Nós, na Polónia

Publicado em: www.esquerda.net em 2007-04-26

Não são as impressões de uma viagem à Polónia que vos trago hoje, mas algo bem mais interessante e profundo: um movimento de jovens socialistas, com quem hoje mantivemos uma interessante troca de pontos de vista. Estes jovens, no fundo, somos nós, na Polónia. Estou certo que será esse o vosso sentimento no fim da leitura deste artigo e sobretudo depois de verem a apresentação em inglês ou de consultarem o seu site (em polaco http://www.mlodzisocjalisci.pl/). A Polónia, hoje um dos principais países da União Europeia, é normalmente notícia pelas piores razões. É o país do revanchismo da direita radical, do fundamentalismo católico, da negação dos direitos das mulheres. São polacos os protagonistas dos discursos mais tenebrosos de apologia do fascismo pronunciados nas instâncias internacionais. É ainda o país onde o presidente da república, com todo o à-vontade, nomeou primeiro-ministro o seu indistinguível irmão gémeo (e nós ainda nos queixamos das semelhanças entre Sócrates e Cavaco...). Durante o século XX (e mesmo antes), a Polónia foi fortemente marcada por uma densa sucessão de acontecimentos históricos, conflituais e dramáticos, com consequências muito profundas e contraditórias na formação das ideias e sentimentos da população actual. São muitas experiências sucessivas, sem o tempo necessário de sedimentação na cultura e no espírito do povo, que parece hoje, como nenhum outro, historicamente confuso. A história tornou-se um tema de relevância maior na agenda política e objecto de luta ideológica intensa. O governo actual pretende basicamente criminalizar o período anterior, mas vai mais longe. Foi criado um Instituto da Memória Nacional, onde 600 historiadores se dedicam a reescrever a história e a propor medidas tão concretas como a mudança da toponímia, retirando dos nomes das ruas tudo o que possa lembrar o socialismo, desde as referências mais óbvias e recentes, até nomes de escritores que participaram nas brigadas internacionais na guerra de Espanha, ou mesmo pensadores polacos do século XIX, que viveram um século antes do regime anterior ter começado. Quem controla o presente, controla a versão oficial passado. A sociedade polaca está muito atomizada e a cena política é bastante volátil. A participação eleitoral foi de apenas 47%. Os partidos do centro, que tiveram em 2001 mais de 40% dos votos, tiveram quatro anos depois apenas 12%, após adoptarem desastrosas medidas neoliberais. Em resposta a esta desilusão, e em busca desesperada de uma saída, o povo transferiu o seu voto para a direita e a extrema-direita. Mas a continuação das medidas de fundo neoliberais só veio aumentar a desilusão. 60% da população vive hoje pior do que em 1989, o que gera um grande desencanto com a política em geral ou, por vezes, mesmo um certo saudosismo em relação às condições de vida no regime anterior, apesar de este ser globalmente rejeitado pela sua prática anti-democrática. Na Polónia existe um movimento social activo mas não muito forte. Há também alguns sindicatos que se opõem ao governo. Neste ambiente político, talvez o mais difícil em toda a Europa, os jovens do Młodzi Socjaliści (MS), onde convivem diferentes sensibilidades políticas, definem-se como socialistas e por isso rejeitam o capitalismo, são democratas e por isso rejeitam o anterior regime pró-soviético, do qual criticam também o modelo de desenvolvimento, que imitou, com resultados desastrosos, o pior do capitalismo do início do século. São alterglobais, lutam contra o imperialismo, a guerra e os armamentos, opõem-se às soluções neoliberais, são 100% feministas, defendem os direitos das minorias, a democracia no mundo da internet e o software livre, opõem-se aos nazis, defendem uma saúde e ensino públicos e de qualidade, os direitos dos trabalhadores e um sindicalismo livre e de combate, organizam reuniões, lutas e protestos de rua. Para contrabalançarem a influência da igreja católica radical entre os mais novos, nomeadamente através dos escuteiros, eles dinamizam um movimento de escuteiros alternativo e laico. Trabalham no comité para a defesa dos direitos dos trabalhadores em conjunto com os sindicalistas mais radicais. Há muitos sindicalistas de direita e há sindicalistas de esquerda, mas os dois lados estão muito fraccionados, sem verdadeiras centrais sindicais, apesar da sobrevivência de uns restos dos velhos sindicatos oficiais e do Solidariedade (que tem participado em acções, mesmo a nível europeu, contra a directiva Bolkestein, por exemplo). Os mineiros, ainda em número apreciável - 40 000 - são sobretudo de esquerda e um dos sectores com que o MS tem privilegiado as conversações. Nos últimos anos criou-se um fosso entre os activistas sindicais e os intelectuais e estudantes. Refazer esses laços tem sido uma prioridade do MS, e para isso têm mesmo organizado reuniões dos sindicatos nas universidades. Em 2006, nas eleições locais de Gdansk, uma zona de influência arrasadora da direita, apresentaram candidaturas que obtiveram quase 2% dos votos. Um pequeno início promissor, se considerarmos que os sociais-democratas e os liberais coligados e com meios de campanha muito mais poderosos, obtiveram 6%. Estes jovens do MS não estão filiados em nenhum partido, porque não há na Polónia nenhum partido que corresponda à sua política. O que faríamos nós, nessas condições? Certamente o mesmo que fizemos em Portugal: criaríamos um novo partido. Na Polónia, do ponto de vista legal, é até mais fácil do que cá: bastam mil assinaturas. Sendo esse também, aproximadamente, o número de militantes do Młodzi Socjaliści, a tarefa não é difícil. No entanto, numa posição que denota uma forte responsabilidade política, antes de criarem o partido, decidiram aprofundar mais as suas raízes no mundo do activismo social, reforçar os laços com os sindicalistas e activistas operários de esquerda (que hoje se abstêm nas eleições ou vão alternando os seus votos de desilusão em desilusão), com o objectivo de que o aparecimento do novo partido tenha uma influência social relevante. No entanto, o timing para este processo tem um limite muito claro: na Polónia como em Portugal, as eleições para os parlamentos nacional e europeu serão em 2009 e vai ser indispensável apresentar a tempo o novo partido e as suas candidaturas. Com uma barreira de 5% para poder eleger, a tarefa dos nossos camaradas não se afigura fácil. Mas, facilidades é coisa que nenhum militante polaco de esquerda certamente espera encontrar. A criação de novas esquerdas nos países da Europa de Leste é uma tarefa muito difícil, mas uma das mais essenciais se pretendermos ter uma verdadeira esquerda europeia, moderna e socialista, alternativa à social-democracia e ao neoliberalismo e liberta do peso negativo da tradição das forças que exerceram o poder opressor sobre estes povos na segunda metade do século passado.

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