O Conselho Europeu e a Carta dos Direitos Fundamentais

Publicado em www.esquerda.net 3 Julho 2007


As noites longas de Bruxelas

Do ponto de vista mediático, a longa noite de negociações entre os chefes de Estado e de governo no passado fim-de-semana ficou marcada pela dificuldade de convencer os gémeos Kaczynski a aceitar o sistema de votação nas reuniões do Conselho. A sua insistência até de madrugada e o mau gosto dos argumentos utilizados, colocaram em segundo plano os problemas levantados por Tony Blair, as suas quatro linhas vermelhas relativamente às quais o governo britânico não aceitaria recuar.
Mas, há que lembrá-lo, Blair é um homem que tem provocado várias angustiadas noitadas aos seus parceiros de Conselho. A última vez foi na negociação das perspectivas financeiras para 2007-2013, já em plena crise provocada pelos referendos na França e na Holanda, quando inviabilizou a aprovação do orçamento, recusando reduzir o cheque britânico, uma devolução de fundos a que só o Reino Unido tem direito e que gera a maior indignação em todos os outros países. Logo a seguir, assumindo a presidência, a sua proposta para o orçamento comunitário foi recusada por absolutamente insuficiente e a negociação não foi menos dramática do que a que se verificou agora, tendo acabado apenas às três horas da manhã. O espectro que pairava era o de uma União sem orçamento, o que em vários aspectos é considerado mais grave do que uma União sem Tratado.
Desta vez, Blair não foi menos reivindicativo. Das suas objecções ao acordo geral (e todas foram concedidas), a que mais chocou a opinião pública europeia foi a recusa da aceitação pelo Reino Unido da Carta dos Direitos Fundamentais, que tinha constituído a parte II do anterior projecto de Tratado Constitucional.

A última cartada de Blair: um opt-out vergonhoso

Na conclusão adoptada pelo Conselho, no âmbito do mandato dado à Conferência Inter-Governamental (CIG) e à presidência portuguesa, retira-se do novo Tratado o texto da Carta, mas num artigo reconhece-se os direitos, liberdades e princípios nela enunciados, atribuindo-lhe o mesmo valor jurídico dos Tratados. É uma solução artificiosa que é um bom exemplo do tipo de complexo hermetismo jurídico e político a que se chegou em quase tudo o resto.
Mas, complicando ainda mais, acrescenta-se um Protocolo, a anexar ao futuro Tratado, em que o Reino Unido se exclui da aplicação destes direitos fundamentais; acrescenta-se também uma nota em que dois outros Estados-membros (não identificados) se reservam o direito de vir a aderir a este Protocolo de exclusão e ainda uma declaração unilateral da Polónia reservando o seu direito de legislar para além da Carta em matéria de moralidade pública e direito da família, protecção da dignidade humana e respeito pela integridade física e moral do ser humano. Sabemos que esta declaração, vinda de quem vem, visa os homossexuais, o direito ao aborto, a oficialização do fundamentalismo católico e até mesmo, neste momento, a prática balnear em top less.
Mas regressemos ao opt-out britânico. Diz-se no texto: “Em especial, e para evitar dúvidas, nada no Título IV da Carta cria direitos justiciáveis que se apliquem ao Reino Unido, excepto na medida em que o Reino Unido tenha previsto tais direitos na sua legislação.”
O que é que tem o Título IV, que tanto incomoda o governo de Sua Majestade?
O Título IV tem a designação geral de “Solidariedade” e os seus artigos intitulam-se: “Direito à informação e à consulta dos trabalhadores na empresa”, “Direito de negociação e de acção colectiva” (inclui a greve), “Direito de acesso aos serviços de emprego”, “Protecção em caso de despedimento sem justa causa”, “Condições de trabalho justas e equitativas”, “Proibição do trabalho infantil e protecção dos jovens no trabalho”, “Vida familiar e vida profissional”, “Segurança social e assistência social”, “Protecção da saúde”, “Acesso a serviços de interesse económico geral”, “Protecção do ambiente” e “Defesa dos consumidores”.
Para um governo dito “trabalhista”, é uma exclusão que pode causar algum espanto. Sobretudo se pensarmos que o carácter vinculativo da Carta, nomeadamente o conteúdo deste Título IV, mereceu a aprovação de todos os outros governos, dos mais neoliberais aos ultraconservadores polacos, de Zapatero a Sarkozy (mais à frente veremos porquê).
Em vários meios de comunicação se afirmou que esta exclusão britânica, embora natural no contexto social e laboral a que foram conduzidas as relações de trabalho após anos de liberalismo selvagem, tinha sido uma exigência concreta de grandes empresários (com nomes e tudo) aos quais Blair não podia dizer que não. A pressão justificava-se porque todos sabem que nestes Conselhos há sempre concessões e Blair poderia ser tentado a ter uma saída de cena com um gesto simpático para os seus colegas europeus, já que seu futuro depende mais deles do que do apoio doméstico.
Haveria que evitar qualquer cedência do primeiro-ministro e do seu sucessor, apesar da vergonha internacional que iria ser lançada sobre o Labour e da criação de problemas domésticos adicionais com os sindicatos.
De facto, estes últimos reagiram à decisão do Conselho considerando extremamente decepcionante que, devido ao opt-out, os cidadãos e trabalhadores do Reino Unido tenham menos direitos do que os do resto da Europa e perguntam se a sua economia só pode prosperar tratando os seus empregados de uma forma diferente da forma como são tratados os trabalhadores de todos os outros países da UE.
Mesmo os Liberais ingleses consideraram chocante e politicamente injustificável a rejeição de Blair de um documento que, segundo a sua perspectiva, visa proteger os cidadãos dos abusos da UE e das autoridades.
Os Verdes também consideraram este opt-out britânico muito preocupante. Alguma razão teve Cohn-Bendit quando, no Parlamento Europeu, atacou Blair, lembrando que ele já tinha subscrito em 2004 o Tratado Constitucional que incluía a Carta e que os polacos, pelos vistos, não eram os únicos a dar o dito por não dito.
Mas a posição sinuosa de Blair, de certa forma, não é nova. A Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia foi aprovada em Nice, em 7 de Dezembro de 2000, com o voto dos ingleses. No dia 11, apenas quatro dias depois, Tony Blair numa entrevista declarava que não tencionava atribuir-lhe um estatuto legal. E membros da sua equipa afirmavam que aquilo não era bem uma Carta mas mais uma declaração política (e é sabido o grau de fiabilidade que além-Mancha se atribui às declarações políticas). A verdade é que os donos das grandes empresas, que rejeitavam a Carta e sobretudo os seus direitos sociais, mandavam (em 2000 como hoje) mais no Labour do que os sindicatos, mesmo do que aqueles que ainda mantêm uma anacrónica ligação formal.
Numa outra perspectiva, para os mais puristas do mercado único, a ausência de direitos iguais em todos os países da UE representa uma certa forma de dumping interno, uma distorção às regras da concorrência, que tem ainda o efeito de enfraquecer a autoridade moral da União para criticar e fazer exigências à China e a outros países onde o desrespeito dos direitos fundamentais dos trabalhadores é um factor competitivo arrasador para a economia europeia. Alguns contestam a decisão de Blair não pela via da defesa dos direitos, mas pela via do mercado, das regras da “concorrência livre e sem distorções”, que Sarkozy fez retirar da lista dos objectivos da UE sob o protesto veemente de Tony Blair e dos meios empresariais britânicos.

A Carta dos Direitos Fundamentais é um recuo civilizacional

A Carta mereceu o apoio generalizado dos outros governos europeus, do centro à direita, bem como da Confederação Europeia de Sindicatos, que saudou a adopção da Carta e o seu carácter vinculativo, aspecto que tinham considerado a pedra de toque para definirem a sua posição face às decisões do Conselho. Na guerra com Blair, quase se pode compreender esta opção dos sindicatos.
Mas a Carta é um mau texto, que mereceu forte crítica de ONGs e das forças mais à esquerda. Os direitos sociais, económicos e ambientais, nomeadamente, ficam muito aquém do que é necessário.
O artigo que provocou mais polémica foi o que respeita ao trabalho. Na Declaração Universal dos Direitos do Homem afirma-se que toda a pessoa tem direito ao trabalho e à protecção contra o desemprego (artº 23º). No mesmo sentido postula a Constituição da República Portuguesa, explicitando mesmo as incumbências do Estado para assegurar esse direito (artº 58º). Na Carta Social Europeia, do Conselho da Europa, este direito é mesmo o título do artº 1º. Contrariamente a esta forma generalizada de reconhecimento, que constitui uma aquisição civilizacional relevante e que deveria fazer parte do acervo comunitário, a nova Carta apresenta um inócuo direito de trabalhar e de procurar emprego (artº 15º).
O direito a uma habitação condigna, reconhecido na nossa Constituição (artº 65º), na Declaração Universal (artº 25º), na Carta Social Europeia (artº 31º), também não consta da Carta dos Direitos.
Relativamente aos serviços de interesse geral, em que deveria ser reconhecido o direito de todos a terem acesso, já que essa é uma condição necessária para o exercício dos restantes direitos fundamentais, na Carta não é reconhecido como um direito mas apenas se “reconhece e respeita o acesso a serviços de interesse económico geral tal como previsto nas legislações e práticas nacionais”.
Mesmo na parte dos direitos cívicos e liberdades, muitas críticas se fizeram ouvir. Proíbe-se o trabalho forçado ou obrigatório, mas admite-se “qualquer trabalho exigido normalmente a uma pessoa submetida a detenção”.
O direito à vida é consagrado, mas admite-se o direito a matar para reprimir uma revolta ou insurreição. Afirma-se que ninguém pode ser condenado à pena de morte, mas admite-se que um Estado pode prever a pena de morte para actos praticados em tempo de guerra ou de perigo iminente de guerra (um conceito demasiado vago).
A Carta é um documento que fica aquém dos direitos reconhecidos nas Constituições dos Estados-membros e nos documentos anteriormente aprovados a nível europeu e internacional. A União puxa para trás onde era preciso puxar para a frente.
Para que a UE pudesse representar com coerência o papel de exemplo que diz querer assumir na cena internacional, a Carta dos Direitos Fundamentais deveria, no mínimo, garantir um nível de protecção semelhante ao dos textos internacionais de referência já aprovados, mas não é, de facto, isso que acontece.
A geometria variável dos direitos dentro da União é também uma contradição que não dignifica em nada a sua imagem no mundo. Se os direitos de que falamos são considerados “fundamentais”, então não podem deixar de ser também considerados universais. Uma coisa implica a outra. A auto-exclusão de um Estado-membro (um, para já, mais dois a pensarem no caso), e a aceitação dessa exclusão pelos outros Estados-membros, coloca a UE na situação problemática de reconhecer que há direitos que, apesar de serem fundamentais, não são reconhecidos a milhões dos seus cidadãos.
Se devemos afirmar que a Carta dos Direitos Fundamentais é um passo atrás para a Europa e um recuo civilizacional relativamente aos textos que marcaram as conquistas da segunda metade do século XX, não podemos esquecer que a recusa em aceitá-la como documento vinculativo é muito mais do que um passo atrás, é um salto de gigante em direcção ao século XIX.

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