe faltaram com o seu voto sem saberem o que estavam a perder. Em momento pré-eleitoral, faço votos de que a memória desta falha, que não vamos a tempo de reparar, possa ser um instrumento útil para a vossa reflexão.

Texto do Manuel António Pina sobre o Coliseu


Na conversa sobre o Manuel António Pina em que participei na Feira do Livro do Porto, cujo vídeo está disponível no post anterior, li um pequeno texto do MAP que é de difícil acesso. 

Respondendo a vários pedidos que recebi, aqui o disponibilizo para acesso público, com uma explicação: o texto é de 1995, foi escrito a propósito da grande luta que mobilizou as gentes do Porto contra a venda do Coliseu à IURD e cuja vitória permitiu que ainda hoje tenhamos a nossa grande sala de espectáculos como uma referência cultural da cidade.

A propósito dessa luta muita tinta correu. Destacados juristas, poetas e outros intelectuais se pronunciaram diabolizando ou ridicularizando quem se batia em defesa do Coliseu. É a esses ilustres detractores que o Pina responde neste texto, que foi publicado no número especial da revista Porto de Encontro totalmente dedicado a esta luta vitoriosa, publicado em Setembro de 1995 (cuja capa acima se reproduz).

O texto é o seguinte:


AFRONTA e AFRONTAMENTO

Há pessoas que não compreendem, pessoas excessivamente seguras daquilo que aprenderam nas faculdades sobre Direito e sobre Estado de Direito e sobre a chamada lei da oferta e da procura. Só que há por aqui, no unânime “O Coliseu é nosso!”, gritado na rua por gente que, como o outro, também não percebe nada de Finanças nem consta que tenha biblioteca, uma grande e desrazoável razão que não se aprende em faculdade nenhuma. Uma razão fundadora (olhem para as orelhas deles, escandalizadas e espetadas!) do próprio Direito, sem cujo desordenado sangue o Direito seria apenas um seco, duro e estéril monte de fórmulas e de princípios, onde só trepariam os astutos e os sabidos. Podem tais pessoas estar certas de que quando milhares de gargantas, perante a afronta iminente, gritavam aqui à porta: “Não há direito!”, não era no Código Civil que estavam a pensar!

Conversa sobre o Manuel António Pina


 Feira do Livro do Porto, 26 de Agosto de 2023

E se nos juntássemos todos para comprar a “Galeria Abel Salazar”?

 




Jornal Público de 26 de Agosto. de 2023



Um desafio


Há um desafio muito concreto que gostaria de deixar aos leitores deste texto e à sociedade em geral, muito especialmente aos portuenses e a todas as pessoas que se interessam pela cultura e pelo património.


Um dos cafés mais interessantes do Porto morreu. Hoje, felizmente, ainda temos o Majestic, o Guarany, o Ceuta e outros, mas este morreu há muito. Era o Café Rialto, na esquina da rua de Sá da Bandeira com a praça de D. João I, ponto de encontro de artistas e intelectuais. Foi inaugurado em 1944, pleno de obras de arte. Quando fechou, as obras de arte foram retiradas. Todas menos uma, que era inamovível: uma enorme pintura mural com 5 metros de largura e mais de 3 metros de altura, uma obra prima do grande mestre Abel Salazar a que este chamou “Síntese da História”. 


O espaço foi tendo outros usos. Como muitos outros espaços da baixa, um dia foi uma dependência bancária, mas o mural lá estava, magnífico, cobrindo toda a parede de fundo.

Hoje é uma loja. Para optimizar o espaço, a pintura foi totalmente coberta com uma parede que permitiu colocar mais umas quantas prateleiras. Esta é a triste situação actual.


Podemos fazer alguma coisa em relação a isto? 

Penso que sim, que podemos e devemos. Mas fazer o quê?



Uma solução


A solução mais simples e rápida, respeitadora de todas as leis e normas vigentes, seria comprarmos aquele espaço. Comprarmos o espaço e oferecê-lo à Casa Museu Abel Salazar. 


A Casa Museu, uma instituição de grande mérito, com um acervo fabuloso e uma actividade a todos os títulos meritória, é propriedade da Universidade do Porto. Situa-se em S. Mamede de Infesta, relativamente distante do centro do Porto.


Com este espaço, poderia passar a ter um pequeno pólo na baixa da cidade, dando maior visibilidade à obra de Abel Salazar junto do grande público. Talvez se possa chamar “Galeria Abel Salazar”. É um bom local para ter pequenas exposições temporárias em que se pode ir mostrando as várias facetas da produção do artista, uma loja onde as várias edições da Casa se disponibilizam, e tudo com o esplendor de uma parede de fundo monumental com uma pintura que apenas ali pode ser vista.



Modus operandi


Não seria certamente difícil encontrar um mecenas que pudesse fazer a aquisição do espaço (é apenas uma loja), mas a minha proposta é outra. O Porto tem tradição de fazer homenagens - erguer estátuas, por exemplo - através de subscrições públicas. É um modo activo de afirmação de cidadania que nos caracteriza e diz muito da sociedade que somos e queremos ser. Uma subscrição pública para resgatar o mural de Abel Salazar seria em si mesmo uma bela homenagem a um homem que a cidade já homenageou comparecendo em massa no seu funeral, em afrontamento directo com a ditadura, já homenageou com uma estátua, já deu o seu nome a uma das escolas da Universidade do Porto. Abel Salazar ficaria certamente emocionado ao saber que a compra deste espaço com a sua pintura foi um acto colectivo e popular.


É claro que na subscrição pública contaremos não só com o cidadão que empenhadamente contribuirá com uns poucos de euros retirados do seu magro salário ou pensão, mas também com o contributo dos bancos e das empresas, do Ministério da Cultura e da Gulbenkian, da Câmara e das associações empresariais, das fundações e dos mecenas.


O ideal seria que, para receber directamente as contribuições, fosse aberta uma conta especial da Casa Museu ou da sua Associação para este efeito, pormenor a decidir pela própria Casa Museu, pela Universidade e pelo seu Reitor.


A Câmara Municipal poderia ter um papel importante no contacto com o actual proprietário do espaço e na negociação das condições da transação.


Talvez que a Faculdade de Arquitectura possa assumir o projecto de remodelação do espaço e as Belas Artes da sua divulgação.


Se sobrar algum dinheiro da subscrição após a aquisição (e esperemos que sobre), será para apoiar as actividades da galeria, a primeira das quais poderia ser a edição de um livro com a história desta subscrição pública e o nome de todos os que contribuíram, a quem seria oferecido um exemplar como agradecimento.



O Porto é capaz


Enfim, o que se pretende é uma mobilização geral de vontades e de capacidades de uma cidade que já mostrou que o sabe fazer sempre que é preciso. 


O Coliseu está aí para o comprovar e foi uma conquista muito mais difícil do que será a pequena “Galeria Abel Salazar”. Ou o Bolhão. Ou o Batalha, que esteve quase morto e hoje brilha de novo. Se conseguimos salvar o grande mural de Júlio Pomar que o velho fascismo tapou, não deixaremos certamente de salvar também o de Abel Salazar que o moderno comércio tapou.






Memórias de José Mattoso e o Bloco

 No dia da morte de um dos grandes intelectuais portugueses, deixo-vos aqui dois documentos: uma notícia de jornal de 29 de Setembro de 1999 e a primeira página de um texto que escreveu nessa altura (que o arquivo “Estante Distante” há-de publicar na íntegra).





O TURISTA E O BALÃO Uma história de proveito e exemplo

O TURISTA E O BALÃO

Uma história de proveito e exemplo 


O balão de S. João é um objecto voador não tripulado com uma chama acesa. Dizem os técnicos (e é sempre prudente acreditar nos técnicos) que pode constituir um perigo para a aviação. Ora, é a aviação que nos traz os turistas, que sustentam a nossa economia.


Postos perante o dilema: o balão ou o avião, as autoridades, mais concretamente a Autoridade Nacional de Aviação Civil decidiu "fechar o espaço aéreo do Porto durante o período previsto de maior intensidade de lançamento". E o nosso céu lá se encheu outra vez de balões, deixando os aeroturistas à espera.


É bom que, uma vez ou outra, possamos ter uma notícia como esta para não perdermos o que nos resta da esperança na construção de um país decente e que se dê ao respeito. 


E o que é que os turistas terão pensado disto? Não sei se foi feito algum inquérito, por isso limito-me a especular. Talvez tenham pensado que o Porto é uma terra que vale mesmo a pena visitar, já que tem tradições tão fortes que até param a aviação, uma das indústrias mais poderosas do planeta. Nesse sentido, esta decisão de deixar os turistas à espera pode ter sido, paradoxalmente, muito boa para o turismo, ao valorizar simbolicamente a força e originalidade das tradições culturais deste "destino".


Da mesma forma poderia funcionar a existência de certas zonas nas nossas cidades onde os turistas nunca pudessem alojar-se, porque eram zonas tão típicas e tão autênticas que só os locais as poderiam habitar. 


É claro que na lógica primária dos turistólatras e das gentes do negócio fácil, isto seria um ataque ao turismo, a nossa galinha dos ovos de ouro. Numa perspectiva mais estratégica - para além dos fundamentos urbanísticos e sociais da solução -, isto acabaria por ser uma valorização permanente e duradoura do interesse turístico das nossas cidades, logo, um factor real de desenvolvimento do turismo de qualidade. 


Já agora, convém não confundir o conceito "turismo de qualidade" com a utilização perversa (e um bocado bacoca) que a indústria e a comunicação social fazem desta expressão, identificando-a com turismo caro para viajantes ricos. 


Não é a mesma coisa. Pode haver muita falta de qualidade no turismo dos ricos e muita qualidade no turismo de preços mais baixos (estou certo, e apenas para dar um exemplo, que qualquer gastrónomo exigente já deve ter vivido em Portugal experiências que o comprovem). Se o preço fosse medida de qualidade, a viagem turística mais qualificada do momento seria no submarino Titan...


O turismo de qualidade - e isto não tem nada a ver com o preço - é aquele que respeita e não agride, nem prejudica, nem descaracteriza os sítios que visita, antes reconhece e valoriza as características que os tornam únicos e portanto interessantes para serem visitados. 


Como o Porto com os seus balões de S. João que os fizeram esperar nos aeroportos. 

O nosso turismo está a precisar de mais algumas decisões com esta lógica só aparentemente contraditória.

UM REGRESSO (a pedido) ao Manuel António Pina

Um regresso (feito a pedido) a memórias incompletas de algumas actividades realizadas em conjunto com o Manuel António Pina.


Tem aqui o link para o pdf:

Um regresso

Todos pelo Coliseu

Numa altura em que se volta a falar sobre o futuro deste espaço tão cheio de história e de significado, trago-vos à memória o cartaz feito para a campanha daqueles dias difíceis de 1995, em que o Coliseu esteve quase a mudar de vida. 

Foi uma grande vitória, que os nossos irmãos lisboetas infelizmente não conseguiram com o seu Cinema Império. E vitórias destas contra as várias formas do capital selvagem e predador, no campo das políticas urbanas e da cultura, não abundam no nosso historial. Por isso a valorizamos tanto. 

Nota: O cartaz é da autoria do José Rodrigues e do Humberto Nelson, que se empenharam pro-bono nesta luta, como aliás todos os que organizámos o espectáculo, bem como todos os artistas que nele participaram. Foi por amor, foi por convicção, foi por revolta, foi por necessidade. Não nos peçam agora para olharmos para o Coliseu com o olhar frio dos negócios e a sua cruel racionalidade.

No centenário de Isolino Vaz


 

ALGUMAS MEMÓRIAS E A HISTÓRIA DE UM RETRATO


Neste ano de 2022, comemora-se o centenário do nascimento do mestre Isolino Vaz, artista plástico com uma obra muito diversificada e altamente qualificada que, pela sua vastidão, se encontra dispersa pelo país e não só.


Foi com imenso agrado que tive conhecimento de que a família e algumas instituições a que esteve ligado estão a preparar um programa de eventos comemorativos.

É com todo o gosto e alguma emoção que tento contribuir para essa justa homenagem, registando aqui algumas memórias pessoais, já um pouco desfocadas pela neblina de meio século de distância.


No início da década de 60, em Vila Nova de Gaia, na antiga quinta do Cabo Mor, junto ao Jardim Soares dos Reis, tomava forma um pequeno loteamento em frente à Escola Industrial e Comercial de Gaia (hoje Escola Secundária António Sérgio). É um pequeno “rectângulo” com três ruas e trinta vivendas. Aí construiu a família Vaz a sua casa, na rua do meio, a rua Tristão Vaz. Na minha opinião, era a mais bonita, a mais encantadora das trinta, cheia de obras de arte, que me encantava sempre que lá ia e o meu olhar se perdia a descobrir todos os pormenores. 


Aquele era o nosso bairro, onde se gerou um certo sentido de comunidade, criado e consolidado pelos mais novos, com mais facilidade de se relacionarem pelas brincadeiras, pelos jogos, pelos namoros, por crescerem e evoluírem juntos naquela idade onde se descobrem tantas coisas novas. Tão forte era esse sentido de comunidade que ganhou forma numa associação: a AJCM, Associação da Juventude de Cabo Mor, com logotipo e crachat e tudo, associação em que participavam o Mário e a Elsa (filhos de Isolino) e que desenvolveu um grande leque de iniciativas em que envolvemos também os pais, Isolino Vaz incluído.



Isolino era da idade dos meus pais, eu sou da geração dos seus filhos. Foi nessa época que o mestre, vendo o meu interesse pela arte, particularmente pela sua arte, sobre a qual me falava tantas vezes, me pediu para ser seu ajudante nas inúmeras palestras que fazia e que ilustrava abundantemente com obras suas. Não havendo ainda projecções de “power points” ou de “keynotes”, levávamos os desenhos e pinturas ordenadas em grandes pastas, montávamos um cavalete no palco ou junto à mesa, e a minha nobre missão nas palestras era carregar as coisas e depois ir substituindo as obras pela ordem certa, de acordo com o fluir do discurso do orador, que as comentava uma a uma.


Com o meu envolvimento político na luta antifascista, no fim dos anos 60, houve mais uma implícita cumplicidade que se estabeleceu com o pintor. Foi tudo isso que me levou, anos mais tarde, a ganhar coragem para fazer ao mestre a encomenda de uma obra.


Acabado o meu curso de Engenharia, em 1977, senti-me mais livre para abraçar novos desafios. Com alguns amigos, aventurei-me a abrir uma livraria, um sonho muito comum entre quem ama os livros. Arrendámos um espaço na Rua dos Mártires da Liberdade e decidi chamar-lhe Livraria Bento de Jesus Caraça, pela grande admiração que tinha pelo matemático, pelo político e pelo seu exemplo de cidadão.


Em 25 de Junho de 1978 passavam 30 anos sobre a sua morte. Houve comemorações em Lisboa e noutros locais. No Porto, foi a Livraria que organizou as comemorações. 

O nosso programa incluiria uma grande sessão evocativa, que foi realizada em Belas Artes, com testemunhos de vários companheiros do homenageado, sessão em que se faria o lançamento de uma edição comemorativa de um retrato. 


Dada a amizade que tinha com Isolino Vaz, fui lá a casa pedir-lhe para fazer o retrato. Pela forma simpática e até entusiasmada como recebeu o meu pedido, acho que ficou contente com a incumbência, apesar de não haver qualquer pagamento previsto da minha parte (todos trabalhámos pro-bono na realização daquelas comemorações). Penso que aceitou porque Isolino admirava Bento de Jesus Caraça tanto como eu.


Fez um desenho a carvão, numa folha de 70x100 cm, se bem me lembro. Fizemos a reprodução na velha Inova, Artes Gráficas, na rua de Gonçalo Cristóvão, no Porto, uma edição litográfica com 32,5x47,5 cm. (1)


Pouco depois, em Setembro de 1978, tive de ir para a tropa e de deixar a livraria entregue aos meus amigos, tendo esta vivido um tempo conturbado, acabando vendida à Cooperativa Erva Daninha e fechada a seguir. Essa história não cabe aqui e só a menciono para dizer que nesse processo desapareceu (pelo menos da minha vista) o original do retrato que eu tinha encomendado a mestre Isolino e que tínhamos pendurado na parede da livraria. Imagino que o original da obra ainda exista, espero que não tenha sido destruído.



(1) A Biblioteca Municipal de Gaia tem um exemplar e a associação Amigos de Gaia também. Muito perto do local onde era a livraria Bento de Jesus Caraça, na rua Mártires da Liberdade, o alfarrabista Homem dos Livros (no número 79) tem à venda esta litografia.