Empregos com filhos e enteados



Publicado em: Jornal Global, Fevereiro de 2005

Texto de Renato Soeiro e Carmen Hilário

Uma grande polémica atravessa, já, o movimento sindical e político da Europa: a proposta de Directiva relativa aos serviços no mercado interno, aprovada em 13 de Janeiro de 2004 pela Comissão Europeia (CE). Este polémico texto foi redigido por Frederik Bolkestein, então co- missário europeu, que do pas- sado trazia um invejável curriculum ex-director da Shell, ministro holandês do Comércio e, em seguida, da Defesa, além de presidente da Internacional Liberal.

A “Directiva Bolkestein” inscreve-se no processo de reformas lançado pelo Conselho Europeu de Lisboa do primeiro semestre de 2000. Desse conclave resultou um documento que Blair e Aznar prepararam, mas que ficaria conhecido como Estratégia de Lisboa. Para realizar a ambição deste documento - transformar a União Europeia (UE), até 2010, no “espaço económico mais dinâmico e competitivo do mundo” - as elites de Bruxelas consideram fundamental a criação do mercado interno no domínio dos serviços, sem os “obstáculos que o obstruem”. Tratando-se de uma Directiva-quadro, a proposta visa criar um quadro jurídico aplicável a cerca de 50 por cento do PIB europeu e a 60 por cento do emprego na União. Ou seja, tem consequências de enorme amplitude, que se estendem da mediação do emprego temporário à indústria da construção civil, e do comércio ao abastecimento de água, aos infantários ou à televisão, sem excluir serviços de saúde e prestação de assistência... Um processo legislativo coerente e uniforme para realidades tão distintas é quase uma odisseia. Mas foi a isso mesmo que o comissário se atirou.

O “país de origem”

Em substância, trata-se de remover quer os obstáculos nacionais à liberdade de estabele cimento, quer os obstáculos à livre circulação dos serviços em espaço comunitário. Para tanto, a proposta introduz o “princípio do país de origem”, por força do qual os prestadores de serviços só estão sujeitos à lei do país de onde são provenientes. Este princípio não se encontra expressamente consagrado em nenhum dos tratados europeus e foi inicialmente concebido para o domínio da livre circulação de mercadorias. Exemplificando, um produto oriundo do país A pode ser vendido no país B da União, desde que a sua qualidade tenha sido certificada no país A. Agora, Bolkestein quer adaptar e alargar este critério a boa parte do trabalho contratado no espaço comunitário - fazendo dele a norma para a circulação dos trabalhadores. A Comissão defende que a consagração deste princípio é o único modo realista de conciliar a “livre circulação” com a manutenção dos diferentes regimes jurídicos existentes nos Estados-membros. Como se verá, este é um ponto decisivo da directiva em causa.

Muitos têm sido os debates e audições que a este propósito se têm realizado. E no Parlamento, a eurodeputada Evelyne Gebhardt (do Partido Social Democrata Alemão) elaborou um relatório onde considera que a proposta deverá ser substancialmente modificada. Ela coloca dois grandes problemas: por um lado, o âmbito de aplicação do projecto de Directiva; e por outro, a consagração geral do princípio referido.

Reservas e oposição

No que concerne ao âmbito de aplicação, a proposta distingue os “serviços económicos de interesse geral” dos serviços públicos, que ficariam de fora da Directiva. Sucede que muitos já hoje funcionam com recurso a trabalho contratado exterior à administração pública. Por exemplo, o hospital pode ficar de “fora”, mas um conjunto de trabalhos - da limpeza a múltiplas funções técnicas contratadas - podem ficar “dentro”. Pela porta do cavalo, prestando o mesmo tipo de serviços, passaríamos a ter trabalhadores submetidos a diferentes regimes jurídicos... no mesmíssimo emprego.

A introdução do “princípio do país de origem” entra ainda em conflito com um projecto de Directiva, relativo ao reconhecimento das qualificações profissionais. Escreve a eurodeputada socialista: “Na directiva relativa ao reconhecimento das qualificações profissionais aplica-se o princípio do país de destino e não o do país de origem”. E exemplifica: “a profissão de pedreiro é muito regulamentada na Alemanha, mas na Grã-Bretanha não. A aceitação generalizada do princípio do país de origem teria como consequência que um pedreiro alemão no Reino Unido seria abrangido pela lei alemã, mas o seu colega inglês não!”. Esta é a versão mais benigna do filme. Se o leitor(a) substituir o pedreiro alemão por um português e o colocar na Alemanha ou em França, a diferença fica muito mais nítida: amarrado à legislação portuguesa, em caso de acidente, os serviços de saúde desses países prestar-lhe-iam gratuitamente apenas os cuidados previstos na regulamentação portuguesa, obviamente inferiores. Como é que a realidade dos factos se enquadra no objectivo proclama do da “igualdade de tratamento e não discriminação”, é que não se descortina facilmente...

A eurodeputada Evelyne Geghardt adianta ainda outro exemplo: “será necessário, para melhorar a livre circulação de serviços na UE, deixar que o prestador de serviços traga consigo o seu direito nacional? Como deverá um empreiteiro sueco, enquanto destinatário de um serviço, intentar uma acção contra um ladrilhador letão? Perante um tribunal cível na Suécia, de acordo com o direito letão? Ou perante um tribunal na Letónia?”...

O dumping intra-muros

Durante uma audiência realizada no Parlamento Europeu, foram enérgicas as objecções à introdução deste princípio. De acordo com as vozes críticas, ele incentiva os prestadores de serviços a estabelecerem-se nos Estados-membros com normas de protecção menos rigorosas e, nos mais desenvolvidos, aumenta a pressão para baixar as exigências legais ao livre estabelecimento, sob argumento da competitividade e da captação de empresas. Daqui a colocar em perigo os direitos sociais, dos consumidores e dos utentes dos serviços de saúde, vai uma ténue fronteira que o mercado se encarregará de saltar.

Por outro lado, a Directiva prevê que seja o país de origem a controlar os serviços prestados pelas suas empresas e profissionais nos outros Estados. É absurdo, mas é assim. Mas as consequências podem ser desastrosas na óptica dos consumidores: não se vê bem que interesse terá um Estado em deslocalizar para países terceiros mecanismos de controlo; e muito menos se vê como poderão reagir, em termos de laxismo, tais serviços do país de destino, amputados do seu papel. No Parlamento, a discussão atravessa agora outras Comissões, avaliando o impacto da proposta nos diferentes sectores de actividade, em particular sobre a mercantilização de outros serviços essenciais, como o das actividades culturais e educativas.

Um grupo de trabalho no âmbito do Conselho Europeu procedeu entretanto a uma revisão e comentário do texto original, artigo a artigo, procurando responder às muitas objecções que lhe têm sido apontadas. A partida não se apresenta encer rada, apesar das alterações que a Comissão Europeia anuncia, mantém-se o essencial da proposta. Mas o calendário previsto para a adopção final da Directiva, em fim de 2005, parece hoje dificilmente concretizável. A palavra, agora, tem que passar para o “lado de cá”. Para os que defendem que a livre circulação de trabalhadores se deve fazer no quadro legal dos países de destino e que é necessária legislação comunitária que regule os direitos “por cima” em vez de contribuir para a dualização dos mercados de trabalho.

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O 16° artigo da polémica

1. Os Estados-Membros diligenciam para que os prestadores estejam sujeitos apenas às disposições nacionais do seu Estado-Membro de origem que digam respeito ao domínio coordenado.

São abrangidas pelo primeiro parágrafo as disposições nacionais relativas ao acesso à actividade de um serviço e o seu exercício, nomeadamente aquelas que regem o comportamento do prestador, a qualidade ou o conteúdo do serviço, a publicidade, os contratos e a responsabilidade do prestador.

2. O Estado-Membro de origem é responsável pelo controlo do prestador e dos serviços que este fornece, mesmo quando os serviços sejam fornecidos noutro Estado-Membro.


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A Directiva inteligente

A desburocratização e simplificação de processos é vital para o mundo das pequenas e médias empresas (PME), que não têm possibilidade de ultrapassar as barreiras legais que lhes são hoje impostas em muitos Estados-Membros.

Os consumidores também ficam a ganhar com um mais fácil e livre acesso aos serviços prestados por qualquer PME da União, desde que garantida a qualidade do serviço. Estes são os aspectos positivos em que é forçoso haver avanços e remover entraves.

Mas estas melhorias só aparentemente são o objecto primordial do projecto de Directiva. Com efeito, a regressão nos direitos, se feita por via da modificação das legislações nacionais, é um processo doloroso para os governos... A nova proposta segue um caminho mais inteligente e eficaz. Com o alargamento da União, os baixos salários, a fraca protecção social e a regulamentação de baixa intensidade, passaram para dentro das fronteiras da União. São hoje legais, mas confinadas a espaços geográficos algo periféricos.

Não existindo possibilidade de impor esses padrões a toda a União, a nova Directiva oferece a possibilidade da sua generalização prática. Por via da deslocalização de grandes empresas para novos países de origem, por um lado; e da livre-circulação de mão-de-obra barata para os países centrais. A obsessão liberal pela competição quer exportar para o centro as piores regulamentações hoje existentes.

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Movimento social em marcha

A proposta Bolkestein foi rejeitada pela Confederação Europeia de Sindicatos e tem sido considerada em meios da esquerda como uma “máquina de guerra contra os serviços públicos”. Prevêem-se acções nos vários Estados e mesmo a nível europeu, a 19 de Março, em Bruxelas. E multiplicam-se entretanto na Internet os sítios com petições e campanhas*. Nos partidos de esquerda, a rejeição é a nota dominante. Mesmo entre os membros do PS francês, que recentemente se mostraram muito divididos no referendo interno sobre a Constituição da UE, há agora unidade na rejeição da directiva. Nos meios culturais, a inquietação não é menor. Se os serviços ligados à cultura passarem a estar submetidos à nova directiva, a lógica de concorrência que ela contém degradará a qualidade dos projectos culturais. Como bem assinala a Fundação Copérnico, “não é pondo em concorrência os povos que se poderá construir uma Europa solidária. Estas políticas arriscam-se a conduzir à rejeição da própria ideia europeia”.

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