O Parlamento Europeu e o direito de autor no mundo digital

Publicado em: www.esquerda.net


Bruxelas, 11 de Abril de 2008

O Parlamento Europeu discutiu na sua última sessão plenária a situação das indústrias culturais na Europa. O tema mais quente do debate foi a atitude a tomar face ao dowload e partilha de ficheiros com conteúdos culturais (sobretudo ficheiros áudio e vídeo) sem o respectivo pagamento dos direitos de autor.

O relator, um socialista francês, “chama a atenção para o facto de a criminalização dos consumidores que não procuram obter lucros não ser a solução correcta para combater a pirataria digital”. Pretendia, pelo contrário, encontrar um equilíbrio entre a possibilidade de um amplo acesso aos conteúdos culturais, a manutenção da diversidade cultural e a justa remuneração dos autores.

Mas a indústria de conteúdos e de software, com destaque para a Federação Internacional das Indústrias Fonográficas, desenvolveu uma intensa campanha pressionando os eurodeputados a adoptarem uma posição drástica face aos utilizadores de internet que violassem os direitos de autor, partilhando músicas, filmes, jogos e software. Defendiam que aos prevaricadores repetentes fosse pura e simplesmente cortado o acesso à internet. O presidente da República Francesa, Nicolas Sarkozy, já tinha proposto, no seu estilo bem característico, que os ISPs deveriam ser obrigados a punir os seus clientes que fizessem qualquer download ilegal de músicas ou outros conteúdos com o corte do acesso à internet.

Estas fortes pressões tiveram o condão de gerar uma reacção em sentido contrário. Foi mesmo apresentada à última hora uma emenda ao relatório com o seguinte texto: “[O PE] Exorta a Comissão e os Estados­Membros a reconhecerem que a Internet é uma vasta plataforma de expressão cultural, de acesso ao conhecimento e de participação democrática na criatividade europeia, que estabelece pontes entre as gerações na sociedade da informação e, consequentemente, a evitarem a adopção de medidas que vão de encontro aos direitos humanos e cívicos e que contrariam os princípios da proporcionalidade, da eficácia e do efeito dissuasor, como o corte do acesso à Internet."

A última frase desta emenda, que recusa o corte do acesso à net, foi aprovada por 314 votos contra 297 e 14 abstenções, isto é, passou com uma escassa margem de 17 votos, o que dá uma boa imagem da tensão gerada.

Foi uma pequena batalha ganha num terreno bastante difícil. O sector da cultura emprega na UE cerca de 6 milhões de pessoas e gera um negócio de 700 mil milhões de euros. Daí que todo o debate em torno da cultura esteja fortemente condicionado pelas grandes multinacionais da produção e edição, que se apresentam como defensoras dos direitos dos autores, os quais são, frequentemente, mais vítimas do que beneficiários do processo de comercialização das suas obras. A diversidade cultural, tanto entre diferentes países e regiões, como mesmo entre diferentes expressões culturais dentro do mesmo país, é outra das vítimas da concentração dos esforços de distribuição nos sectores comercialmente mais rentáveis.

A dificuldade experimentada no mundo digital pelos cobradores de direitos prende-se com a própria natureza deste mundo. Longe vão os tempos em que, entre um escritor e os seus leitores, havia necessariamente todo um longo processo de selecção editorial, um custoso processo industrial de composição, impressão e acabamento e um circuito comercial de distribuidores e livreiros. O mesmo se poderia dizer para o mundo da música e imagem com a produção, distribuição e comercialização final dos respectivos suportes. Hoje um escritor compõe os seus próprios textos e, se assim o entender, pode disponibilizá-los para todo o mundo no mesmo minuto em que acaba a escrita com um simples e grátis clic. O mesmo se pode passar no sector audiovisual.

A velha lógica da compra, que parecia totalmente natural quando se ia à livraria ou à loja de discos adquirir um objecto físico, resulta estranha no novo mundo da cultura “desmaterializada”. Para as pessoas habituadas a viver no novo ambiente digital, sobretudo para as novas gerações cujos primeiros contactos com os conteúdos culturais já foram feitos nesta fase, a forma natural de vida é a partilha e o livre acesso. E é forçoso reconhecer que esta partilha livre e gratuita de bens culturais parece ser o ambiente mais fecundo para a evolução cultural da humanidade.

Só não se encontrou ainda a forma adequada de garantir o sustento e a independência dos criadores. Hoje, a sensibilidade, que porventura haverá entre os internautas, de que é justo que os autores possam viver do seu trabalho, choca com a sensação de que do valor total de uma eventual compra, só uma pequena parte, na melhor das hipóteses, chegará de facto a ser distribuída ao autor.

Parece, no entanto, existir ainda uma real contradição de fundo entre o direito dos autores a obterem uma justa remuneração pelo seu trabalho e o direito de toda a população ao usufruto pleno, gratuito e sem entraves dos bens culturais. A busca de uma solução inovadora para esta contradição é talvez o maior desafio que está lançado a todos os que se ocupam da cultura numa perspectiva alternativa e emancipadora.

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