Texto de Miguel Portas e Renato Soeiro
Publicado em: Global, Fevereiro de 2006
1. Os recentes acontecimentos de Paris obrigam os responsáveis políticos a um rigoroso exame das políticas que têm sido aplicadas. É verdade que a revolta se deu em zonas de subúrbio de cidades francesas - e não em Londres, Berlim, Madrid ou Lis boa. Mas todos reconheceremos, sem dificuldade, que as condições materiais de existência nesses territórios são extensíveis ao conjunto dos subúrbios de todas as nossas grandes cidades. Essas condições podem ser resumidas numa só palavra: discriminação. Ou melhor: dupla discriminação. A discriminação inerente à vida nas periferias e a discriminação que vem da cor da pele, do nome que se usa ou da religião que se pratica.
2. Os acontecimentos de Paris revelam, acima de tudo, a fragilidade e o estado de regres são em que se encontram as políticas públicas – em particular, as de proximidade –, num contexto em que todas se encontram sob forte ataque ideológico. Num mundo onde a mão invisível do Mercado condiciona os comportamentos sociais e determina os sonhos e as expectativas sociais, as políticas sociais que temos revelam-se incapazes de suster a queda de muitos nos abismos da vida.
3. Tanto ou mais do que a falta de empregos, a revolta francesa é reveladora da crise da escola pública. Tivesse a escola outro sucesso, e a pressão da procura no mercado de trabalho seria bem distinta. Os números não enganam: a grande maioria dos jovens detidos estava em ruptura com as respectivas famílias e tinha abandonado precocemente o sistema educativo. Na sua maioria, são franceses descendentes, em segunda e terceira geração, de imigrantes do norte de África, onde a incidência do desemprego é o dobro das, já de si, elevadas taxas de desocupação nos bairros das periferias de Paris. A importância da escola não resulta apenas do que ela representa enquanto aquisição civilizacional – nestes bairros, é o mais importante instrumento de combate ao desemprego precoce e desqualificado.
4. Se tivéssemos que hierarquizar as grandes aquisições que o século XX trouxe à Humanidade, a escola pública encontrar-se-ia, seguramente, entre elas. A democratização do acesso ao ensino alterou em profundidade as relações de poder nas famílias, os mercados de trabalho, e os níveis de formação e civilidade existentes nas nossas sociedades. Mas a escola não existe sozinha. Ela concorre com a família, a rua, a televisão e as novas comunicações. Nas últimas décadas, a centralidade que a escola antes ocupara nos processos educativos entrou em crise - uma crise de centralidade, de lugar.
5. A resposta que os sistemas educativos têm procurado encontrar para essa crise é, não raro, a da “facilidade”: melhorar os índices de sucesso escolar por via da diminuição da exigência. É uma escolha errada. A escola tem é que se reinventar, recriando-se como território de novas e antigas sociabilidades. Essa reinvenção é mais urgente nas periferias das grandes metrópoles. Precisamos de uma “escola menos escola”, de espaços que sejam, ao mesmo tempo, cosmopolitas e identificadores do lugar onde a escola existe, que se afirme como motivo de orgulho da comunidade em que se integra e se projecte como janela do bairro para o mundo.
6. Não precisamos de escolas que se imitem umas às outras. Precisamos de projectos educativos sensíveis ao lugar onde existem e às diferenças que aí se manifestam. Elas, que hoje discriminam, podem constituir-se em oportunidades para todos. Na condição das escolas encontrarem as suas razões de ser e inspiração nos miúdos e nas populações concretas que servem. As escolas dos bairros devem transformar-se em espaços comunitários e inter-geracionais. Devem funcionar durante a semana e ao fim-de-semana, servindo diferentes tipos de formação e actividades. E devem ter autonomia contratualizada com o ministério para desenvolverem os seus focos de atenção e novas potencialidades formativas. A alternativa a esta revolução é a derrota ante a concorrência das fontes informais de educação e formação.
7. Os países europeus têm diferentes abordagens ao problema da integração. Nenhuma delas resolveu o problema do gueto. Nem a escola, de per si, o pode fazer. Mas ela pode - e tem a obrigação - de combater o gueto dentro do gueto, enquanto este não acaba. A chave para essa escola de combate é uma nova articulação entre o direito à igualdade e o direito à diversidade. A integração não é, como tem sido, assimilação. Nem pode reproduzir modelos de “desenvolvimento separado”, como o faz a tradição anglo-saxónica. Essa nova articulação não é um meio caminho entre os modelos multiculturais e integracionistas. É uma nova síntese, uma mudança de paradigma dos próprios projectos educativos.
8. Nessa mudança, a questão da língua é decisiva. A língua não é uma mera técnica ou instrumento que permite a comunicação. É um modo de pensar. É, até, um modo de sonhar. A escola tem-se preocupado em ensinar a língua do país de acolhimento aos descendentes dos imigrantes. Tem-se preocupado, também, em ensinar uma segunda língua, em regra o inglês, a todas as crianças. Tudo isto é correcto, mas não chega. Onde as comunidades de imigrantes são socialmente relevantes, é indispensável que a escola proporcione também o ensino das suas línguas maternas.
9. Na Europa, isto tem sido feito de modo incipiente e limitado. Em Portugal nem isso. Incipiente porque os dois modelos dominantes estão condenados ao fracasso. O mais generalizado assenta em turbo-professores que andam de escola em escola, em horários extra-curriculares, dando lições de língua materna aos filhos dos imigrantes. Todos os anos, a procura deste tipo de ensino diminui. Porque são os Estados de origem dos imigrantes que pagam estes professores, e o dinheiro escasseia. E porque, à medida que as gerações passam, os pais e as crianças dão prioridade a outras escolhas. O segundo modelo não resulta melhor: trata-se de incluir línguas maternas de imigração no leque de opções curriculares de ensino de línguas estrangeiras nas escolas. Sucede que os pais escolhem invariavelmente o inglês. E as outras línguas são “democraticamente” afastadas.
10. As escolas europeias, destinadas aos filhos dos funcionários e representantes da União Europeia, funcionam noutro registo: são, de raiz, bilingues. Ensina-se e aprende-se em duas línguas, a de origem dos alunos e a de destino. E, para lá destas, que são línguas de trabalho, aprendem-se ainda outras línguas estrangeiras. É um ensino de luxo para imigrantes de luxo. Mas porque hão-de os filhos de Bruxelas ter mais direitos do que os dos subúrbios das nossas cidades? Porque hão-de uns ser filhos e outros enteados? Esta a questão de sempre, que justifica combates de sempre.
11. Mas a escola multilingue não é apenas um instrumento de luta contra a discriminação. É uma alavanca para o entendimento intercultural. A integração dos imigrantes não deve ser feita por esmagamento das diferenças, pelo abandono das línguas e culturas de origem. Nem estas devem sobreviver fechadas e separadas. Pelo contrário, o que nos enriquece é a incorporação e a “mistura” das diferentes raízes num património comum cosmopolita. A nossa Europa passa por aqui. Pela certeza de que o resultado da interacção entre culturas é muito mais do que a mera soma ou justaposição das parcelas que interagem.
12. Eis as razões que levaram o Bloco a apresentar ao Parlamento Europeu um relatório – aprovado no fim de Outubro passado – que estabelece o apoio da UE aos projectos educativos que pratiquem a Aprendizagem Integrada de Línguas e Conteúdos. E que nos levará, brevemente, a traduzir esta mesma proposta na legislação nacional.
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