Festigal 09 - A esquerda, as eleições europeias, o Tratado de Lisboa



24 de Julho de 2009

Participação no FESTIGAL 2009, um festival de “música, tendências e diversidade” organizado anualmente pelo BNG em Santiago de Compostela.

No espaço "Galeria das Ideias", num debate no rescaldo das eleições europeias. Na mesa estão também, da esquerda para a direita: Oriol Junqueras (eurodeputado da Esquerra Republicana de Catalunya), Ana Miranda (cabeça de lista do Bloque Nacionalista Galego nas eleições europeias e futura eurodeputada) e a moderadora Lara Graña (do Xornal de Galicia).

[Transcrição da intervenção]

"Para um galego do sul, como eu, é sempre um grande prazer participar no Festigal e nas comemorações do Dia da Pátria Galega.

Para mais tão bem acompanhado pelos camaradas Ana Miranda e Oriol Junqueras Vies, meus companheiros de emigração política em Bruxelas.

O tema deste debate é muito vasto e uma das formas de o abordar em 15 minutos é pegar por uma ponta que nos tenha marcado especialmente.

Esta crise que estamos a viver, uma crise nos nossos países, uma crise em toda a Europa e mais além, é um momento especial, como nós nunca vivemos antes em toda a nossa vida. Há milhões de novos desempregados, todos conhecemos um familiar ou um amigo que enfrenta o desespero de aos 40 ou 50 anos ficar condenado a nunca mais arranjar um emprego decente. Esta é uma sociedade que está a condenar a juventude a uma vida precária. Em muitas e muitas décadas, esta é a primeira geração europeia cuja perspectiva é a de viver pior do que a geração dos seus pais. Isto é um facto absolutamente novo e nós não sabemos ainda exactamente quais serão os efeitos desta recessão civilizacional na atitude das novas gerações face à vida política e social. Estamos num campo em aberto, com saídas para o melhor ou para o pior. Isto é um enorme desafio para a esquerda. Mas é também uma oportunidade para a direita.

Porque a crise abalou fortemente entre a juventude aquela crença difusa e reconfortante no progresso permanente, que poderia ter um ritmo mais lento ou mais rápido, mas que era visto pela nossa geração como uma característica intrínseca das nossas sociedades. O que produzia um certo optimismo, dava confiança no futuro e ajudava a ultrapassar os momentos difíceis. Isso acabou. E as mudanças nos sistemas de crenças colectivas são sempre momentos complicados de incerteza e de transformação.

Esta é uma crise que veio por a nu o escândalo dos negócios especulativos do sector financeiro, das práticas criminosas dos off-shores e de todos os paraísos fiscais (cuja maioria não está situada em exóticas ilhas tropicais, mas está aqui, no nosso civilizado continente europeu). Que veio pôr a nu o escândalo dos salários milionários dos gestores das grandes empresas, que se atribuem a si próprios prémios de milhões de euros, mesmo quando conduzem as suas empresas às maiores dificuldades e obrigam os seus trabalhadores a apertar o cinto. Tudo isto, que andava mais ou menos escondido, se tornou público nesta crise.

A denúncia destes abusos do capital, que antes era feita nos nossos jornais revolucionários, que circulavam apenas em pequenas tiragens nos meios militantes, passou a estar presente nas primeiras páginas dos grandes jornais diários e semanários, passou a estar presente todos os dias nas televisões, perante milhões de espectadores atónitos, pessoas normais e de boa fé, que nunca imaginaram que a falta de vergonha dos respeitáveis senhores do mundo das empresas, dos negócios e da política, e da política dos negócios, pudesse ter alguma vez ter chegado tão longe.

As pessoas normais compreenderam que nós afinal falávamos verdade, que as nossas denúncias não eram exageros de políticos radicais.

E aqui entramos no maior paradoxo desta crise e da situação que hoje vivemos. No meio do caos provocado pela ganância capitalista, permitida e alimentada pelas políticas neoliberais que conduziram a Europa à crise que vivemos, realizámos umas eleições europeias em que os grandes vencedores foram precisamente as forças políticas cujas ideias e práticas nos conduziram ao desastre actual.

Mesmo as candidaturas ligadas ao Partido Socialista Europeu, cujos governos estiveram comprometidos com as soluções neoliberais, mas defendiam um neoliberalismo de rosto humano (como se isso fosse possível), mesmo esses socialistas neoliberais em versão light, acabaram por ser fortemente penalizados em favor da direita capitalista pura e dura.

A esquerda, a esquerda que tinha razão na denúncia dos abusos do capitalismo, a esquerda cujos argumentos hoje são partilhados e reconhecidos por milhões de cidadãos, a nossa esquerda europeia, sofreu uma derrota eleitoral no momento em que os povos e os trabalhadores tanto precisavam de que ela fosse mais forte do que nunca.

A Europa virou à direita no turbilhão da crise económica que a própria direita provocou.

E é com a força dos votos das vítimas da crise que a direita vai agora impor a sua própria saída da crise, ou seja, vamos ter mais do mesmo, mas em condições ainda mais duras para o lado do trabalho.

Onde precisávamos de ter mais Europa social, vamos ter mais Europa financeira e de mercado, onde precisávamos de ter políticas corajosas de solidariedade, vamos ter mais competição e maior pressão para baixar os salários e para reduzir a protecção social onde ela ainda existe. Quando precisávamos de ter mais esquerda, vamos ter uma direita mais forte e mais à-vontade para atacar os direitos que ainda restam.

E esta é uma questão a que não podemos fugir. Se não tentarmos compreender as razões de fundo deste paradoxo político do momento presente, não conseguiremos mudar o que é preciso mudar e juntar as forças que é preciso juntar para virmos a encontrar uma saída que sirva os interesses dos trabalhadores.

Esta batalha trava-se sem dúvida na rua, nas empresas, nas escolas, até nos parlamentos, mas o verdadeiro campo de batalha é a cabeça das pessoas. Foi aí que a esquerda perdeu. Foi na cabeça das pessoas, mesmo daquelas que são vítimas da crise e que estão revoltadas, que a direita nos conseguiu ganhar.

O combate contra a crise exige a força contra a desigualdade. Mas a desigualdade está enraízada em tradições muito antigas, nas relações de exploração, na aceitação da pobreza e da inevitabilidade das diferenças sociais. A direita impôs a ideia de que a economia não se submete à decisão política, nem pode ser condicionada pela democracia.

Se hoje já não cola bem a ideia de que a mão invisível que comanda o mercado acaba por produzir o bem colectivo, mantém-se no entanto a ideia de que esta mão invisível das leis económicas do mercado continuará de qualquer modo a regular as nossas vidas, para o bem ou para o mal. O desemprego, as deslocalizações, a precariedade e a redução dos direitos são vistos como consequências inevitáveis dessas leis, sobre as quais a política nada poderia fazer, competindo aos políticos apenas atenuar os seus efeitos mais gravosos e nunca determinar o rumo da economia. Esta foi a nossa verdadeira derrota.

A vitória do neoliberalismo foi muito mais profunda do que a sua vitória política e económica. Foi uma vitória ideológica e cultural, que consistiu numa aceitação dos princípios do pensamento único que, apesar de serem apenas uma visão política entre muitas outras possíveis, foram assumidos pela população como algo de normal, eterno e inquestionável. Uma ideia de que o capitalismo é a forma natural das sociedades modernas e democráticas. De que o anti-capitalismo socialista até pode ser saudável como crítica aos excessos do sistema, mas que não representa qualquer alternativa séria de sociedade. A ideia de que a esquerda é útil na oposição, nos sindicatos, nos movimentos sociais, mas que governar é uma função que compete à direita e ao centro.

E é tal a força deste pensamento único que muitas organizações de esquerda na Europa de alguma forma também a assumiram e vêm-se a si próprias como tendo precisamente aquelas funções de contestação, de contra poder e não a função de levar as forças populares a governar a sua sociedade, segundo a sua perspectiva emancipadora e solidária, definindo de forma soberana os caminhos da economia.

Daí que muitos se limitem à denúncia dos horrores do sistema e à crítica dos seus responsáveis — o que tem de ser feito, é claro. Mas nunca haverá esquerda de alternativa enquanto não conseguirmos comunicar à grande massa do povo, às pessoas normais e pouco politizadas, quais são as nossas propostas, como é que elas podem ser concretizadas, que forças temos de ter para as levar à prática. Foi aqui e não na crítica e na propaganda, que boa parte da esquerda europeia falhou redondamente.

Eu sei que os três partidos representados nesta mesa constituirão talvez das melhores excepções a esta regra. Mas é da Europa e não de nós que estamos a falar neste debate. E na Europa, em geral, a esquerda saiu mais fraca desta crise, que era uma oportunidade histórica para o seu reforço e mesmo para um enorme salto em frente, que não fomos capazes de dar.

Por muitas e variadas razões. Um exemplo: nós gostamos imenso da Esquerda Republicana da Catalunha, compartilhamos políticas e valores; nós temos com o Bloco Nacionalista Galego um longo passado de fraternidade e de comunhão de pontos de vista (como vocês sabem, nós chamámo-nos Bloco porque copiámos de vocês, porque a vossa experiência era para nós um bom exemplo a seguir). Aliás é esta comunhão que explica que este debate esteja a ser feito pelos representantes dos nossos três partidos. Pois bem, apesar disso, talvez fiquem chocados ao saber que não há nenhuma rede política europeia onde os nossos três partidos participem. Encontramo-nos nos Fóruns Sociais, é certo, em que todos participamos, mas esse é um âmbito em que compete aos movimentos e não aos partidos definir as políticas e fazer as articulações. Mas estou a referir-me aqui à falta que fazem redes políticas mais amplas ao nível partidário.

Isto apesar de sabermos que é a nível europeu que são tomadas as grandes decisões que nos afectam. A política europeia é hoje a política interna dos nossos países. À esquerda na Europa resta-lhe duas opções: ser europeia ou ser irrelevante. Nós sabemos que a democracia política tem ainda uma base fundamental nas nações e nos Estados e sabemos que quem não conseguir ter força e representação nas suas nações e nos seus Estados, não é na Europa que a vai ter. Mas o âmbito nacional não nos chega. Temos de ter respostas comuns articuladas ao nível europeu. Programas comuns. E em breve, até mesmo candidatos comuns.

A direita já tem. Barroso é o candidato comum dos 27 governos para continuar o projecto neoliberal à frente da Comissão Europeia. Um candidato que une a direita, os liberais e os primeiros-ministros socialistas: o vosso, o nosso e o Gordon Brown.
Penso até que este apoio a Barroso, declarado antes das eleições europeias, foi um bom contributo para a enorme abstenção de 57% que se verificou. Depois de terem dito aos povos que não tinham direito de voto sobre o Tratado de Lisboa, os governantes vieram agora dizer que o voto popular não contava para nada na escolha do chefe do executivo. O que contraria mesmo o disposto no Tratado de Lisboa, que diz que o Presidente da Comissão deve ser escolhido atendendo aos resultados das eleições para o Parlamento Europeu.

Mas a arrogância e o desprezo pela soberania popular tem sido a marca das lideranças da União. O resultado é o afastamento, a indiferença das populações e a abstenção eleitoral. Quando temos eleições parlamentares nos nossos países, as pessoas sabem que do resultado do seu voto depende a escolha do chefe do executivo. Na Europa, até isso lhes foi retirado.

A governamentalização do projecto europeu é um dos principais factores do seu bloqueio. Por isso achei bastante positivo que o Parlamento se tenha recusado a uma aprovação da recondução de Barroso à pressa, logo na sua primeira reunião, em Julho, sem tempo para discutir, como pretendia o Conselho.

Ainda não está decidido se o voto ocorrerá em Setembro. Mas, acima de tudo, o que o Parlamento já conseguiu for impor a sua presença no panorama político europeu, não só face à Comissão, mas sobretudo face ao Conselho, que aprovou Barroso por unanimidade dos 27 governos e considerou o assunto encerrado, aguardando uma mera ratificação de um parlamento domesticado e obediente. A recusa deste foi um revés para os defensores da governamentalização da União Europeia. E quando um Parlamento se dá ao respeito, a democracia só pode ficar a ganhar.

Esta atitude do Conselho foi mais um golpe baixo, e é com golpes baixos que se tem vindo a destruir a ilusão e o sonho que tinham sido semeados pelos líderes europeus das décadas anteriores.

O processo e o conteúdo do Tratado Constitucional e do Tratado de Lisboa foram um ponto muito alto dessa arte do golpe.

Passando ao lado das questões institucionais, de arquitectura e de funcionamento da União, que são no entanto de enorme importância política, refiro-me simplesmente ao facto de que as actuais maiorias políticas na União (que, em democracia, são sempre maiorias circunstânciais e efémeras) estarem a aproveitar este momento em que têm o poder para tentar dar dignidade constitucional à sua opção política neoliberal, para criar dificuldades e bloqueios à alteração desta política quando uma maioria diferente resultar das eleições. Pretendem fixar os princípios básicos da direita para a economia, da sacralização dos valores do mercado e dos interesses privados sobre as políticas sociais e redistributivas, pretendem fixar também as suas opções em matéria de defesa e política militar de aliança com a NATO, para depois virem a usar o Tratado como trincheira de resistência quando a esquerda começar a ganhar eleições. Aí, quando a direita for derrotada nas urnas, seriam os juízes e as leis fundamentais a impedir as mudanças.

Na política europeia, mas não só. A inscrição do neoliberalismo no Tratado de Lisboa destina-se também a ser usada contra qualquer viragem à esquerda nas opções económicas de um simples Estado-Membro. Um país que opte por uma economia social de rosto humano, que não se submeta à concorrência absoluta, que defenda os seus serviços públicos e a propriedade estatal de sectores básicos como a energia, que ajude a sua população a produzir e a criar emprego, será considerado como estando a violar as regras do Tratado, com todas as consequências para o Estado “prevaricador”. E com a integração das economias na Europa, uma ameaça de bloqueio a um país é uma chantagem que terá grandes efeitos na opinião pública, podendo fazer cair governos e mudar maiorias. Esse é o plano.

Por isso é tão importante ampliar a base popular de rejeição do Tratado. Essa luta hoje trava-se na Irlanda. Em nome de uma Europa melhor e mais solidária e não em nome dos egoísmos nacionais. Em nome da possibilidade soberana dos povos escolherem um rumo diferente para a economia e para a sociedade, longe dos padrões actuais, que é para isso que toda a nossa esquerda trabalha. Sem nunca perder a esperança."

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