Publicado em: www.esquerda.net 2007-06-19
Termina esta semana na UE o chamado "período de reflexão", decretado após a rejeição do Tratado Constitucional nos referendos francês e holandês. Como explicou numa reunião, com um honesto sentido de humor, Alejo Vidal-Quadras, vice-presidente do Parlamento Europeu: "chamamos período de reflexão àqueles momentos em que ninguém sabe exactamente o que fazer". O estado de choque estava instalado após anos de intensa preparação da proposta de Constituição, que era já tida como um dado adquirido e foi festejada com pompa nas etapas intermédias de aprovação. Primeiro numa Convenção conduzida por Giscard d'Estaing com alguma arrogância e pouca vocação democrática para ouvir as opiniões dos participantes, já eles muito seleccionados e pouco representativos da pluralidade das opiniões europeias. Depois, com a aprovação unânime dos governos e, por fim, no Parlamento Europeu. A festa justificava-se, a União tinha a sua primeira Constituição. As ratificações seriam apenas um pormenor formal a acrescentar a uma grande vitória. Muitas das resoluções que se aprovavam tinham já referências aos artigos do Tratado Constitucional, apesar de este não estar em vigor.
Foi devido a este ambiente de certezas e de euforia que as rejeições geraram grande desânimo e a maior confusão nas mentes das elites europeias. Num aspecto falaram verdade: não havia um plano B. Não havia porque ninguém tinha considerado que poderia vir a ser necessário. Daí o longo período de reflexão.
A primeira reacção articulada foi a apresentação do Plano D da Comissão Europeia, a cargo de Margot Wallström, a vice-presidente encarregada das Relações Institucionais e da Estratégia de Comunicação. O Plano D (D de Democracia, Diálogo e Debate) era apresentado como a contribuição da Comissão para o período de reflexão e articulava-se com a restante estratégia de comunicação. O que era preciso era melhorar a comunicação. Não havia um problema político, havia um problema de comunicação. Nada a mudar na política, tudo a melhorar na forma como se comunica esta política.
O aspecto mais chocante dos debates havidos em torno desta questão prende-se com o argumento de fundo de que os franceses e holandeses tinham votado NÃO por falta de informação sobre a UE. Em França, particularmente, viveu-se o maior, mais vasto e mais intenso processo de discussão de temas europeus desde que há 50 anos se iniciou o processo de unidade europeia. Milhares de reuniões muito participadas em toda a França, mesmo nos lugares mais recônditos do país, intensa publicação de análises profundas do Tratado e do processo de construção europeia, debates sucessivos em prime-time nos vários canais de televisão, reprodução do Tratado nos jornais de grande tiragem, um extenso e difícil texto jurídico europeu destronando o Harry Potter no top de vendas das livrarias, tudo isto ultrapassa largamente as visões mais optimistas que alguma vez puderam ter sonhado os pais fundadores da Europa unida ou os seus mais entusiastas seguidores. Dificilmente se voltará a verificar um debate europeu com tal intensidade, profundidade e participação. Os franceses conhecem hoje melhor o Tratado Constitucional do que o povo de qualquer dos países que disseram SIM.
Dizer que os franceses não estavam informados revela uma desonestidade intelectual absolutamente chocante. Mas, para as elites políticas europeias e para os eurocratas que os rodeiam era impossível reconhecer o facto de que um povo informado, ainda por cima de um grande país e de um país fundador, pudesse rejeitar uma proposta feita pelas instituições europeias, com o apoio unânime de todos os governos e dos parlamentos. A tese de que a adesão ou não adesão ao projecto é apenas função de se ter ou não ter a informação suficiente é uma perversidade típica do pensamento único, que viola princípios fundamentais da democracia pluralista. Para eles, não há opiniões políticas diferentes e válidas, há apenas gente bem informada e gente mal informada, e há umas correntes marginais que se aproveitam desta gente mal informada.
Quando numa democracia se coloca uma questão a referendo, tem de reconhecer-se obrigatoriamente que ambas as respostas são saídas democráticas para o problema. Se uma das respostas não fosse democraticamente aceitável, pura e simplesmente não poderia ser posta a referendo. Porém, o que se viu e ouviu na UE após a vitória dos NÃOs mostra que o pluralismo e o respeito pela opinião popular não são o forte das correntes dominantes.
Se insistimos hoje no balanço dos debates que marcaram o período de reflexão (que agora termina), é porque tudo indica que as propostas de solução da crise que verão a luz do dia a partir desta semana, provavelmente estarão inquinadas por esta perspectiva negacionista da possibilidade de aos povos europeus ser dada a oportunidade de fazer ouvir a sua voz soberana.
A perspectiva de Durão Barroso, que defende que precisamos hoje sobretudo de uma Europa de resultados, de que são os resultados concretos e palpáveis para a vida dos cidadãos que podem construir uma opinião pública favorável, será provavelmente combinada com a posição dos que afirmam que, para obter resultados, precisamos de soluções políticas e institucionais que tornem a União operacional. Logo, (e o silogismo não é complicado) vamos resolver a questão institucional e política, depois vamos produzir resultados, depois o povo virá a apoiar a solução encontrada. Abandonem-se as tentações de obter resultados referendados numa fase em que o risco de fracasso é muito elevado.
Algumas decisões políticas serão tomadas pelos chefes de governo, tentando manter todos os conteúdos anteriores, mas com formas mitigadas que permitam desdramatizar a polémica e simplificar os processos. Muito será remetido para o discreto trabalho conjunto dos especialistas das instituições europeias e dos Estados-membros. Uma propaganda massiva inundará as nossas cidades e os nossos media. E os referendos serão provavelmente considerados fora do contexto em face das novas soluções.
Do outro lado, do lado de cá, haverá que exigir, com a convicção de sempre e com mais força do que nunca, o direito inegável dos povos serem ouvidos e do seu voto ser respeitado, bem como o direito de poderem colectivamente decidir o seu futuro.
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