Intervenção no colóquio “Socialismo 2007”, Lisboa, 2 de Setembro de 2007
1. Sócrates e a chave do sucesso
O novo Tratado é, sem dúvida, o tema principal deste semestre de presidência portuguesa do Conselho da União Europeia. E o eventual “Tratado de Lisboa” pode muito bem vir a ser a sua coroa de glória, se vier a ser aprovado antes do fim do ano. Sabemos que, à semelhança do que se passou na anterior presidência em 2000 com a “Estratégia de Lisboa”, resulta em parte da conjugação de alguns acasos históricos e de necessidades de calendário que o nome de “Lisboa” figure tanto no Tratado como na Estratégia, dois dos documentos fundamentais da União. Mas não devemos ignorar também a contribuição do know-how dos nossos governantes para a obtenção deste tipo de importantes acordos.
No caso presente do Tratado, haverá sem dúvida muito know-how técnico-jurídico por detrás das centenas de páginas apresentadas em tempo recorde à Conferência Intergovernamental (CIG), três semanas apenas após o início da presidência. Mas não é esse o factor decisivo. O que conta mesmo, neste contexto de crise prolongada que se seguiu ao fracasso no referendo ao Tratado Constitucional, é o know-how político e não a competência jurídica.
E Sócrates demonstrou tê-lo, quando percebeu qual é a chave para o êxito neste processo: a rapidez. Quando em 11 de Julho, em Strasbourg, fez a apresentação da presidência portuguesa ao Parlamento Europeu, do longo discurso e do debate que se seguiu, foi esta a ideia que me pareceu realmente mais marcante: “aproveitar o momentum político e andar depressa”.
Também Luís Amado, na sessão de abertura da Conferência Intergovernamental, em Bruxelas a 23 de Julho, afirmava que o debate sobre os Tratados já se arrasta há demasiado tempo e que passámos de um período de reflexão a um momento para acção, sublinhando que o Conselho Europeu foi muito claro ao indicar que “a CIG concluirá os trabalhos o mais rapidamente possível”.
Neste contexto, a presidência portuguesa beneficia até de um factor que é normalmente considerado prejudicial no calendário das presidências rotativas: o segundo semestre é mais curto, em tempo útil, porque inclui o período de Verão. Mas para o efeito que se pretende agora, isto é uma vantagem, porque os especialistas puderam trabalhar até agora sem terem os políticos e as opiniões públicas a incomodar. Quando a vida política retomar o seu ritmo normal após as férias, muito do trabalho já estará feito, de forma ser possível tomar decisões em Viana do Castelo, a 7 e 8 de Setembro, na Reunião Informal de Ministros dos Negócios Estrangeiros, e fechar as negociações a 18 e 19 de Outubro, em Lisboa, na Cimeira Informal de Chefes de Estado e de Governo para finalmente fazer uma cerimónia de assinatura formal antes do fim do ano. É um ritmo acelerado, nada habitual no pesado mecanismo institucional da União.
A equipa de Sócrates está a pôr ao serviço da UE a sua receita governativa doméstica: decisão rápida pré-combinada com as pessoas “certas”, sem consultar nem atender a razões de terceiros, afrontando as opiniões públicas com soberano desprezo, recuperando depois a popularidade com meia de demagogia e muita comunicação social. É a política do “come e cala”, que os portugueses bem conhecem. Perante tanta eficácia, compreende-se o encanto de uma eurocracia traumatizada por um longo e penoso processo em que viu adiados os seus ambiciosos projectos institucionais por ter cedido à tentação de dar a voz ao povo ignaro e se ter deixado enredar nas teias paralisantes da democracia. Neste campo, o governo português tem lições a dar à Europa.
2. Uma política errada?
Que pensar desta atitude da presidência portuguesa? Deve dizer-se que é uma política errada ou deve reconhecer-se que, em face das circunstâncias, estão a fazer o que era preciso e estão a agir de uma forma eficaz?
Permitam-me introduzir aqui uma breve reflexão sobre esta classificação de “errada” que por vezes as oposições e os sindicatos atribuem à política do governo.
Quando se diz que uma política é errada, o que fica subentendido é que ela não permite atingir determinados objectivos que se tem de supor serem do comum interesse do crítico e do criticado.
Dir-se-á a alguém que parte de Coimbra em direcção ao Norte que está no caminho errado? Depende. Sim, se o objectivo for chegar a Lisboa, mas não se o destino pretendido for o Porto. Sem um acordo prévio relativamente aos objectivos, é impossível atribuir classificações do tipo “certo” ou “errado”. Mesmo se esse acordo não é explícito, deduz-se da simples atribuição daquela classificação que existirá implicitamente.
Dito de outra forma, a classificação de uma política como certa ou errada é uma classificação interna a um determinado campo, e o campo é definido pela posição dos seus elementos face a determinados objectivos, ou seja, os campos delimitam-se através da partilha de objectivos comuns. Têm portanto uma geometria variável dependente dos objectivos concretos que os conformam.
Um exemplo recente: no referendo sobre o aborto definiram-se claramente dois campos em torno dos dois objectivos possíveis: a vitória do Sim e a vitória do Não; dentro do nosso campo, o do Sim, considerámos que a posição inicial do PCP de oposição ao referendo era uma posição errada, porque aceitávamos que partilhávamos com o PCP o mesmo objectivo de conquista do direito ao aborto. Mas não faria sentido classificarmos como erradas as várias opções que se desenharam dentro do campo do Não. Para essas, reservámos outro tipo de classificativos. Paralelamente, dentro do campo do Não, era normal aparecerem críticas de umas posições face a outras consideradas erradas por prejudicarem o seu objectivo da vitória do Não.
Acontece que na questão do Tratado Europeu, como em muitas outras, nós não nos encontramos no mesmo campo que o governo português ou o Conselho Europeu, e isto porque não temos objectivos comuns nesta matéria. Assim, não consideramos errada a posição do governo. Provavelmente será até a posição certa para atingir os seus objectivos. O que se passa é que nós não partilhamos o desejo de que esses objectivos sejam atingidos. Pelo contrário, o nosso campo constrói-se na luta contra esses objectivos e por uma UE completamente diferente.
3. Algumas razões da nossa oposição ao Tratado
Um dos principais argumentos apresentados para a urgência de um novo Tratado é a necessidade de proceder a reformas institucionais que adaptem o funcionamento da União às novas condições que resultam dos últimos alargamentos e da evolução da Europa e da situação internacional. Esta questão, de grande importância, será tratada noutro texto e noutro contexto, dada a sua extensão e especificidade, que não cabe num debate de uma hora.
Vejamos então algumas de entre as muitas outras razões que justificam a nossa oposição ao novo Tratado e ao novo processo para a sua aprovação.
3.1. Complexidade e hermetismo
Contrariamente ao que foi anunciado ou sugerido por alguns dirigentes europeus, com especial destaque para Sarkozy, não estamos perante um “mini-Tratado” ou um “Tratado simplificado”. Muito pelo contrário. A solução adoptada no Conselho Europeu de Junho de 2007 é bem mais longa e complexa do que o anterior projecto de Tratado Constitucional, porque mantém em vigor os Tratados actuais — o Tratado da União Europeia (TUE) e o Tratado que institui a Comunidade Europeia —, que são emendados por este novo Tratado Reformador, recuperando todo o conteúdo do defunto Tratado Constitucional (TC) (conteúdo esse que, para acalmar os ânimos, é referido de forma mais inócua como “as inovações da CIG de 2004”) apenas com as excepções muito precisas definidas no mandato aprovado para a CIG de 2007.
O resultado deste emaranhado jurídico produzirá um texto hermético, dificilmente acessível ao cidadão comum que queira interessar-se pelos assuntos europeus. Para que se perceba do que estamos a falar, cito um naco de prosa da proposta de Tratado entregue pela presidência portuguesa (no momento em que escrevo estas notas, existe apenas a versão em francês, mais uma consequência da pressa que referimos acima e de como ela afecta a possibilidade de uma participação democrática e cidadã):
“Le texte de l'article 16 devient l'article 17bis, avec les modifications indiquées ci-après au point 35). Il est remplacé par un texte qui reprend le libellé de l'article 22, avec les modifications suivantes:”
É este tipo de documento que se preparam para aprovar. Não me espanta assim que depois se argumente que, apesar de muito boa vontade para fazer um referendo, a demasiada complexidade ou tecnicidade do texto não permite submetê-lo a uma consulta popular. Quem pode dizer Sim ou Não a uma coisa destas?
Depois de tudo aprovado, virá então um batalhão de juristas e linguistas fazer um trabalho técnico de consolidação nas 23 línguas oficiais. E o assunto ficará resolvido, na paz dos gabinetes.
3.2. Simbologia e demagogia
Há, no mandato dado pelo Conselho, algumas eliminações simbólicas, que são bem o retrato da vasta manobra demagógica que está em curso:
— A “concorrência livre e não falseada”, que aparecia no nº 2 do Artigo I-3.º (Objectivos da União) do Tratado Constitucional, foi objecto de uma ruidosa campanha de Nicolas Sarcozy para que fosse retirada, em nome da protecção que a UE deveria proporcionar às suas empresas e aos seus trabalhadores, num mundo de concorrência global por vezes hostil e falseada. O Conselho, nada convencido, concedeu, porque todos compreendem que foi na França que nasceu o problema para o Tratado e é em França que ele tem que ser prioritariamente resolvido. Aos defensores do Não que se opunham à constitucionalização do neoliberalismo, será agora respondido que Sarkozy os ouviu e resolveu o problema. Em Bruxelas faz-se política… Embora Merkel e Barroso logo se tenham apressado a acalmar o mundo dos negócios e os governos mais liberais explicando que nada mudará em termos de política económica, e que a livre concorrência, não sendo um objectivo, é no entanto um meio inquestionável para atingir os objectivos da União. Ficará tudo na mesma, portanto.
— A bandeira, o hino e o lema foram também vítimas de amputação: já não serão os símbolos da União. Enrique Barón Crespo, ex-presidente do Parlamento Europeu, ex-presidente do grupo socialista e um dos três representantes do PE na CIG 2007, visivelmente desagradado com a medida, perguntava no plenário, no debate com Sócrates: “… estamos reunidos aquí con la bandera europea. ¿Qué vamos a hacer, señor Presidente? ¿Vamos a retirar la bandera o va a ser considerada esta reunión como una reunión ilegal? Éste es un punto importante, que tiene un aspecto en cierto modo humillante.” E depois, numa conversa de corredor, dizia-me que se tinha perdido o sentido do ridículo e esquecido que o ridículo mata. Posso estar parcialmente de acordo, mas a verdade é que se o Conselho se presta a esta humilhação e a este ridículo, o faz em nome de um pragmatismo político que tem em vista o objectivo “superior” de aprovar o Tratado a todo o custo. Aos opositores mais populistas ao Tratado, nomeadamente da direita nacionalista (outro sector apreciável dos votantes do Não) que brandia o espantalho de um super-estado que poria em causa as identidades nacionais, apresentar-se-á o não menos populista argumento da retirada formal dos símbolos mais visíveis. Demagogia barata que, creio eu, não chegará a sair do papel. Um desafio que vos deixo é o de tentarem observar, de entre as inúmeras bandeiras azuis hasteadas nas instituições europeias ou nacionais, das fachadas dos edifícios e gabinetes dos ministros até às Juntas de Freguesia, quantas vão ser retiradas após a aprovação do novo Tratado.
— A moeda única que, embora não tenha sido adoptada em toda a União, era referida no TC como “a moeda da União”, passará a ser mencionada da seguinte forma: “A União estabelece uma união económica e monetária cuja moeda é o euro.” Aqui também nada muda na prática, mas tenta-se acalmar os indefectíveis das libras ou das coroas.
Neste campo, há várias alterações, algumas meramente cosméticas ou terminológicas, outras com algum sentido político, mas cujo objectivo único é criar armas para o combate político às objecções (mais sérias ou mais populistas) que foram levantadas à anterior proposta de TC.
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No Artigo I-8.º do TC definiam-se os Símbolos da União: “A bandeira da União é constituída por um círculo de doze estrelas douradas sobre fundo azul. O hino da União é extraído do «Hino à Alegria» da Nona Sinfonia de Ludwig van Beethoven. O lema da União é: «Unida na diversidade». A moeda da União é o euro. O Dia da Europa é comemorado a 9 de Maio em toda a União.”
Agora, decide o Conselho:
“O TUE e o Tratado sobre o Funcionamento da União não terão carácter constitucional. Esta mudança reflectir-se-á na terminologia utilizada em todos os textos dos Tratados: não será usado o termo "Constituição", o "Ministro dos Negócios Estrangeiros da União" será designado Alto Representante da União para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, serão abandonadas as denominações "lei" e "lei-quadro", e manter-se-ão as actuais denominações "regulamentos", "directivas" e "decisões". De igual modo, nenhum artigo dos Tratados alterados fará alusão aos símbolos da UE, como a bandeira, o hino e o lema. No tocante ao primado do direito da UE, a CIG aprovará uma declaração remetendo para a actual jurisprudência do Tribunal de Justica da UE. Enquanto que o artigo sobre o primado do direito da União nao será reproduzido no TUE, a CIG acordará na seguinte declaração: "A Conferência lembra que, em conformidade com a jurisprudência constante do Tribunal de Justiça da União Europeia, os Tratados e o direito adoptado pela União com base nos Tratados primam sobre o direito dos Estados-Membros, nas condições estabelecidas pela referida jurisprudência."
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3.3. Conteúdo anti-social
Na nova versão do Tratado não há qualquer mudança de rumo nas políticas anti-sociais e anti-laborais que têm caracterizado os últimos anos de construção europeia.
No entanto, relativamente aos “serviços de interesse económico geral” (água, electricidade, limpeza urbana, transportes, etc.), hoje alvo preferencial da cobiça de grandes grupos privados, e que foi um tema muito debatido nos referendos, será anexado ao Tratado um Protocolo em que se reconhece uma “vasta discrição das autoridades nacionais, regionais e locais na prestação, adjudicação e organização de serviços de interesse económico geral de uma forma que atenda tanto quanto possível às necessidades dos utilizadores” e reconhece-se “a diversidade entre vários serviços de interesse económico geral e as diferenças nas necessidades e preferências dos utilizadores que possam resultar de diversas situações geográficas, socais ou culturais”, bem como “um elevado nível de qualidade, segurança e acessibilidade de preços, igualdade de tratamento e promoção do acesso universal e dos direitos dos utilizadores”. Este reconhecimento, formalmente positivo, terá como objectivo esvaziar algumas das críticas mais severas às políticas europeias em prol da privatização dos serviços públicos. O problema é que são precisamente as “autoridades nacionais, regionais e locais” que, usando a sua “vasta discrição”, têm promovido a entrega destes serviços ao mundo dos negócios. Mas tanto o Tratado como a União ficariam assim isentos de culpa e ao abrigo da crítica, transferindo o alvo dos ataques para essas autoridades. É claro que na vida real teremos o mesmo resultado prático, bastante negativo para os consumidores.
3.4. A Carta dos Direitos Fundamentais
Já noutro artigo analisei a problemática da Carta dos Direitos que será retirada do corpo do Tratado (no TC era a Parte II), embora seja referida num artigo que lhe atribui um carácter vinculativo, carácter esse que a seguir é limitado por Protocolos anexos, fazendo com que direitos declarados fundamentais não sejam considerados universais dentro do espaço da União. A crítica de esquerda ao conteúdo redutor da Carta mantém-se mas, como em tudo o mais, o novo Tratado vem acrescentar mais alguma confusão.
No final, muitos direitos, mesmo reduzidos no seu conteúdo e limitados no seu âmbito geográfico, ficarão no papel, como aliás já estava previsto na artificiosa engrenagem jurídica de “Anotações” com que Giscard d’Estaing tinha armadilhado a Carta quando na Convenção a incorporou no Tratado Constitucional; essas “Anotações” apareciam no ponto 12 da Acta Final A anexa ao TC (!) e eram apresentadas como “um valioso instrumento de interpretação destinado a clarificar as disposições da Carta”.
Um exemplo concreto: o Artigo 34.º, sobre “Segurança social e assistência social”, “reconhece e respeita o direito de acesso às prestações de segurança social e aos serviços sociais que concedem protecção em casos como a maternidade, doença, acidentes de trabalho, dependência ou velhice, bem como em caso de perda de emprego”, “reconhece e respeita o direito a uma assistência social e a uma ajuda à habitação destinadas a assegurar uma existência condigna a todos aqueles que não disponham de recursos suficientes”. É um bom artigo, reconheçamos.
Mas, nas “Anotações”, o Presidium da Convenção esclarece que “A referência aos serviços sociais (…) não implica de modo algum que tais serviços devam ser instituídos quando não existirem.” Ou seja, tem direito aos serviços sociais quem já tem os serviços sociais; quem não tem, não poderá contar com a Carta e com os seus Direitos para os exigir.
3.5. Militarismo e subordinação à NATO
Também aqui não há mudanças. No TC afirmava-se que “A política comum de segurança e defesa conduzirá a uma defesa comum logo que o Conselho Europeu, deliberando por unanimidade, assim o decida.” No mandato da CIG prescreve-se mais redondamente “a definição gradual de uma política comum de defesa que poderá conduzir a uma defesa comum.” Do “conduzirá” ao “poderá conduzir” poderia haver uma certa distância, mas a ressalva da decisão por unanimidade associada ao “conduzirá” que deixa de existir no “poderá conduzir” mostra que a mudança é, como em quase tudo o resto, cosmética para acalmar os ânimos mais exaltados, mas que não augura nada de bom. Esta criação da “defesa comum”, combinada com o compromisso dos Estados-Membros “a melhorar progressivamente as suas capacidades militares” e a respeitar “os compromissos assumidos no quadro da Organização do Tratado do Atlântico Norte”, mostram que todas as críticas feitas ao anterior Tratado em matéria de defesa se aplicam à nova versão e continuam a ser uma das razões principais de oposição dos movimentos sociais.
3.6. Novo embrulho da mesma política
Apresentamos apenas alguns exemplos das muitas razões pelas quais a esquerda se opõe ao Tratado Reformador, como se opôs ao Tratado Constitucional.
Os defensores do novo Tratado por vezes gabam-se de ter preservado mais de 90% do conteúdo do TC. Mas quando precisam, utilizam as diferenças como argumento. Dizia, no debate sobre a convocação e o mandato da CIG, Richard Corbett, eurodeputado do Labour e coordenador dos socialistas para os Assuntos Constitucionais: “Muitas pessoas comentaram que este mandato mantém 90% do conteúdo do Tratado Constitucional, e isto gerou muitos comentários. Mas os colegas também sabem que investigações científicas recentes demonstraram que os seres humanos e os ratos são geneticamente idênticos a 90%. No entanto, a diferença de 10% é bastante importante. Da mesma forma, neste mandato, a diferença de 10% é muito importante.” Embora lamente as diferenças, Corbett lembra que elas “tornarão possível, tornarão mais fácil ratificar o Tratado nos 27 Estados-Membros e isso é o ponto crucial que devemos reconhecer.”
É o euro-pragmatismo no seu pior que agora vem substituir a euro-arrogância da fase pré-referendos, e que brande as armas da demagogia para tentar resolver o problema que teve com a democracia. Na nossa opinião, o conteúdo político neoliberal das duas versões do Tratado é precisamente o mesmo e as críticas que fizemos ao défice democrático dos métodos e das soluções são agora reforçadas e ainda mais justificadas.
4. Os contornos da nova campanha da esquerda
4.1. O que há de novo neste segundo round ?
É de notar que, neste segundo processo de elaboração do Tratado, estamos numa fase pela qual já tínhamos passado antes com grande “sucesso” e festejos: a fase de aprovação de um texto decidido por unanimidade pelos Chefes de Estado e de Governo. Até ao momento, não parece haver nada de novo. No entanto, as elites europeias estão a festejar o acordo de Junho passado como um facto de grande significado. Mas qual é verdadeiramente este significado?
O único facto relevante acontecido entre a aprovação pelo Conselho do anterior Tratado Constitucional e a aprovação do novo mandato para a CIG 2007 foi a realização dos referendos. Seria natural e até louvável que, em face dos resultados negativos nas consultas populares, o Conselho decidisse alterar o conteúdo do texto para responder às objecções levantadas e o tornar aprovável.
Mas o que há de novo neste segundo round não é qualquer verdadeira mudança de substância, de objectivo ou de projecto. O que há de novo é a perda de confiança dos governantes de que conseguem aprovar nas opiniões públicas o seu verdadeiro projecto para a UE, redigido em termos mais ou menos claros, e é a decisão de avançar por outro caminho para o mesmo objectivo. Outro caminho cuja principal “vantagem” será passar ao lado das opiniões públicas, expressas de forma soberana e vinculativa. O longo período de reflexão produziu o seu fruto: a euro-montanha pariu um monstro.
4.2. Que táctica para a esquerda?
Face a esta mudança de táctica dos governos, as oposições populares e de esquerda estão a definir a sua resposta.
Esta resposta deve incluir obviamente a clarificação do conteúdo e do alcance do Tratado, sobretudo centrada na demonstração de que se trata essencialmente do mesmo projecto que já foi discutido e dissecado com pormenor nas campanhas de há dois anos.
Mas o centro da táctica deve ser colocado noutro ponto, precisamente naquilo que há de novo nesta fase, e que é o afastamento dos povos do processo de ratificação. Esta baixa manobra é sentida amplamente pelas populações como uma atitude de cobardia e desonestidade anti-democrática e constitui o principal ponto fraco do novo processo. Nesse sentido, os debates sobre o novo Tratado devem demonstrar que as alterações feitas não são de substância, mas que têm como principal finalidade a comunicação política ao serviço da táctica de fuga ao controlo das populações sobre o processo de construção europeia.
Esta fuga assentará em argumentos mutantes. Em França e nos Países Baixos será explicado que não é necessário fazer novos referendos porque o novo Tratado é completamente diferente do TC e já contempla as alterações que respondem às críticas feitas pelos defensores do Não. Em Espanha e no Luxemburgo provavelmente argumentar-se-á que não é preciso fazer novos referendos porque este Tratado é praticamente igual ao que já foi referendado. No Reino Unido dir-se-á que o euro já não é a moeda da União, que tanto a Carta de Direitos como decisões judiciais europeias não se aplicam além-Mancha e que Solana não é Ministro dos Negócios Estrangeiros da UE. Outros dirão que não havendo bandeira nem hino, a União já não representa um perigo para a sacrossanta bandeira e para o hino nacional. Junto de outros públicos afirmar-se-á que o referendo era justificado para uma Constituição, mas não para um “simples” Tratado como os anteriores, que também não foram referendados. Ou, se não for por ser simples, então é porque é complicado de mais que nâo vai poder ser submetido a referendo. A campanha será forte e demagógica, preparemo-nos para o pior.
Do nosso lado, continuamos a discordar profundamente e a combater a política anti-social que se tem aprofundado ao longo dos anos em resultado do projecto neoliberal que inspirou os sucessivos Tratados. Mas é o carácter anti-democrático que se revela agora ainda mais chocante no novo processo de aprovação e ratificação.
A exigência de uma Europa de democracia tem de ser mais do que nunca associada à exigência de uma Europa social. Uma não é possível sem a outra e a esquerda que não saiba dar resposta à questão da democracia europeia não estará à altura da exigente responsabilidade da luta pelos direitos sociais.
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