O Coliseu é nosso? Com que direito?
Faz hoje 30 anos que, em 7 de Setembro de 1995, um enorme espectáculo mobilizou a cidade e a região em defesa do Coliseu do Porto, que estava a ser vendido à IURD pela companhia de seguros a que pertencia. Este espectáculo, a que demos a designação “Todos pelo Coliseu”, que era o nome da nossa comissão promotora, realizou-se na sequência da manifestação de 4 de Agosto, que o Público recentemente lembrou nas suas páginas.
Fizemos a promoção do espectáculo de formas muito variadas, tentando chegar ao maior número de pessoas: enviámos milhares de postais-convite pelo correio, demos montes de entrevistas e até construímos um stand na Praça da Liberdade com materiais históricos do Coliseu, onde se divulgava a luta e também se podia comprar o bilhete.
Foi o que se pode dizer um total êxito de bilheteira. Dos 3016 lugares, foram inutilizados 6 por causa da instalação de câmaras da RTP para a gravação e transmissão e foram vendidos todos os outros 3010. Fechadas as contas, o Coliseu entregou-me 7 milhões, 187 mil e 750 escudos. Uma boa ajuda para a nossa causa, mas ainda muito longe do necessário para a compra do edifício.
Neste espectáculo, na verdade, toda a gente ajudou. Não pagámos aos artistas - e foram tantos - que fizeram questão de actuar voluntária e militantemente, desde a abertura pela D. Helena Sá e Costa, pianista consagrada que tinha tocado em 1941 na inauguração do Coliseu, até ao fecho, com o Pedro Abrunhosa que subiu ao palco já depois das duas da manhã, altura em que abrimos as portas e deixamos entrar toda a gente que estava na rua a assistir ao espectáculo transmitido num écran gigante. E isto numa noite de quinta para sexta, dias de trabalho. O Sérgio Godinho resolveu fazer malabarismo antes de cantar, lembrando os tempos de criança em que vinha ao circo no Coliseu.
Até mesmo a sempre rigorosa Sociedade Portuguesa de Autores decidiu que a nossa comissão ficaria isenta de pagamento de direitos de autor, atendendo à finalidade do espectáculo: comprar o Coliseu, anulando o negócio com a IURD.
No intervalo, uma novidade absoluta para os mais novos e um momento de recordação nostálgica para os mais velhos: reabrimos a “adega regional” do Coliseu, que estava fechada há muito tempo e muitos nem sequer sabiam que existia.
Noutro espaço, no Salão Jardim, com o apoio da Cooperativa Árvore, fizemos uma venda de obras de arte para angariação de fundos.
“O Coliseu é nosso” foi o slogan que ecoou toda a noite pela sala, sempre que havia umas palavras de um artista, e todos eles quiseram usar da palavra, para além de cantar e tocar.
Mas esta questão de o Coliseu ser ou não ser nosso já tinha dado muito que falar nos dias que antecederam o espectáculo. De facto, o Coliseu era propriedade privada de uma companhia de seguros. Numa opção de gestão absolutamente normal nos parâmetros do sector, alienar um activo muito afastado do core business da companhia, ainda por cima um activo que dava muito trabalho e pouca ou nenhuma rentabilidade, parecia ser uma decisão simples, de absoluto bom senso.
A seguir à manifestação de 4 de Agosto, muita gente, incluindo eminentes juristas e respeitados intelectuais, insultaram os manifestantes e questionaram a nossa presunção de nos imiscuirmos num negócio privado, no qual não tínhamos que ser tidos nem achados. Com que direito dizíamos “O Coliseu é nosso”?
Interessante questão teórica para juristas. Houve, contudo, um jurista, pouco praticante das artes deste ofício e mais conhecido pela sua incursão nas artes poéticas e no jornalismo, que lhes respondeu assim: “Há pessoas que não compreendem, pessoas excessivamente seguras daquilo que aprenderam nas faculdades sobre Direito e sobre Estado de Direito e sobre a chamada lei da oferta e da procura. Só que há por aqui, no unânime “O Coliseu é nosso!”, gritado na rua por gente que, como o outro, também não percebe nada de Finanças nem consta que tenha biblioteca, uma grande e desrazoável razão que não se aprende em faculdade nenhuma. Uma razão fundadora (olhem para as orelhas deles, escandalizadas e espetadas!) do próprio Direito, sem cujo desordenado sangue o Direito seria apenas um seco, duro e estéril monte de fórmulas e de princípios, onde só trepariam os astutos e os sabidos. Podem tais pessoas estar certas de que quando milhares de gargantas, perante a afronta iminente, gritavam aqui à porta: “Não há direito!”, não era no Código Civil que estavam a pensar!” (Manuel António Pina)
A verdade é que a comissão Todos Pelo Coliseu e todo este movimento, com um certo aroma à PREC, que se mobilizou em torno desta ideia juridicamente insegura de que “O Coliseu é nosso”, conseguiram gerar uma força popular capaz de pesar na decisão de venda já tomada, o que levou à anulação do negócio com a IURD e à passagem da companhia de seguros para o nosso lado, numa aliança que se mantém até aos dias de hoje.
Esta improvável vitória é agora um símbolo e um património da nossa cidade e da nossa região. Um povo que se soube mobilizar, unir e bater o pé. Instituições que souberam assumir o seu papel na defesa do património e da cultura. E, contrariamente ao que aconteceu noutras terras, um Coliseu que agora é mesmo nosso, não só como sempre foi, mas também de jure, através da associação Amigos do Coliseu, que o mantém como um espaço de cultura ao serviço de todos.
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