O pesadelo da paz


Publicado em: O Gaiense, 20 de Novembro de 2010



Em fim-de-semana de cimeira da NATO, sugiro-lhe o pequeno exercício de olhar para a problemática da defesa a partir de um ponto de vista diferente: imagine que era um industrial, um grande industrial dedicado à produção de equipamento militar. Poderiam ser aviões, tanques ou navios de guerra, mísseis ou armamento individual, para o caso não interessa. Como qualquer bom gestor empresarial, o leitor estaria preocupado com a colocação dos seus produtos, com a evolução do mercado, com a manutenção ou, se possível, o aumento da procura; e desenvolveria toda uma estratégia de marketing para incentivar os clientes a investir.
Estou certo de que iria estar muito atento ao decorrer desta cimeira. Em primeiro lugar, porque nela têm assento os seus principais clientes, mas também porque o que nela se vai decidir pode ter um impacto importante no seu negócio. Os norte-americanos são clientes certos, continuam a comprar a um ritmo excelente, mesmo depois do fim da guerra fria e da sua corrida aos armamentos, mesmo depois de os vietnamitas lhes terem mostrado que com guerras não vão lá.
Mas os europeus não são assim tão certos. Há mesmo quem, no meio da crise, dos cortes e da austeridade, se ponha a duvidar da conveniência dos gastos militares. Mas é verdade que os europeus, apesar de se gabarem de que o seu projecto de União conseguiu seis décadas de paz numa parte do mundo dilacerada por guerras sucessivas, acabaram por incluir no Tratado de Lisboa um artigo (42.º) em que “comprometem-se a melhorar progressivamente as suas capacidades militares” e a “reforçar a base industrial e tecnológica do sector da defesa”. Hoje, os 27 gastam mais de 200 mil milhões de euros na defesa, apesar de nenhum europeu de bom senso prever que o seu país venha a ser invadido ou bombardeado num futuro próximo ou longínquo. Mas os americanos insistirão na cimeira para que aumente o contributo europeu para o “esforço comum”.
Se há paz na Europa, se há paz nos dois lados do Atlântico, se não está prevista nenhuma invasão nestes países, a lógica da guerra precisa de um novo conceito estratégico que justifique a intervenção noutras partes do mundo e assim continue a alimentar os interesses insaciáveis da indústria da defesa. A cimeira da NATO assegurará que o negócio continua. Bem haja, dirá o leitor. Parece assim estar afastado o espectro da paz, esse pesadelo horrível em que os negócios da defesa se reduziriam praticamente a zero, levando as indústrias militares à ruína. 

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