Rasgar o contrato


Publicado em: O Gaiense, 27 de Novembro de 2010
Um contrato é um acordo com a finalidade de produzir efeitos jurídicos. Fundamenta-se nos princípios da segurança e da comum liberdade de vontade das partes e tem como efeito a criação de obrigações. O Estado português tem, pois, obrigações legais para com os trabalhadores que livremente contratou.
Para além dos contratos de trabalho, o Estado tem firmados outros contratos: de arrendamento de edifícios, de empreitadas de obras públicas, de fornecimentos e de prestação de serviços. Que diriam as partes contratantes se o Estado decidisse unilateralmente reduzir 10% ao valor das rendas que paga aos senhorios dos prédios que ocupa, reduzir 10% ao pagamento das obras que mandou fazer ou reduzir 10% ao pagamento dos bens que comprou aos fornecedores? E que diriam os tribunais se os lesados apresentassem queixa por violação unilateral desses contratos? Alguém duvida da imediata declaração de ilegalidade de uma atitude deste tipo?
Poderá argumentar-se que o Estado não tem dinheiro para cumprir os contratos que estabeleceu com os trabalhadores. Mas, nesse caso, não teria também disponibilidade para cumprir os outros contratos, mas não nos lembramos de ter visto qualquer sinal nesse sentido. Será que os contratos estabelecidos com os funcionários são menos respeitáveis do que os contratos que o Estado estabeleceu com os senhorios, os empreiteiros e os fornecedores?
Dizer que não há possibilidade de cumprir os contratos firmados é uma forma suave de dizer que se está falido. O Estado português está, então, falido? Não está. De facto, há dinheiro suficiente para respeitar os contratos. Pode não haver disponibilidade para novos contratos, para novos investimentos, para novos compromissos, mas nem sequer é isso que transparece da proposta de Orçamento de Estado. Do que se trata é de uma mera escolha política entre várias opções possíveis, cortando numa rubrica orçamental para manter outras onde nem sequer há obrigações legais constituídas.
O lado escolhido para o corte é o elo mais fraco: os trabalhadores. Só será encontrada uma saída decente para as dificuldades actuais quando esse elo mais fraco se consciencializar de que, pelo seu número e pela sua importância na sociedade, pode transformar-se no elo mais forte e pode protagonizar uma mudança a sério nas prioridades nacionais.

Anti-NATO demonstration in Lisbon / Manif em Lisboa

Lisbon, 20th November 2010 / Lisboa, 20 de Novembro de 2010



O pesadelo da paz


Publicado em: O Gaiense, 20 de Novembro de 2010



Em fim-de-semana de cimeira da NATO, sugiro-lhe o pequeno exercício de olhar para a problemática da defesa a partir de um ponto de vista diferente: imagine que era um industrial, um grande industrial dedicado à produção de equipamento militar. Poderiam ser aviões, tanques ou navios de guerra, mísseis ou armamento individual, para o caso não interessa. Como qualquer bom gestor empresarial, o leitor estaria preocupado com a colocação dos seus produtos, com a evolução do mercado, com a manutenção ou, se possível, o aumento da procura; e desenvolveria toda uma estratégia de marketing para incentivar os clientes a investir.
Estou certo de que iria estar muito atento ao decorrer desta cimeira. Em primeiro lugar, porque nela têm assento os seus principais clientes, mas também porque o que nela se vai decidir pode ter um impacto importante no seu negócio. Os norte-americanos são clientes certos, continuam a comprar a um ritmo excelente, mesmo depois do fim da guerra fria e da sua corrida aos armamentos, mesmo depois de os vietnamitas lhes terem mostrado que com guerras não vão lá.
Mas os europeus não são assim tão certos. Há mesmo quem, no meio da crise, dos cortes e da austeridade, se ponha a duvidar da conveniência dos gastos militares. Mas é verdade que os europeus, apesar de se gabarem de que o seu projecto de União conseguiu seis décadas de paz numa parte do mundo dilacerada por guerras sucessivas, acabaram por incluir no Tratado de Lisboa um artigo (42.º) em que “comprometem-se a melhorar progressivamente as suas capacidades militares” e a “reforçar a base industrial e tecnológica do sector da defesa”. Hoje, os 27 gastam mais de 200 mil milhões de euros na defesa, apesar de nenhum europeu de bom senso prever que o seu país venha a ser invadido ou bombardeado num futuro próximo ou longínquo. Mas os americanos insistirão na cimeira para que aumente o contributo europeu para o “esforço comum”.
Se há paz na Europa, se há paz nos dois lados do Atlântico, se não está prevista nenhuma invasão nestes países, a lógica da guerra precisa de um novo conceito estratégico que justifique a intervenção noutras partes do mundo e assim continue a alimentar os interesses insaciáveis da indústria da defesa. A cimeira da NATO assegurará que o negócio continua. Bem haja, dirá o leitor. Parece assim estar afastado o espectro da paz, esse pesadelo horrível em que os negócios da defesa se reduziriam praticamente a zero, levando as indústrias militares à ruína. 

Para além do PIB


Publicado em: O Gaiense, 13 de Novembro de 2010
O Produto Interno Bruto (PIB) é, há 80 anos, o indicador por excelência da actividade macroeconómica, uma referência fundamental para peritos, decisores políticos e comentadores. O PIB soma o consumo público e privado, o investimento e a diferença entre exportações e importações. Os tão polémicos e discutidos limites do défice e da dívida pública medem-se em % do PIB.
Mas, actualmente, são cada vez mais as opiniões muito críticas sobre a adequação do PIB para a avaliação das sociedades, das economias e para a aferição das políticas. Várias ONG e mesmo grandes instituições internacionais, como a ONU, a OCDE e mesmo o Banco Mundial têm sido sensíveis a esses argumentos.
Por exemplo, se o leitor tiver um acidente e mandar reparar o automóvel, isso melhora o PIB. Se o seu carro estiver desafinado e gastar demasiado combustível, se o utilizar quando poderia ir de transporte colectivo, isso também é bom para o PIB, mesmo que contribua para os engarrafamentos e para a poluição atmosférica. O PIB também aumenta se tiver uma fuga de água em casa ou se deixar a luz acesa toda a noite. Isto é, muitas das campanhas promovendo a segurança rodoviária, a poupança de água, a optimização do uso da energia, etc., se tiverem bons resultados, melhoram a sociedade, tornam a economia mais eficiente, mas reduzem o PIB, que nos dirá então que estamos pior. Pelo contrário, a queda de uma ponte, um fogo urbano ou florestal, ou outro desastre ambiental, embora nos deixem pior do que antes, geram actividades de socorro e reparação que contribuem para aumentar o PIB.
Também quando a riqueza se acumula nas mãos de uma parte ínfima da sociedade, com o empobrecimento da maioria, o PIB medirá apenas o total da riqueza e, se esse total crescer, o PIB dirá que estamos melhor, apesar de a mancha de miséria se expandir.
Por isso, muitas propostas têm sido feitas para complementar a medição da produção com indicadores do bem-estar social, da qualidade de vida e do ambiente e mesmo da sustentabilidade desses padrões. Serão apenas instrumentos de medida, mas sem bons indicadores não é possível definir boas políticas. Daí a urgência de olharmos para além do PIB.

O que é que Portugal tem que o Brasil não tem?



Publicado em: O Gaiense
É o fado. Nós temos e o Brasil não tem. Sendo esta uma crónica política e não musical, refiro-me, pois, ao fado na política portuguesa. Em semana de debate do Orçamento de Estado, a grande justificação das medidas que vamos sofrer em 2011 foi que será assim porque tem que ser assim, é uma fatalidade a que não podemos fugir; não há alternativa, é o nosso fado. O problema é que o povo, que em sondagem afirma a sua discordância com as medidas propostas, mostra também que se conforma com os sacrifícios, porque tem que ser. É o espírito do fado a guiar as opções políticas das vítimas do Orçamento, dispondo-as a sofrê-lo com resignação.
Ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico, o fado da resignação perdeu mais uma batalha. Os nossos irmãos, mais dados ao samba, elegeram a nova Presidente Dilma Rousseff. A mulher que disse, no congresso em que foi designada candidata, que “o Brasil avançou tanto nos últimos anos porque soubemos construir novos caminhos, derrubando velhos dogmas. Provamos que distribuindo renda é que se cresce. E se cresce de forma mais rápida e sustentável. Essa distribuição de renda permitiu construir um grande mercado de bens de consumo popular. Ele nos protegeu dos efeitos da crise mundial. Criámos 12 milhões de empregos formais. A renda dos trabalhadores aumentou. O salário mínimo real cresceu como nunca. Estamos construindo um Brasil para todos.”
Para os fatalistas portugueses, este seria o caminho da ruína e da dívida sem fim. Dilma mostra o contrário: “Reduzimos a dívida em relação ao PIB. Hoje não pedimos dinheiro emprestado ao FMI. É o Fundo que nos pede dinheiro.” “Alguns ideólogos chegavam a dizer que quase tudo seria resolvido pelo mercado. O resultado foi desastroso. Aqui, o desastre só não foi maior - como em outros países - porque os brasileiros resistiram e conseguiram impedir a privatização da Petrobrás, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica...”
Ninguém pode hoje negar o sucesso económico que resultou das opções políticas dos brasileiros. E os portugueses não precisam de tradução para perceberem o que por lá se passa. Todo o leque de opções políticas de que o Brasil dispõe estão também disponíveis em Portugal, como na generalidade dos países, que a política também se globalizou. O que falta é um povo que saiba apreciar o fado como estilo musical, mas que não faça dele uma estranha forma de vida política, onde a resignação abafa a coragem de construir novos caminhos e derrubar velhos dogmas, como diz a nova presidente.

O Orçamento e os mercados financeiros



Publicado em: O Gaiense, 30 de Outubro de 2010

Houve tempos não muito distantes (todos nos lembramos) em que os Orçamentos de Estado se condicionavam pelo dogma europeu do limite do défice a 3%. Hoje, o défice continua a ser uma obsessão, mas o carácter sacrossanto daquele número passou de moda. Há um outro espectro que projecta a sua sombra sobre os Orçamentos de Estado de uma forma ainda mais impositiva: a opinião e as reacções dos mercados financeiros. Se os salários e as despesas sociais não baixarem, os mercados financeiros zangam-se. Se os partidos não se entenderem, os mercados financeiros aumentam a nossa taxa de juro. Quem nos faz imposições já não é só Bruxelas que, apesar do que muitas vezes se diz, ainda tem um rosto, ou vários rostos, que podemos conhecer, criticar, atacar. Quem condiciona as decisões que hoje estão a ser tomadas em Portugal (e noutros países) são os mercados financeiros, essas vagas entidades implacáveis e sem rosto, que estariam por isso ao abrigo de qualquer crítica. Os governantes e os seus parceiros da oposição nem gostam, nem deixam de gostar dos mercados financeiros; reconhecem-nos simplesmente como a condicionante suprema da sua acção política. É a aceitação de facto de que, para além da independência económica, acabamos de perder também a independência política. O argumento chave desta lógica perversa é só um: a inevitabilidade.
Os mercados, quando prevêm que o futuro das nossas finanças pode ser problemático, aumentam a taxa de juro da dívida pública, ajudando com isso a que as suas próprias previsões se confirmem. Simultaneamente, o Banco Central Europeu - organismo público - continua a emprestar ao sector financeiro privado à mesma taxa de juro de referência de 1%, mas os Estados - organismos públicos - têm de se financiar nos mercados financeiros privados a 4, 6 ou 7%. Para quem paga, isto é um claro absurdo. Para quem cobra, é um negócio fácil e altamente rentável.
O resultado é uma gigantesca transferência de fundos das populações dos diferentes Estados para os detentores do capital, aquela gente muito concreta, mas sem rosto, a cujos investimentos chamamos mercados financeiros e que, no fundo, nos está a emprestar a taxas proibitivas o nosso próprio dinheiro, aquele que nos sacou anteriormente, ao longo dos anos em que tem durado este processo de extorsão.