Estónia: a luta pelos símbolos

Texto de Renato Soeiro e Miguel Portas, em Tallinn
Publicado em: Global em Maio de 2007


Tallinn, capital da Estónia - Na tarde de 27 de Abril, mil a dois mil manifestantes, em regra muito jovens, acusam a polícia de ser “fascistii”. Não têm grande experiência neste tipo de andanças. Vários vestem-se à moda dos jovens das banlieues de Paris, com blusões de capuz, para dificultar a identificação. Pertencem à comunidade russa de Tallinn. São empurrados pelos serviços de segurança que, a pouco e pouco, limpam a praça. Os miúdos desafiam abertamente os polícias que, em raides selectivos, apanham os mais combativos.
Um pouco mais tarde, irrompe por uma avenida adjacente, um grupo de duas centenas de nacionalistas estónios, também muito novos. De bandeira nacional, a polícia deixa-os passar perto dos adversários. O confronto, contudo, não se concretizou. Ele sobra, inteiro, para a polícia. Ao terceiro dia de conflitos de rua, há dezenas de feridos e as detenções elevam-se a quase um milhar. A destruição de vitrinas e paragens de autocarro pelo centro da cidade, sinalizam, do lado russo, a fúria dos mais jovens. É impossível a um observador mais experimentado neste tipo de acontecimentos, não constatar uma estranha inépcia securitária na protecção da propriedade. Durante três dias, as forças de repressão fecharam todas as entradas no centro medieval de Tallinn e sua envolvente. Recorreram a inúmeros check points e gradeamentos. Com o coração da cidade bloqueado, sem trânsito automóvel ou de peões, e com apelos governamentais a que os cidadãos não saíssem de suas casas, grupos de miúdos puderam, durante três noites, dar largas à sua ira.
Não se pode dizer que os agentes não levassem a sério o papel que o governo lhes destinou: “estou aqui a defender o meu país”, confessou-nos um deles. Na fronteira, cidadãos da vizinha Letónia foram barrados desde que circulassem com símbolos pró-russos ou de memória soviética. E autocarros que se dirigissem para Tallinn, a partir de outras cidades da Estónia, foram igualmente impedidos de aí chegar. Do lado do governo, o dispositivo de forças parecia agir como se estivesse em marcha uma insurreição popular. Como foi, então, possível, a destruição de tantas montras? A resposta talvez se encontre no modo como os jornais e as televisões abordaram os acontecimentos: com abundante profusão de imagens destinadas a martelar o “vandalismo da canalha”. Um dos principais jornais da Estónia, na sua edição de 28 de Abril, publica 16 páginas de fotos chocantes de incêndios e destruição de lojas, carros virados, e manifestantes carregados com a mercearia retirada das lojas. Todas as suas páginas, capa incluída, têm como cabeçalho uma bandeira da Estónia no chão a arder...

UMA ESTÁTUA NO CENTRO DO MOTIM

Quando, em Agosto de 1991, o Soviete Supremo da República da Estónia ratificou uma Resolução que estabelecia a sua independência face à URSS, mais de um terço da população descendia dos imigrantes russos que afluíram aos países bálticos após o fim da II guerra mundial.
O que então aconteceu na Estónia não diferiu, na substância, dos outros países do Leste europeu. Na transição do capitalismo de Estado para o capitalismo tout court, e da ditadura para a democracia parlamentar, os símbolos foram os primeiros a cair. De todas as estátuas do período soviético, só uma escapou à limpeza: a do “soldado de bronze”, que assinalava a libertação do nazismo. A estátua, situada numa colina nas proximidades do centro medieval, “guardava” ainda uma vala onde repousavam vários corpos de soldados soviéticos. Foi a decisão de trasladar o conjunto para um cemitério militar da periferia que esteve na origem dos conflitos. Dificilmente um monumento poderia traduzir mais drasticamente as diferentes percepções da História. A minoria russa considera os soldados soviéticos como libertadores, e a união da Estónia com a Rússia, como uma aliança natural; o nacionalismo estónio, pelo contrário, considera que o último meio século foi de ocupação ilegal, e que os russos não passam de ocupantes e colonialistas. Os mais radicais consideram mesmo os nazis como libertadores... A estátua de homenagem ao soldado soviético, símbolo material deste período, é vista, portanto, sob olhares bem distintos.
Seja como for, o memorial nunca deixou de ser objecto de romagem por ocasião das tradicionais manifestações do 9 de Maio, o dia que assinala a vitória sobre o nazismo na Europa. Mas nos últimos anos, o mero encontro evocativo de veteranos da Segunda Grande Guerra, transformou-se num momento de afirmação de massas, onde a presença de símbolos russos e soviéticos tinha o condão de irritar os governos e os nacionalistas estónios. O memorial instituiu-se em símbolo de uma comunidade que se sente discriminada no país. Não se pode dizer que lhe faltem razões. Em 1992, recuperando uma antiga lei da nacionalidade, a cidadania automática só foi dada a quem já a tinha antes de 1940, e aos seus descendentes. Só os estónios de “sangue puro” puderam votar no referendo constitucional. Todos os outros - e entre estes a população de origem russa - foram obrigados a realizar exames de língua e de História estónias, internacionalmente considerados como extraordinariamente exigentes, se quisessem aceder à nacionalidade do país em que nasceram. O resultado desta política está hoje à vista: 15% da população da Estónia não tem direitos de cidadania e é discriminada nos empregos e nos serviços sociais. Os motins de fins de Abril reflectem o profundo descontentamento que grassa entre esta minoria nacional. Mas não só. Disputas de natureza geo-estratégica entre a Rússia e um nacionalismo estónio alinhado com Bruxelas e Washington, jogaram também o seu papel.

ESCALADA

Em 2006, os nacionalistas estónios decidiram confrontar os manifestantes do 9 de Maio. Desde então, as tensões subiram. A polícia passou a controlar a zona e o parlamento estónio passou ao ataque. Em Janeiro deste ano, e com boa dose de cinismo, aprovou, apenas com 6 votos contra, que as normas internacionais de respeito pelas sepulturas dos mortos de guerra, implicavam a transferência dos restos mortais dos soldados russos para um cemitério... A escalada prossegue em Fevereiro, quando o Parlamento aprova, por 46 votos contra 44, uma lei que proíbe monumentos que exaltem a União Soviética. O texto exigia o desmantelamento do monumento no prazo de 30 dias, mas o presidente vetou-o invocando a sua inconstitucionalidade.
Com a polémica a subir de tom – ela marcou as legislativas de Março - criaram-se condições legais para a trasladação, a concretizar antes das celebrações do 9 de Maio. Escusado será dizer que a minoria russa respondeu à ofensiva nacionalista. Para além da permanente deposição de flores e de velas, grupos de “guardas da noite” passaram a fazer vigília nocturna do monumento. Estónios garantem que tais permanências eram pagas pela embaixada da Rússia, que garantia igualmente os transportes para as manifestações. Como diria um italiano, si non é vero, é benne trovato...
Quando, a 25 de Abril, chega a Tallinn um enorme aparato policial que cobre o monumento com uma tenda branca e veda a colina, todas as condições para a tragédia estavam reunidas. A comunidade russa revolta-se nessa mesma noite. Alguns milhares de manifestan¬tes são então violentamente dispersados pela polícia. Um morto, dezenas de feridos e três centenas de detidos selam a noite. O resto é conhecido. Moscovo corta relações com Tallinn e Bruxelas, em¬bora em diferentes registos, alinha ao lado do seu Estado-membro. Num repente, os motins de Tallinn ocupam o centro das relações entre Moscovo e a União. Mas, verdadeiramente, o alvo de Vladimir Putin é Washington. Ele vê nas atitudes “anti-russas” do governo estónio um episódio mais do seu alinhamento com G.W. Bush, que procura o apoio europeu para a instalação de novas bases e equipamentos militares anti-míssil no Leste europeu.

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