Publicado em: Esquerda.net / Opinião, 30 de Março de 2009
Uma história que não se esquece
A fundação da NATO, há 60 anos, é um acontecimento histórico da maior relevância. Mas, apesar das comemorações, a história desse ano chave em Portugal continua a ser praticamente ignorada na Europa.
Esta é uma história que tenho contado em reuniões nos países do Leste europeu onde, em alguns sectores políticos, existe a ideia de que há uma identificação da NATO com a democracia e mesmo de que a entrada dos seus países na NATO constitui um primeiro passo, quase indispensável, para a futura entrada na União Europeia. Tento explicar-lhes que, enquanto país submetido a uma ditadura fascista, nós nunca fomos aceites nas instituições que deram origem à União Europeia, e estamos gratos por isso, mas que o facto de termos esse regime não foi obstáculo à nossa presença na NATO, de que somos mesmo membros fundadores; e que, apesar de haver em Portugal, na opinião pública, uma certa identificação da democracia com a causa europeia, todos sabemos que tal não é o caso com a Aliança Atlântica; a nossa história, diferente da Europa de Leste, não nos permite cair nesse erro.
1949
Este foi um ano marcado por grandes acontecimentos mundiais. A criação da NATO é apenas um deles.
É criado o COMECON - Conselho para Assistência Econômica Mútua que visava a integração econômica das nações do Leste Europeu. A União Soviética anuncia a sua entrada no clube dos países que dispõem da bomba atómica. Mao Tse Tung proclama a vitória e a criação da República Popular da China. Institucionalizam-se dois Estados alemães - a República Federal da Alemanha e a República Democrática Alemã. Termina a guerra civil grega, tendo os comunistas tido dezenas de milhares de mortos em combate.
É assinada a Convenção de Genebra sobre o direito humanitário nos conflitos armados.
É fundado o Conselho da Europa, cujos propósitos são "a defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade político-social na Europa". Portugal não está entre os fundadores e o regime de Salazar e de Caetano nunca farão do nosso país um membro desta instituição.
1949 é, a vários títulos, também um ano de enorme importância no século XX português. É, por exemplo, o ano em que Egas Moniz recebe o Prémio Nobel e em que se realiza-se em Lisboa a primeira FIL - Feira das Indústrias.
Mas concentremo-nos na política e, mais concretamente, nos três meses que antecederam a fundação da NATO.
O ano começa com as eleições presidenciais. A oposição democrática portuguesa tinha perdido a esperança de que a vitória dos Aliados trouxesse o fim do apoio ocidental ao regime salazarista e muito menos a abertura do próprio regime. A campanha eleitoral começou, oficialmente, a 3 de Janeiro. Pela primeira vez, concorre um candidato de oposição ao regime: o general Norton de Matos. No seu manifesto "À Nação", o candidato apresentava os seus objectivos, sendo o primeiro a "Restituição aos cidadãos portugueses das liberdades fundamentais, o que implica a adesão efectiva do Estado Português a princípios internacionalmente definidos e aceites que aos Direitos do Homem digam respeito". Realizam-se vários comícios de campanha; o do Porto, no dia 23 de Janeiro, junta cerca de 100 000 pessoas, algo de absolutamente incomparável com os maiores comícios que hoje se realizam. Segundo Mário Soares, os dois últimos dias da "eleição" foram passados a queimar os arquivos da Candidatura, cuja sede se encontrava cercada por agentes da PIDE, que aguardavam o momento de intervir. As eleições realizaram-se em 13 de Fevereiro. Na véspera, Norton de Matos retira a sua candidatura, alegando falta de liberdade e de condições de exercício democrático. Votou apenas 17% da população e o general Carmona foi reeleito.
A presença de movimentos e personalidades católicas na candidatura de Norton de Matos foi um facto marcante. Aliás, neste ano, serão publicados vários livros de autores católicos progressistas. Tem lugar também a realização, pela Acção Católica, da 3ª Semana Social Portuguesa dedicada ao tema O Problema do Trabalho.
No Porto é criado o Movimento Nacional Democrático, constituído pelas comissões de apoio à candidatura de Norton de Matos que não aceitaram a dissolução determinada pelo candidato. Em alternativa ao MND, outras correntes mais atlantistas tentam a constituição de uma União Democrática Portuguesa, chegando a emitir um manifesto Aos Democratas Portugueses.
Como consequência das actividades de campanha, em Fevereiro são presos vários oposicionistas como Manuel Mendes, Palma Carlos, Salgado Zenha, Ramos da Costa, Armindo Rodrigues. No dia 15 de Fevereiro, Mário Soares é preso pela quarta vez. De madrugada, quando a PIDE assalta a sua casa, Mário Soares consegue fugir pelas traseiras, mas será preso à tarde, ao apresentar-se no Tribunal da Boa-Hora para ser julgado com todos os membros da Comissão Central do MUD Juvenil.
No dia 25 de Março, numa casa no Luso, a PIDE prendeu Álvaro Cunhal, Sofia Ferreira e Militão Ribeiro. Este último, um histórico dirigente comunista, viria a morrer na prisão passados cerca de nove meses. Cunhal consegue fugir onze anos depois. A 29 de Março são presos em Lisboa Augusto Pereira de Sousa e Jaime Serra, tendo este último sido torturado e impedido de dormir até ao dia 5 de Abril.
Assim ia a vida em Portugal nos primeiros meses de 1949, quando se preparava a primeira cimeira da NATO.
O Tratado e os interesses morais e materiais
Foi, pois, este regime e este governo português que foi um dos fundadores da NATO, sem que objecções definitivas tivessem sido interpostas pelos outros participantes.
No entanto, ironicamente, no preâmbulo do Tratado do Atlântico Norte, aprovado em Washington em 4 de Abril, os signatários reafirmam "a sua fé nos intuitos e princípios da Carta das Nações Unidas e o desejo de viver em paz com todos os povos e com todos os Governos, decididos a salvaguardar a liberdade dos seus povos, a sua herança comum e a sua civilização, fundadas nos princpios da democracia, das liberdades individuais e do respeito pelo direito".
Há que notar que Portugal nem sequer era membro das Nações Unidas, nem subscrevia a sua Carta. Quanto à democracia, liberdades individuais e respeito pelo direito, os parágrafos acima terão sido suficientemente esclarecedores.
O regime fascista, que tinha usado na propaganda interna as supostas vantagens de uma neutralidade, mais formal do que real, na grande guerra contra o nazismo, apresentada como fruto do génio político de Salazar, não optou desta vez pela mesma neutralidade quando se tratou da adesão ao novo bloco político-militar constituído na base da luta contra o comunismo. Uma grande aliança contra o perigo bolchevique e em defesa da civilização ocidental correspondia, sem dúvida, à ideologia do regime e este novo anti-comunismo era, aliás, bastante conveniente para Salazar, que se podia apresentar interna e mesmo externamente como tendo tido razão avant la lettre ao focar aí as suas preocupações, mesmo quando os outros países andavam a fazer a guerra aliados aos comunistas. Isso era o fundamental. O resto, os preâmbulos, eram apenas palavras, que Salazar desvalorizou nestes termos, quando se referiu ao texto do Tratado no seu discurso na Assembleia Nacional para assinalar a aprovação do Pacto do Atlântico a ser ratificado com a presença do Governo:
"A hesitação da doutrina, a fluidez dos preceitos, o impreciso de certas fórmulas, que saltam ao exame minucioso do texto, não se devem considerar filhos da falta de clareza na visão dos problemas, mas da natural indecisão dos começos, do desejo de evitar as maiores reacções internas ou externas ou até da inadaptação da máquina constitucional ao exercício de tão vasta acção. Mas as realidades mandam e impor-se-ão fatalmente nos momentos decisivos da história euro-americana, que para os próximos decénios se me afigura comum."
Havia, acima de tudo, um reconhecido interesse comum. O interesse dos norte-americanos por Portugal era sem dúvida de carácter geo-estratégico, centrado sobretudo na preciosa localização dos Açores entre a prevista frente de combate na Europa e a grande rectaguarda do outro lado do Atlântico. Como reconhece Salazar, no mesmo discurso:
"A iniciativa dos Estados Unidos e do Canadá ao promoverem o Pacto do Atlântico Norte veio dar o apoio de força indispensável a uma tal ou qual eficiência da defesa da Europa, ao mesmo tempo que se procurou reanimar a respectiva economia com os auxílios directos dos capitais e da técnica americana. Fazem-no os Estados Unidos por compreensível sentimento de solidariedade humana; fazem-no em virtude das responsabilidades na direcção política do Mundo que a grandeza do seu esforço de guerra lhes granjeou e a alteração do valor relativo das grandes potências inegavelmente lhes impôs; fazem-no ainda por bem conduzido cálculo dos seus interesses materiais e morais."
Para além dos óbvios interesses "morais" do Portugal salazarista, com a entrada na NATO, as forças armadas foram materialmente ajudadas a modernizar-se para se integrarem nas novas missões e nos novos conceitos estratégicos, não só em equipamento e infra-estruturas, mas também na formação, na organização e doutrina. Isto para além dos apoios financeiros relevantes que o país recebeu, embora parte deles já resultassem do anterior acordo bilateral para a utilização de bases nos Açores de 1948.
Como se pode constatar, ainda hoje os argumentos dos defensores da nossa presença na NATO não são muito diferentes dos de 1949: basta substituirmos a palavra "comunismo" pelo novo nome do sempre indispensável papão aterrorizador e unificador de vontades e consciências.
É que, sem medo das populações, não há despesas militares aprovadas. E sem muito medo não há tolerância face às despesas militares faraónicas que no mundo de hoje fazem a fortuna de uns poucos, subsidiam a carreira de uns quantos e sugam os recursos públicos necessários à melhoria da vida de todos.
A NATO e o Portugal de 1949
Publicado em: O Gaiense, 28 de Março de 2009
Faz no próximo dia 4 de Abril 60 anos que, em Washington, foi fundada a Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN ou NATO. Portugal foi um dos membros fundadores.
1949 foi um ano importante para o mundo e também para o nosso país. Começou com eleições presidenciais, realizadas a 13 de Fevereiro, a que concorreu o general Norton de Matos, em oposição ao candidato do regime. No dia anterior à eleição, o general anunciou a retirada da sua candidatura, por falta de condições de liberdade. Muitos dos seus apoiantes foram presos. As eleições foram uma farsa, num ambiente de repressão e de ditadura de partido único, sem um mínimo de liberdades cívicas, onde nem sequer o recenseamento era limpo e estava muito longe de ser universal, só tendo podido votar 17% da população, devidamente seleccionada. Logo a seguir, em 25 de Março, Cunhal e outros dirigentes do PCP são presos e depois torturados. O campo de concentração do Tarrafal continuava a funcionar em pleno. Mas a imprensa legal, submetida a uma censura asfixiante, limitava-se a enaltecer o génio do ditador. Uns dias mais tarde, seria a cimeira de Washington. O ano começava agitado.
Tal era o Portugal de 1949, um dos dignos criadores da NATO, em cujo Tratado constitutivo os países fundadores se afirmavam "Decididos a salvaguardar a liberdade dos seus povos, a sua herança comum e a sua civilização, fundadas nos princípios da democracia, das liberdades individuais e do respeito pelo direito".
Como diz o povo: quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita. Neste caso, pelos vistos, é o "nunca" que se aplica.
Faz no próximo dia 4 de Abril 60 anos que, em Washington, foi fundada a Organização do Tratado do Atlântico Norte - OTAN ou NATO. Portugal foi um dos membros fundadores.
1949 foi um ano importante para o mundo e também para o nosso país. Começou com eleições presidenciais, realizadas a 13 de Fevereiro, a que concorreu o general Norton de Matos, em oposição ao candidato do regime. No dia anterior à eleição, o general anunciou a retirada da sua candidatura, por falta de condições de liberdade. Muitos dos seus apoiantes foram presos. As eleições foram uma farsa, num ambiente de repressão e de ditadura de partido único, sem um mínimo de liberdades cívicas, onde nem sequer o recenseamento era limpo e estava muito longe de ser universal, só tendo podido votar 17% da população, devidamente seleccionada. Logo a seguir, em 25 de Março, Cunhal e outros dirigentes do PCP são presos e depois torturados. O campo de concentração do Tarrafal continuava a funcionar em pleno. Mas a imprensa legal, submetida a uma censura asfixiante, limitava-se a enaltecer o génio do ditador. Uns dias mais tarde, seria a cimeira de Washington. O ano começava agitado.
Tal era o Portugal de 1949, um dos dignos criadores da NATO, em cujo Tratado constitutivo os países fundadores se afirmavam "Decididos a salvaguardar a liberdade dos seus povos, a sua herança comum e a sua civilização, fundadas nos princípios da democracia, das liberdades individuais e do respeito pelo direito".
Como diz o povo: quem torto nasce, tarde ou nunca se endireita. Neste caso, pelos vistos, é o "nunca" que se aplica.
Contributos para o debate sobre a questão dos partidos
Contribuindo para o debate em curso sobre a questão dos partidos e a da democracia, numa perspectiva da nova esquerda, entendi que poderia ser útil a republicação deste texto sobre a matéria publicado na revista A Comuna há cerca de seis anos.
O texto foi publicado na sequência dos debates realizados no Fórum Social Português.
Optei por reproduzi-lo na íntegra.
Contributos para o debate sobre a questão dos partidos
Renato Soeiro — Julho 2003
Publicado em: A Comuna, nº2
Um dos temas que ganharam mais visibilidade no processo do Fórum foi a recorrente questão do papel dos partidos, da sua participação ou não, da sua relação com os movimentos sociais.
Muitos dos problemas colocados foram de alguma forma ultrapassados, mas muitos foram apenas adiados. Uma sombra ficou a pairar sobre o optimismo e a vontade de trabalhar em conjunto que estes projectos suscitaram (ou ressuscitaram).
A questão está longe de ser simples e muito longe de estar resolvida. Até porque tem raízes bastante profundas na sociedade portuguesa e também na esquerda portuguesa. E a esta profundidade, a esta componente digamos vertical de enraizamento do problema, acresce uma grande propagação horizontal entre os sectores da população menos preocupados com as questões políticas, mas que compartilham uma opinião negativa, ou pelo menos um sentimento de consideração negativa acerca da actuação dos partidos e até mesmo da sua utilidade e razão de ser.
O que é o Fórum?
Segundo a definição da sua Carta de Princípios, o Fórum Social Mundial é um espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, organizações não governamentais e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e pelo imperialismo, configurando-se como um processo mundial permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais, caracterizado pela pluralidade e diversidade, com um carácter não confessional, não governamental e não partidário. Não é uma entidade, nem uma organização e não pretende ser uma instância representativa da sociedade civil, não tem carácter deliberativo, nem porta-vozes oficiais.
Assim são também os Fóruns Regionais ou Nacionais.
Potencialidades dos movimentos sociais
Esta inovadora forma de estar na política corresponde às formas descentralizadas, não hierárquicas e fluidas que caracterizam boa parte dos novos movimentos sociais. E os temas em debate são também decorrentes das variadas agendas desses movimentos, que têm trazido para primeiro plano muitos problemas que antes foram deixados em claro ou que foram tratados de forma inaceitável nos países capitalistas, mas também em instâncias partidárias e estatais da tradição socialista e comunista do século XX.
Alguns dos contributos mais originais dos novos movimentos radicam na afirmação de uma emancipação pessoal, social e cultural (cuja importância muitas vezes tinha sido subestimada nas propostas tradicionais de emancipação política), e na necessária afirmação da subjectividade articulada com a afirmação da cidadania. A grande potencialidade destes movimentos afirma-se não numa recusa da política mas, pelo contrário, no alargamento da política para além dos limites tradicionais, abrindo novos campos de luta cada vez mais diferenciados, e descobrindo que, apesar dessa diversidade, há um inimigo comum que justifica a interligação de todas as lutas.
Estas novas causas têm trazido novos sectores da população, com os seus interesses e preocupações específicas, à constatação da incompatibilidade com o sistema, opondo-os na sua prática quotidiana “ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo”, como se afirma na Carta de Princípios.
Todos sentem que é urgente “outro mundo”, afirmam depois que ele é possível e decidem-se a lutar para o conseguir. Como desenvolver essa luta e com quem, é então uma questão inevitável que se coloca.
E os partidos?
No terreno desta luta estão também os sindicatos (um “velho” movimento social) e os partidos de esquerda.
No entanto, o final do século XX foi uma época de crise do sistema partidário da esquerda, de recomposição organizativa e ideológica, em grande parte caracterizado por um enorme vazio, se o compararmos com a pujança política do início do século, após a Revolução de Outubro, ou do pós-Segunda Guerra Mundial. Este vazio reflectiu-se numa crise na construção de alternativas históricas viáveis. Não só as grandes transformações de sentido progressista não aconteciam como, pior ainda, não se vislumbrava a hipótese de virem a acontecer tão cedo, fosse em que país fosse.
Em Portugal, esta situação de descrença e de vazio, acompanhada por muitos da rejeição de modelos sociais que tinham descambado em estagnadas ditaduras, combinou-se com uma reacção a práticas partidárias sectárias, no sentido literal de actuação como seitas, fechadas às outras pessoas e às outras ideias, empenhadas em tentativas de controlo das organizações unitárias e de base, frequentemente feitas com algum desprezo e em violação das mais elementares regras de convívio democrático. Por outro lado, assistia-se a uma degenerescência de outras correntes partidárias, empenhadas em dar o seu melhor na gestão local do capitalismo global, instrumentalizando de forma por vezes despudorada alguns organismos públicos e estatais, colocando os seus boys e delapidando recursos. Outros sectores, mais radicais e menos comprometidos com estes tipos de degradação, lutavam com sérias dificuldades para redefinir as suas agendas e quebrar isolamentos. Na esquerda, a imagem que os partidos davam perante o movimento social era propícia à rejeição e ao crescimento de velhas e novas posições anti-partido.
É na ressaca destes tempos difíceis e de crise que foram formados muitos dos movimentos que hoje estão no Fórum Social Português. As desconfianças e os traumas são, pois, perfeitamente compreensíveis. Junto de alguns sectores mais idosos, esta situação veio a somar-se a alguns ressentimentos herdados dos tempos do PREC.
Cada força tem certamente a sua história e o seu tempo. Mas a realidade política, nomeadamente à esquerda, é sempre muito interactiva e permeável, e os desafios actuais colocam a todos a urgência de novas respostas.
O Fórum Social Português e os partidos
Apesar de a discussão sobre a questão dos partidos e da sua relação com o FSP ter sido muita, não nos parece que tenha primado por uma grande clareza e profundidade.
Já nos referimos acima ao contexto histórico mais recente em que as reservas contra os partidos se alimentaram. Sabemos que, infelizmente, muitos dos argumentos que justificaram estas posições contra os partidos, têm sido reforçados por algumas reprováveis práticas partidárias que persistem, apesar de anacrónicas e profundamente prejudiciais.
Mas o assunto é importante demais para todos — partidos e movimentos — para que se fique por meias palavras e por mal entendidos. E o assunto é importante porque nesta ligação, que deve ser complementar e não de conflito, pode estar um elemento chave do sucesso da luta comum. Vejamos porquê.
Este tema foi abordado no Fórum Social Mundial de 2003, na Mesa de diálogo e controvérsia número 3, na manhã de 26 de Janeiro. Na Nota de apresentação da problemática incluída no sítio do FSM na internet pode ler-se:
“A democracia participativa exige fortes movimentos. No entanto, em si mesmos, os movimentos não resolvem a equação do poder com legitimidade na sociedade, o que significa impossibilidade de universalizar direitos.”
“…Não é sustentável a democracia que não cria poderosos movimentos e, ao mesmo tempo, formas consistentes de representação partidária, que traduzam para o todo e no todo o que, de outra forma, pode não passar de demanda corporativa específica de um movimento.”
E as perguntas colocadas não poderiam ser mais certeiras:
“Que fazer para reinventar os partidos?”
“Como canalizar os movimentos e forças vivas da sociedade para a renovação democrática?”
“Afinal, a democracia participativa pode ser a forma radical de construir mudanças sustentáveis, ou não?”
A democracia e a equação do poder
Muitas pessoas empenhadas no campo das lutas emancipatórias, atentas às experiências que hoje “vão fazendo o caminho ao andar”, talvez já se tenham colocado este aparente paradoxo: atingir uma vitória através da desistência dos ideais, torna essa vitória absolutamente inútil; mas defender os ideais abdicando de uma perspectiva real de vitória, torna inúteis os ideais.
É de vitória, portanto, que trata a nossa política. E como todos os que participam no FSP se situam, de uma forma ou de outra, no campo da democracia, cabe perguntar: que tipo de democracia pretendemos construir para levar à prática os nossos ideais?
A política não é uma mera gestão neutra e consensualizável de questões sociais, culturais, económicas e financeiras, ecológicas ou dos subsistemas públicos. Se fosse, a participação da população (que na sua maioria ignora as subtilezas técnicas dessa gestão) seria prejudicial para o acerto das decisões, que melhor ficariam entregues a especialistas.
A questão em política não é a escolha do caminho correcto para resolver os problemas. A questão é a escolha dos problemas que interessa resolver e a opção entre várias soluções possíveis e alternativas, dilema indecidível com meros critérios técnicos. Por isso a democracia atribui a todos por igual a capacidade legal de decidir nestas matérias, que são demasiado importantes para serem deixadas a técnicos e a especialistas.
A democracia, para as decisões realmente importantes, não pode prescindir do sufrágio directo e universal, conquista chave da nossa civilização. Uma ideia tão revolucionária que, na decisão sobre a escolha de quem deve fazer as leis (isto é, nas eleições), dá igual poder ao juíz que as aplica e ao condenado que as sofre, ao catedrático de Direito e ao aluno do 1º ano, ao prémio Nobel e ao analfabeto, ao patrão e ao empregado, ao general e ao soldado, ao polícia e ao ladrão, ao presidente da República e ao seu motorista. ‘Aberração!’ dizem uns poucos, pensam mais uns quantos… ‘Essencial’, dizem e pensam todos aqueles que compreendem que a decisão política tem a ver com a vida, e que a sabedoria da vida não é atestada por canudos, títulos ou galões, nem é exclusiva de elites iluminadas.
Por isso, a democracia exige participação popular, e esta exige projectos políticos, que devem ser claros e diferenciados, para o que devem ter uma forma organizada de representação geral, à qual chamamos partidos.
As novas formas de democracia implicam novas formas de partidos ou dispensam pura e simplesmente este tipo de organização? É que só faz sentido “reinventar os partidos”, como se diz na página do FSM, se os considerarmos fundamentais para “resolver a equação do poder com legitimidade”.
Partidos para quê?
Dentro da esquerda sempre houve, mesmo nos tempos mais militantes do PREC, correntes e activistas sem partido, o que é o mais natural possível e uma digníssima forma de estar na vida e na luta política. Mas, para além dos sem-partido, sempre houve também vozes que defenderam posições anti-partidos. Desde a esquerda mais moderada até à esquerda mais radical, havia quem sugerisse que os partidos dividiam as pessoas, dividiam o movimento. À direita afirmava-se que os partidos dividiam a nação. À esquerda afirmava-se que os partidos dividiam o povo ou dividiam os trabalhadores. Alguns até se auto-propounham como a garantia da necessária unidade suprapartidária dos trabalhadores.
Algumas perguntas inevitáveis teriam nesse caso de ser colocadas:
Em torno de quê devem então as pessoas estar unidas?
Que tipo de regime político será aquele em que não existem partidos? Será democrático um regime em que as diferentes posições políticas não se podem organizar e apresentar autonomamente perante o povo, submetendo-se a sufrágio universal?
Que balanço fazemos das experiências históricas que seguiram esta linha de pensamento?
Se olharmos com atenção a diversidade das correntes que subscreviam estas posições, verificamos que a proposta era sempre a da unidade em torno de um líder, ou em torno de uma ideia ou projecto geral, bom para todos (para a nação, para o povo ou para os trabalhadores), e os partidos eram condenados precisamente por dificultarem essa unidade.
Uma outra posição, diferente desta, será a de não negar a livre existência de partidos, de aceitar mesmo que estes constituam o parlamento e todas as outras estruturas do poder, mas afirmar que isso nada interessa ao povo, e que a luta se deve fazer noutro campo, deixando para “os políticos” as guerras parlamentares e partidárias. Este tipo de opção, por vezes de aparente radicalidade anti-sistema, cai numa de duas posições: ou abandona de facto a luta pela universalização dos direitos pelos quais se bate ou então limita-se a pedir aos organismos competentes do Estado o favor de os aprovar. É sempre uma desistência e uma aceitação de que estamos condenados a ser governados pelos nossos adversários.
Os partidos unem as pessoas
Contrariamente ao que é afirmado, há que reconhecer, em primeiro lugar, que os partidos unem pessoas. Maiores ou menores, os partidos são um ponto de encontro, de unidade e de acção colectiva de milhares de pessoas que, se não fosse o partido com que simpatizam, nada teriam em comum. Através dos partidos se geram solidariedades entre pessoas do Norte, do Sul, das ilhas, pessoas cujo único elo de ligação é a coincidência de opção partidária. Aliás, juntamente com os clubes de futebol, as igrejas e por vezes o movimento sindical, os partidos são das poucas entidades do nosso país com real capacidade de mobilização duradoura de grandes multidões, convergindo em vontades e acções.
Mas, além de unir os seus adeptos, ou melhor, no processo de união dos seus adeptos, estas instituições demarcam-se das suas congéneres. A identificação com um partido, um clube ou uma igreja, constrói-se também na diferenciação relativamente às outras organizações, numa rivalidade que é parte indispensável da construção da identidade do grupo.
Neste sentido se pode dizer que os partidos também dividem as pessoas. Mas aqui deve ser levantada uma outra questão: é negativo dividir as pessoas? As pessoas deveriam estar unidas? Porquê e em torno de quê?
Os partidos dividem as pessoas
O que significa “tomar partido” ou “ter partido”? Significa o alinhamento ou a preferência por uma parte e não por outra. Partido é uma organização que tem por missão defender uma parte da sociedade, contra (ou em detrimento de) outra ou outras partes da mesma sociedade.
Um dos problemas do discurso e da prática política actual reside no facto de muitos partidos não assumirem o seu papel abertamente, de não lutarem em defesa da sua “parte” de forma limpa e clara, negando no fundo a sua essência e a sua razão de ser com a apresentação de discursos totalizantes, como se a sua função fosse a de representar todos e defender o interesse de todos e não da parte que efectivamente representam.
Mas o discurso totalizador do pretenso interesse geral é um discurso impossível numa sociedade em que há interesses antagónicos e comporta necessariamente imensas brechas lógicas, por onde penetram os argumentos dos partidos que se lhe opõem, os quais, não raras vezes, contêm as mesmas fragilidades porque são feitos com base no mesmo equívoco, isto é, também em nome do interesse de todos. Este é um problema típico das disputas ao centro, nomeadamente da Internacional Socialista e da Terceira Via com os liberais, democratas cristãos e conservadores.
Nenhum partido tem um discurso sério nem coerente se não enuncia claramente qual é a parte que está a defender, o que implica deixar também claro qual é a parte que não está a defender. Acresce ainda que, só esclarecendo previamente esta questão, seria possível compatibilizar interesses compatíveis ou chegar a compromissos de posições que fosse possível e conveniente para duas ou mais partes realizar.
Na base do “interesse geral” contra “interesse geral” não há discurso que possa fazer sentido e ser compreendido pela população. E esta não-compreensão popular não é uma manifestação de ignorância, é talvez um acto de inteligência face a uma impossibilidade lógica evidente.
Uma divisão dentro da divisão
Mas seria cair num erro do mesmo tipo considerar uma correspondência unívoca entre um sector da sociedade e um partido que o represente. Porque um elemento constitutivo fundamental de qualquer entidade política (por maioria de razão de qualquer partido) é a visão do mundo, a opinião que tem sobre os grandes problemas, as soluções possíveis e os caminhos para lá chegar.
A correspondência directa entre um grupo (seja uma classe ou uma nação) e uma única organização política que o represente, é tributária de uma concepção linear e determinista da evolução histórica. Estabelecido “cientificamente” o caminho inevitável da evolução de uma sociedade, a única organização política útil para o progresso seria a que se identificasse com esse caminho, sendo todas as outras apenas origem de perturbações, desvios ou atrasos na marcha inevitável da história.
A política trata do futuro (se considerarmos o presente uma fronteira sem espessura entre o passado e o futuro, o futuro é o destinatário inevitável de todas as acções políticas), ou melhor, trata da escolha de um entre vários futuros considerados possíveis. Mas o futuro, por definição, é coisa que ainda não existe nem nunca existiu, não sendo, pois, parte da realidade. Se se considerar que a ciência é uma forma de conhecimento da realidade, temos de convir que a actividade política não faz parte do universo do conhecimento científico, nem sequer do conhecimento corrente (embora não possa obviamente prescindir de todos os seus contributos), mas sim do mundo da opinião e do projecto, que têm um âmbito ainda mais aberto do que o mundo do conhecimento, já de si muito pouco dado a posições de rigidez dogmática.
Ter-se-á então de reconhecer na actividade política um direito fundamental e irrenunciável à diversidade de opções e, consequentemente, ao pluralismo organizativo.
Se conjungarmos estes dois factores — o da representação das várias partes da sociedade com a diversidade de opiniões sobre a melhor forma de defender cada uma dessas partes —, somos conduzidos a uma divisão dentro da divisão, ao reconhecimento de um pluralismo de segunda ordem que deverá caracterizar a forma democrática de sociedade e ter reflexos também na vida democrática das organizações que actuam nessa sociedade. Poderá legitimamente haver diferentes partidos representando diferentes sectores sociais ou classes, mas poderá também legitimamente haver diferentes partidos representando diferentes formas de defender os interesses de um mesmo sector social ou de uma mesma classe.
O partido de todos – uma ideia impossível, uma ideia perigosa
Quando um partido (de esquerda, de centro ou de direita) não se assume como representante da sua parte (ou um dos representantes da sua parte), mas se pretende porta-voz da sua e das outras partes, está a abrir a porta para a justificação da aniquilação dos outros partidos e para a aceitação de soluções anti-democráticas. Porque os outros partidos no fundo não se justificariam se todos os sectores sociais estivessem representados no meu. Nesse caso, eles baseariam a sua existência numa interpretação errada do que é o interesse geral. Ora uma interpretação errada é algo de não necessário, pode existir ou não e, se deixar de existir, isso só pode constituir um benefício para a população que eu bem melhor represento com o meu partido.
Vimos argumentos deste tipo fundamentarem muitos dos partidos únicos e a correspondente eliminação dos restantes, desde o Partido Baas do Iraque de Saddam Hussein à União Nacional de Salazar, desde o Partido Nacional Socialista de Hitler a partidos únicos e “partidos de todo o povo” que conduziram e conduzem à decadência dos países ex-socialistas.
O reconhecimento do carácter de representação social sectorial dos partidos leva à consideração do paradoxo contido na lógica de partido único. A parte não é o todo, não existirá nunca o partido de todos, de todo o povo ou de toda a nação. Porque se o interesse de todos se compabilizasse, se houvesse um interesse único, não existindo diferenciado o interesse de uma parte, não seria necessária a existência de um partido. Se porventura um dia alguma organização política fôr de todo o povo, seguramente deixa de ser partido e deixará provavelmente de fazer sentido que continue a existir.
Mas se, pelo contrário, se assumir que os partidos não representam apenas opiniões boas ou más, mas sim opiniões boas ou más para a defesa de interesses concretos de partes concretas da sociedade, então talvez se reconheça que merecem ser respeitados tanto quanto essas partes da sociedade o têm que ser, e que a parte que o meu partido representa deve aprender a conviver e a respeitar, mesmo que seja a combater e a derrotar, as outras partes, mas nunca a considerar que elas não existem e, com base nessa consideração, partir para a sua aniquilação pura e simples.
Assumir espírito de partido não é defender ou provocar a divisão da sociedade. É reconhecer que ela está dividida e não tentar pretensamente uni-la sob a batuta de uma parte. E se não se reconhece a divisão, não se abre sequer o caminho para eventuais colaborações claras e saudáveis nos casos em que diferentes interesses possam ser compatibilizados com vantagens mútuas.
Que caminho?
As tarefas a que se propõe o movimento por uma globalização alternativa são de tal forma gigantescas que a nossa preocupação deve ser a de articular o contributo de todos os que queiram participar, nunca a de dividir ou excluir. Apesar dos avanços já conseguidos, há ainda um enorme atraso relativamente às necessidades.
As questões magnas são, por um lado, a ampliação e articulação política dos movimentos sociais, trazendo mais pessoas para a luta e trazendo mais lutas para as pessoas e, por outro lado, a consolidação da sua independência política face ao Estado e aos seus subsídios, face ao poder económico e face aos partidos. Independência que tem dois sentidos. Tão negativo como o controlo partidário sobre os movimentos é a ideia de os movimentos se tornarem em partidos ou tentarem imitá-los na sua acção.
Mas, como vimos, sem partidos e sem os seus projectos políticos, o movimento popular abdicaria do que é fundamental: a vitória democrática das causas que defende.
O que o movimento popular precisa não é de partidos que sejam meros apêndices ou instrumentos da actividade parlamentar, nisso estaremos de acordo. Nem precisa seguramente de partidos com vocação totalizadora e de partido único, que queiram controlar tudo e todos. Nem de vanguardas iluminadas, sejam de inspiração divina ou pseudo-científica.
Mas a rejeição de formas e estilos partidários do passado não pode levar-nos a abandonar a luta a todos os níveis. É preciso juntar vontades individuais e colectivas e dar ao movimento uma presença a muitas vozes, que o reforce e ajude a avançar para novas etapas. É possível e é necessário desenvolver novas práticas políticas, que se consubstanciem também em novas formas de organização. Não há certamente modelos rígidos para a organização dos movimentos e dos partidos. Na história das lutas populares, ao longo dos últimos séculos, já vimos nascer e morrer as mais diversas formas de organização. O importante para o êxito da luta é que as formas se adequem aos objectivos e à situação social em que actuam.
Para podermos ter objectivos mais ousados e conseguir resultados mais concretos.
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ANEXO
Uma velha tradição portuguesa
O povo português foi educado, ao longo de meio século, por uma intensa campanha ideológica justificativa das opções políticas do salazarismo. O regime fascista apresentava-se como uma resposta (como a resposta) ao caos político, económico e social que teria sido provocado pela Primeira República. Apresentavam como fonte do caos que caracterizaria esse período histórico a luta entre os partidos, típica das democracias parlamentares. Esta campanha, ideologicamente dirigida por Salazar, era retransmitida logo a partir da escola primária para a totalidade da população, através da construção de ideias-força muito simples, de um populismo de grande eficácia.
Vale a pena relembrar alguns desses argumentos. Os extractos que se apresentam foram seleccionados de um manual de instrução política da escola da PIDE / DGS, um texto utilizado na formação dos mais indispensáveis guardiões da ditadura:
O interesse nacional não se compadece com a existência de partidos políticos
A Nação não se confunde com um partido, um partido não se identifica com o Estado; o agregado nacional tem necessidades que hão-de ser definidas e satisfeitas através do Estado que é a sua organização política, a ordem pública porém depende da autoridade. Esta exerce-se por intermédio de órgãos especializados; mas não há dúvida de que o verdadeiro fulcro da autoridade é o governo; a acção a desenvolver pelo Governo será tanto mais lata quanto maior for a homogeneidade de pensamento, de doutrina e de moral política; e será tanto mais fácil e eficaz quanto mais elevado for o grau de unidade nacional.
(…) O espírito de partido corrompe ou desvirtua o poder, deforma a visão dos problemas de governo, sacrifica a ordem natural das soluções e sobrepõe-se ao interesse nacional.
Teoricamente os programas partidários entendem-se como solução para problemas concretos nacionais; através dos partidos conhecer-se-iam as ideias ou sentimentos que atravessam a alma da Nação, a força das suas aspirações, a importância das suas necessidades.
“Na prática porém (e temos o exemplo da época republicana de 1910 a 1926) verifica-se que a Nação, o espírito e as finalidades dos partidos se corromperam e as agremiações dos partidos se converteram em clientelas sucessiva ou conjuntamente alimentadas pelo tesouro; os debates parlamentares revelam erudição, eloquência e preferência por grandes teses de filosofia política mas a vida partidária com as suas mutações constantes deixa de corresponder aos interesses políticos e distancia-se cada vez mais do interesse nacional; a fusão e a desagregação dos partidos, as combinações e as transações, são fruto de conflitos e de paixões, conflitos entre facções concorrentes que nada têm a ver com o País e seus problemas.
A Nação tende instintivamente para a unidade; os partidos para a divisão.”
(…) Sob outro prisma o liberalismo conduz ao sistema multi-partidário, isto é, à existência de vários partidos políticos, e consequentemente à existência duma democracia parlamentar; baseando-se no princípio de que a cada cidadão corresponde um voto e que, portanto, cada cidadão é livre de votar em quem entenda. O sistema não pode deixar de conduzir à quebra do princípio de que o Estado existe para toda a Nação e não apenas para uma parte da Nação; ao partido importa apenas a sua sobrevivência na cena política; ao partido interessa apenas a conquista do eleitorado, a glória dos seus dirigentes, a manutenção do partido no poder, esquecendo, portanto, os interesses gerais da colectividade; o partido aparece normalmente apenas com um programa parcelar apresentando as soluções para este ou aquele ponto determinado de interesse real e efectivo é certo, normalmente também de interesses meramente ideais, determinados mais pela necessidade de conquistar adeptos do que para a sua prossecução efectiva.
O interesse da Nação não se compadece enfim com a “liberdade eleitoral”; aliás, é mais do que certo de que o princípio de que cada cidadão um voto cai pela base pela afirmação da certeza de que os homens são diferentes uns dos outros (por exemplo, o voto dum pedreiro sem cultura não pode ter o mesmo valor do dum Prof. Universitário).
Dr. Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Doutrinação Política, ed. Direcção Geral de Segurança – Escola Técnica, s/l, s/d (anos 60-70?), pág. 25-28
O populismo demagógico da defesa do “interesse nacional” nunca abandonou de facto o centro do argumentário fascista, até ao fim do regime, nem mesmo depois da morte de Salazar:
“E o essencial é respeitar os princípios fundamentais em redor dos quais nos reunimos: a subordinação ao interesse nacional, o respeito da personalidade humana entendida como inserção dos valores individuais na vida social cujas exigências não podem ser preteridas, a defesa da família e das comunidades locais e profissionais, o reconhecimento da propriedade privada e da livre empresa condicionado embora às exigências da sua função social, o acatamento do Estado em que o Poder exprima o interesse geral e disponha de autoridade para se sobrepor aos egoísmos dos grupos ou das classes (…)”
Marcello Caetano, Discurso proferido no encerramento do I Congresso da ANP, Tomar, 6 de Maio de 1973 (menos de um ano antes do 25 de Abril de 1974)
Será que os leitores não sentem um certo arrepio ao notar alguma coincidência de argumentos ou de questionamento entre estes textos da escola da PIDE e uma certa vox populi que encontramos por todo o país, em largas camadas da população menos politizadas, e que circula em surdina, depois em alta voz, depois em piadas bacôcas de programas pimba com honras de prime time televisivo, acabando em sábios comentários de intelectuais mediáticos que, não assumindo exactamente estas posições, dão no entanto o seu avisado contributo à campanha anti-partidos?
O texto foi publicado na sequência dos debates realizados no Fórum Social Português.
Optei por reproduzi-lo na íntegra.
Contributos para o debate sobre a questão dos partidos
Renato Soeiro — Julho 2003
Publicado em: A Comuna, nº2
Um dos temas que ganharam mais visibilidade no processo do Fórum foi a recorrente questão do papel dos partidos, da sua participação ou não, da sua relação com os movimentos sociais.
Muitos dos problemas colocados foram de alguma forma ultrapassados, mas muitos foram apenas adiados. Uma sombra ficou a pairar sobre o optimismo e a vontade de trabalhar em conjunto que estes projectos suscitaram (ou ressuscitaram).
A questão está longe de ser simples e muito longe de estar resolvida. Até porque tem raízes bastante profundas na sociedade portuguesa e também na esquerda portuguesa. E a esta profundidade, a esta componente digamos vertical de enraizamento do problema, acresce uma grande propagação horizontal entre os sectores da população menos preocupados com as questões políticas, mas que compartilham uma opinião negativa, ou pelo menos um sentimento de consideração negativa acerca da actuação dos partidos e até mesmo da sua utilidade e razão de ser.
O que é o Fórum?
Segundo a definição da sua Carta de Princípios, o Fórum Social Mundial é um espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, organizações não governamentais e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e pelo imperialismo, configurando-se como um processo mundial permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais, caracterizado pela pluralidade e diversidade, com um carácter não confessional, não governamental e não partidário. Não é uma entidade, nem uma organização e não pretende ser uma instância representativa da sociedade civil, não tem carácter deliberativo, nem porta-vozes oficiais.
Assim são também os Fóruns Regionais ou Nacionais.
Potencialidades dos movimentos sociais
Esta inovadora forma de estar na política corresponde às formas descentralizadas, não hierárquicas e fluidas que caracterizam boa parte dos novos movimentos sociais. E os temas em debate são também decorrentes das variadas agendas desses movimentos, que têm trazido para primeiro plano muitos problemas que antes foram deixados em claro ou que foram tratados de forma inaceitável nos países capitalistas, mas também em instâncias partidárias e estatais da tradição socialista e comunista do século XX.
Alguns dos contributos mais originais dos novos movimentos radicam na afirmação de uma emancipação pessoal, social e cultural (cuja importância muitas vezes tinha sido subestimada nas propostas tradicionais de emancipação política), e na necessária afirmação da subjectividade articulada com a afirmação da cidadania. A grande potencialidade destes movimentos afirma-se não numa recusa da política mas, pelo contrário, no alargamento da política para além dos limites tradicionais, abrindo novos campos de luta cada vez mais diferenciados, e descobrindo que, apesar dessa diversidade, há um inimigo comum que justifica a interligação de todas as lutas.
Estas novas causas têm trazido novos sectores da população, com os seus interesses e preocupações específicas, à constatação da incompatibilidade com o sistema, opondo-os na sua prática quotidiana “ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo”, como se afirma na Carta de Princípios.
Todos sentem que é urgente “outro mundo”, afirmam depois que ele é possível e decidem-se a lutar para o conseguir. Como desenvolver essa luta e com quem, é então uma questão inevitável que se coloca.
E os partidos?
No terreno desta luta estão também os sindicatos (um “velho” movimento social) e os partidos de esquerda.
No entanto, o final do século XX foi uma época de crise do sistema partidário da esquerda, de recomposição organizativa e ideológica, em grande parte caracterizado por um enorme vazio, se o compararmos com a pujança política do início do século, após a Revolução de Outubro, ou do pós-Segunda Guerra Mundial. Este vazio reflectiu-se numa crise na construção de alternativas históricas viáveis. Não só as grandes transformações de sentido progressista não aconteciam como, pior ainda, não se vislumbrava a hipótese de virem a acontecer tão cedo, fosse em que país fosse.
Em Portugal, esta situação de descrença e de vazio, acompanhada por muitos da rejeição de modelos sociais que tinham descambado em estagnadas ditaduras, combinou-se com uma reacção a práticas partidárias sectárias, no sentido literal de actuação como seitas, fechadas às outras pessoas e às outras ideias, empenhadas em tentativas de controlo das organizações unitárias e de base, frequentemente feitas com algum desprezo e em violação das mais elementares regras de convívio democrático. Por outro lado, assistia-se a uma degenerescência de outras correntes partidárias, empenhadas em dar o seu melhor na gestão local do capitalismo global, instrumentalizando de forma por vezes despudorada alguns organismos públicos e estatais, colocando os seus boys e delapidando recursos. Outros sectores, mais radicais e menos comprometidos com estes tipos de degradação, lutavam com sérias dificuldades para redefinir as suas agendas e quebrar isolamentos. Na esquerda, a imagem que os partidos davam perante o movimento social era propícia à rejeição e ao crescimento de velhas e novas posições anti-partido.
É na ressaca destes tempos difíceis e de crise que foram formados muitos dos movimentos que hoje estão no Fórum Social Português. As desconfianças e os traumas são, pois, perfeitamente compreensíveis. Junto de alguns sectores mais idosos, esta situação veio a somar-se a alguns ressentimentos herdados dos tempos do PREC.
Cada força tem certamente a sua história e o seu tempo. Mas a realidade política, nomeadamente à esquerda, é sempre muito interactiva e permeável, e os desafios actuais colocam a todos a urgência de novas respostas.
O Fórum Social Português e os partidos
Apesar de a discussão sobre a questão dos partidos e da sua relação com o FSP ter sido muita, não nos parece que tenha primado por uma grande clareza e profundidade.
Já nos referimos acima ao contexto histórico mais recente em que as reservas contra os partidos se alimentaram. Sabemos que, infelizmente, muitos dos argumentos que justificaram estas posições contra os partidos, têm sido reforçados por algumas reprováveis práticas partidárias que persistem, apesar de anacrónicas e profundamente prejudiciais.
Mas o assunto é importante demais para todos — partidos e movimentos — para que se fique por meias palavras e por mal entendidos. E o assunto é importante porque nesta ligação, que deve ser complementar e não de conflito, pode estar um elemento chave do sucesso da luta comum. Vejamos porquê.
Este tema foi abordado no Fórum Social Mundial de 2003, na Mesa de diálogo e controvérsia número 3, na manhã de 26 de Janeiro. Na Nota de apresentação da problemática incluída no sítio do FSM na internet pode ler-se:
“A democracia participativa exige fortes movimentos. No entanto, em si mesmos, os movimentos não resolvem a equação do poder com legitimidade na sociedade, o que significa impossibilidade de universalizar direitos.”
“…Não é sustentável a democracia que não cria poderosos movimentos e, ao mesmo tempo, formas consistentes de representação partidária, que traduzam para o todo e no todo o que, de outra forma, pode não passar de demanda corporativa específica de um movimento.”
E as perguntas colocadas não poderiam ser mais certeiras:
“Que fazer para reinventar os partidos?”
“Como canalizar os movimentos e forças vivas da sociedade para a renovação democrática?”
“Afinal, a democracia participativa pode ser a forma radical de construir mudanças sustentáveis, ou não?”
A democracia e a equação do poder
Muitas pessoas empenhadas no campo das lutas emancipatórias, atentas às experiências que hoje “vão fazendo o caminho ao andar”, talvez já se tenham colocado este aparente paradoxo: atingir uma vitória através da desistência dos ideais, torna essa vitória absolutamente inútil; mas defender os ideais abdicando de uma perspectiva real de vitória, torna inúteis os ideais.
É de vitória, portanto, que trata a nossa política. E como todos os que participam no FSP se situam, de uma forma ou de outra, no campo da democracia, cabe perguntar: que tipo de democracia pretendemos construir para levar à prática os nossos ideais?
A política não é uma mera gestão neutra e consensualizável de questões sociais, culturais, económicas e financeiras, ecológicas ou dos subsistemas públicos. Se fosse, a participação da população (que na sua maioria ignora as subtilezas técnicas dessa gestão) seria prejudicial para o acerto das decisões, que melhor ficariam entregues a especialistas.
A questão em política não é a escolha do caminho correcto para resolver os problemas. A questão é a escolha dos problemas que interessa resolver e a opção entre várias soluções possíveis e alternativas, dilema indecidível com meros critérios técnicos. Por isso a democracia atribui a todos por igual a capacidade legal de decidir nestas matérias, que são demasiado importantes para serem deixadas a técnicos e a especialistas.
A democracia, para as decisões realmente importantes, não pode prescindir do sufrágio directo e universal, conquista chave da nossa civilização. Uma ideia tão revolucionária que, na decisão sobre a escolha de quem deve fazer as leis (isto é, nas eleições), dá igual poder ao juíz que as aplica e ao condenado que as sofre, ao catedrático de Direito e ao aluno do 1º ano, ao prémio Nobel e ao analfabeto, ao patrão e ao empregado, ao general e ao soldado, ao polícia e ao ladrão, ao presidente da República e ao seu motorista. ‘Aberração!’ dizem uns poucos, pensam mais uns quantos… ‘Essencial’, dizem e pensam todos aqueles que compreendem que a decisão política tem a ver com a vida, e que a sabedoria da vida não é atestada por canudos, títulos ou galões, nem é exclusiva de elites iluminadas.
Por isso, a democracia exige participação popular, e esta exige projectos políticos, que devem ser claros e diferenciados, para o que devem ter uma forma organizada de representação geral, à qual chamamos partidos.
As novas formas de democracia implicam novas formas de partidos ou dispensam pura e simplesmente este tipo de organização? É que só faz sentido “reinventar os partidos”, como se diz na página do FSM, se os considerarmos fundamentais para “resolver a equação do poder com legitimidade”.
Partidos para quê?
Dentro da esquerda sempre houve, mesmo nos tempos mais militantes do PREC, correntes e activistas sem partido, o que é o mais natural possível e uma digníssima forma de estar na vida e na luta política. Mas, para além dos sem-partido, sempre houve também vozes que defenderam posições anti-partidos. Desde a esquerda mais moderada até à esquerda mais radical, havia quem sugerisse que os partidos dividiam as pessoas, dividiam o movimento. À direita afirmava-se que os partidos dividiam a nação. À esquerda afirmava-se que os partidos dividiam o povo ou dividiam os trabalhadores. Alguns até se auto-propounham como a garantia da necessária unidade suprapartidária dos trabalhadores.
Algumas perguntas inevitáveis teriam nesse caso de ser colocadas:
Em torno de quê devem então as pessoas estar unidas?
Que tipo de regime político será aquele em que não existem partidos? Será democrático um regime em que as diferentes posições políticas não se podem organizar e apresentar autonomamente perante o povo, submetendo-se a sufrágio universal?
Que balanço fazemos das experiências históricas que seguiram esta linha de pensamento?
Se olharmos com atenção a diversidade das correntes que subscreviam estas posições, verificamos que a proposta era sempre a da unidade em torno de um líder, ou em torno de uma ideia ou projecto geral, bom para todos (para a nação, para o povo ou para os trabalhadores), e os partidos eram condenados precisamente por dificultarem essa unidade.
Uma outra posição, diferente desta, será a de não negar a livre existência de partidos, de aceitar mesmo que estes constituam o parlamento e todas as outras estruturas do poder, mas afirmar que isso nada interessa ao povo, e que a luta se deve fazer noutro campo, deixando para “os políticos” as guerras parlamentares e partidárias. Este tipo de opção, por vezes de aparente radicalidade anti-sistema, cai numa de duas posições: ou abandona de facto a luta pela universalização dos direitos pelos quais se bate ou então limita-se a pedir aos organismos competentes do Estado o favor de os aprovar. É sempre uma desistência e uma aceitação de que estamos condenados a ser governados pelos nossos adversários.
Os partidos unem as pessoas
Contrariamente ao que é afirmado, há que reconhecer, em primeiro lugar, que os partidos unem pessoas. Maiores ou menores, os partidos são um ponto de encontro, de unidade e de acção colectiva de milhares de pessoas que, se não fosse o partido com que simpatizam, nada teriam em comum. Através dos partidos se geram solidariedades entre pessoas do Norte, do Sul, das ilhas, pessoas cujo único elo de ligação é a coincidência de opção partidária. Aliás, juntamente com os clubes de futebol, as igrejas e por vezes o movimento sindical, os partidos são das poucas entidades do nosso país com real capacidade de mobilização duradoura de grandes multidões, convergindo em vontades e acções.
Mas, além de unir os seus adeptos, ou melhor, no processo de união dos seus adeptos, estas instituições demarcam-se das suas congéneres. A identificação com um partido, um clube ou uma igreja, constrói-se também na diferenciação relativamente às outras organizações, numa rivalidade que é parte indispensável da construção da identidade do grupo.
Neste sentido se pode dizer que os partidos também dividem as pessoas. Mas aqui deve ser levantada uma outra questão: é negativo dividir as pessoas? As pessoas deveriam estar unidas? Porquê e em torno de quê?
Os partidos dividem as pessoas
O que significa “tomar partido” ou “ter partido”? Significa o alinhamento ou a preferência por uma parte e não por outra. Partido é uma organização que tem por missão defender uma parte da sociedade, contra (ou em detrimento de) outra ou outras partes da mesma sociedade.
Um dos problemas do discurso e da prática política actual reside no facto de muitos partidos não assumirem o seu papel abertamente, de não lutarem em defesa da sua “parte” de forma limpa e clara, negando no fundo a sua essência e a sua razão de ser com a apresentação de discursos totalizantes, como se a sua função fosse a de representar todos e defender o interesse de todos e não da parte que efectivamente representam.
Mas o discurso totalizador do pretenso interesse geral é um discurso impossível numa sociedade em que há interesses antagónicos e comporta necessariamente imensas brechas lógicas, por onde penetram os argumentos dos partidos que se lhe opõem, os quais, não raras vezes, contêm as mesmas fragilidades porque são feitos com base no mesmo equívoco, isto é, também em nome do interesse de todos. Este é um problema típico das disputas ao centro, nomeadamente da Internacional Socialista e da Terceira Via com os liberais, democratas cristãos e conservadores.
Nenhum partido tem um discurso sério nem coerente se não enuncia claramente qual é a parte que está a defender, o que implica deixar também claro qual é a parte que não está a defender. Acresce ainda que, só esclarecendo previamente esta questão, seria possível compatibilizar interesses compatíveis ou chegar a compromissos de posições que fosse possível e conveniente para duas ou mais partes realizar.
Na base do “interesse geral” contra “interesse geral” não há discurso que possa fazer sentido e ser compreendido pela população. E esta não-compreensão popular não é uma manifestação de ignorância, é talvez um acto de inteligência face a uma impossibilidade lógica evidente.
Uma divisão dentro da divisão
Mas seria cair num erro do mesmo tipo considerar uma correspondência unívoca entre um sector da sociedade e um partido que o represente. Porque um elemento constitutivo fundamental de qualquer entidade política (por maioria de razão de qualquer partido) é a visão do mundo, a opinião que tem sobre os grandes problemas, as soluções possíveis e os caminhos para lá chegar.
A correspondência directa entre um grupo (seja uma classe ou uma nação) e uma única organização política que o represente, é tributária de uma concepção linear e determinista da evolução histórica. Estabelecido “cientificamente” o caminho inevitável da evolução de uma sociedade, a única organização política útil para o progresso seria a que se identificasse com esse caminho, sendo todas as outras apenas origem de perturbações, desvios ou atrasos na marcha inevitável da história.
A política trata do futuro (se considerarmos o presente uma fronteira sem espessura entre o passado e o futuro, o futuro é o destinatário inevitável de todas as acções políticas), ou melhor, trata da escolha de um entre vários futuros considerados possíveis. Mas o futuro, por definição, é coisa que ainda não existe nem nunca existiu, não sendo, pois, parte da realidade. Se se considerar que a ciência é uma forma de conhecimento da realidade, temos de convir que a actividade política não faz parte do universo do conhecimento científico, nem sequer do conhecimento corrente (embora não possa obviamente prescindir de todos os seus contributos), mas sim do mundo da opinião e do projecto, que têm um âmbito ainda mais aberto do que o mundo do conhecimento, já de si muito pouco dado a posições de rigidez dogmática.
Ter-se-á então de reconhecer na actividade política um direito fundamental e irrenunciável à diversidade de opções e, consequentemente, ao pluralismo organizativo.
Se conjungarmos estes dois factores — o da representação das várias partes da sociedade com a diversidade de opiniões sobre a melhor forma de defender cada uma dessas partes —, somos conduzidos a uma divisão dentro da divisão, ao reconhecimento de um pluralismo de segunda ordem que deverá caracterizar a forma democrática de sociedade e ter reflexos também na vida democrática das organizações que actuam nessa sociedade. Poderá legitimamente haver diferentes partidos representando diferentes sectores sociais ou classes, mas poderá também legitimamente haver diferentes partidos representando diferentes formas de defender os interesses de um mesmo sector social ou de uma mesma classe.
O partido de todos – uma ideia impossível, uma ideia perigosa
Quando um partido (de esquerda, de centro ou de direita) não se assume como representante da sua parte (ou um dos representantes da sua parte), mas se pretende porta-voz da sua e das outras partes, está a abrir a porta para a justificação da aniquilação dos outros partidos e para a aceitação de soluções anti-democráticas. Porque os outros partidos no fundo não se justificariam se todos os sectores sociais estivessem representados no meu. Nesse caso, eles baseariam a sua existência numa interpretação errada do que é o interesse geral. Ora uma interpretação errada é algo de não necessário, pode existir ou não e, se deixar de existir, isso só pode constituir um benefício para a população que eu bem melhor represento com o meu partido.
Vimos argumentos deste tipo fundamentarem muitos dos partidos únicos e a correspondente eliminação dos restantes, desde o Partido Baas do Iraque de Saddam Hussein à União Nacional de Salazar, desde o Partido Nacional Socialista de Hitler a partidos únicos e “partidos de todo o povo” que conduziram e conduzem à decadência dos países ex-socialistas.
O reconhecimento do carácter de representação social sectorial dos partidos leva à consideração do paradoxo contido na lógica de partido único. A parte não é o todo, não existirá nunca o partido de todos, de todo o povo ou de toda a nação. Porque se o interesse de todos se compabilizasse, se houvesse um interesse único, não existindo diferenciado o interesse de uma parte, não seria necessária a existência de um partido. Se porventura um dia alguma organização política fôr de todo o povo, seguramente deixa de ser partido e deixará provavelmente de fazer sentido que continue a existir.
Mas se, pelo contrário, se assumir que os partidos não representam apenas opiniões boas ou más, mas sim opiniões boas ou más para a defesa de interesses concretos de partes concretas da sociedade, então talvez se reconheça que merecem ser respeitados tanto quanto essas partes da sociedade o têm que ser, e que a parte que o meu partido representa deve aprender a conviver e a respeitar, mesmo que seja a combater e a derrotar, as outras partes, mas nunca a considerar que elas não existem e, com base nessa consideração, partir para a sua aniquilação pura e simples.
Assumir espírito de partido não é defender ou provocar a divisão da sociedade. É reconhecer que ela está dividida e não tentar pretensamente uni-la sob a batuta de uma parte. E se não se reconhece a divisão, não se abre sequer o caminho para eventuais colaborações claras e saudáveis nos casos em que diferentes interesses possam ser compatibilizados com vantagens mútuas.
Que caminho?
As tarefas a que se propõe o movimento por uma globalização alternativa são de tal forma gigantescas que a nossa preocupação deve ser a de articular o contributo de todos os que queiram participar, nunca a de dividir ou excluir. Apesar dos avanços já conseguidos, há ainda um enorme atraso relativamente às necessidades.
As questões magnas são, por um lado, a ampliação e articulação política dos movimentos sociais, trazendo mais pessoas para a luta e trazendo mais lutas para as pessoas e, por outro lado, a consolidação da sua independência política face ao Estado e aos seus subsídios, face ao poder económico e face aos partidos. Independência que tem dois sentidos. Tão negativo como o controlo partidário sobre os movimentos é a ideia de os movimentos se tornarem em partidos ou tentarem imitá-los na sua acção.
Mas, como vimos, sem partidos e sem os seus projectos políticos, o movimento popular abdicaria do que é fundamental: a vitória democrática das causas que defende.
O que o movimento popular precisa não é de partidos que sejam meros apêndices ou instrumentos da actividade parlamentar, nisso estaremos de acordo. Nem precisa seguramente de partidos com vocação totalizadora e de partido único, que queiram controlar tudo e todos. Nem de vanguardas iluminadas, sejam de inspiração divina ou pseudo-científica.
Mas a rejeição de formas e estilos partidários do passado não pode levar-nos a abandonar a luta a todos os níveis. É preciso juntar vontades individuais e colectivas e dar ao movimento uma presença a muitas vozes, que o reforce e ajude a avançar para novas etapas. É possível e é necessário desenvolver novas práticas políticas, que se consubstanciem também em novas formas de organização. Não há certamente modelos rígidos para a organização dos movimentos e dos partidos. Na história das lutas populares, ao longo dos últimos séculos, já vimos nascer e morrer as mais diversas formas de organização. O importante para o êxito da luta é que as formas se adequem aos objectivos e à situação social em que actuam.
Para podermos ter objectivos mais ousados e conseguir resultados mais concretos.
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ANEXO
Uma velha tradição portuguesa
O povo português foi educado, ao longo de meio século, por uma intensa campanha ideológica justificativa das opções políticas do salazarismo. O regime fascista apresentava-se como uma resposta (como a resposta) ao caos político, económico e social que teria sido provocado pela Primeira República. Apresentavam como fonte do caos que caracterizaria esse período histórico a luta entre os partidos, típica das democracias parlamentares. Esta campanha, ideologicamente dirigida por Salazar, era retransmitida logo a partir da escola primária para a totalidade da população, através da construção de ideias-força muito simples, de um populismo de grande eficácia.
Vale a pena relembrar alguns desses argumentos. Os extractos que se apresentam foram seleccionados de um manual de instrução política da escola da PIDE / DGS, um texto utilizado na formação dos mais indispensáveis guardiões da ditadura:
O interesse nacional não se compadece com a existência de partidos políticos
A Nação não se confunde com um partido, um partido não se identifica com o Estado; o agregado nacional tem necessidades que hão-de ser definidas e satisfeitas através do Estado que é a sua organização política, a ordem pública porém depende da autoridade. Esta exerce-se por intermédio de órgãos especializados; mas não há dúvida de que o verdadeiro fulcro da autoridade é o governo; a acção a desenvolver pelo Governo será tanto mais lata quanto maior for a homogeneidade de pensamento, de doutrina e de moral política; e será tanto mais fácil e eficaz quanto mais elevado for o grau de unidade nacional.
(…) O espírito de partido corrompe ou desvirtua o poder, deforma a visão dos problemas de governo, sacrifica a ordem natural das soluções e sobrepõe-se ao interesse nacional.
Teoricamente os programas partidários entendem-se como solução para problemas concretos nacionais; através dos partidos conhecer-se-iam as ideias ou sentimentos que atravessam a alma da Nação, a força das suas aspirações, a importância das suas necessidades.
“Na prática porém (e temos o exemplo da época republicana de 1910 a 1926) verifica-se que a Nação, o espírito e as finalidades dos partidos se corromperam e as agremiações dos partidos se converteram em clientelas sucessiva ou conjuntamente alimentadas pelo tesouro; os debates parlamentares revelam erudição, eloquência e preferência por grandes teses de filosofia política mas a vida partidária com as suas mutações constantes deixa de corresponder aos interesses políticos e distancia-se cada vez mais do interesse nacional; a fusão e a desagregação dos partidos, as combinações e as transações, são fruto de conflitos e de paixões, conflitos entre facções concorrentes que nada têm a ver com o País e seus problemas.
A Nação tende instintivamente para a unidade; os partidos para a divisão.”
(…) Sob outro prisma o liberalismo conduz ao sistema multi-partidário, isto é, à existência de vários partidos políticos, e consequentemente à existência duma democracia parlamentar; baseando-se no princípio de que a cada cidadão corresponde um voto e que, portanto, cada cidadão é livre de votar em quem entenda. O sistema não pode deixar de conduzir à quebra do princípio de que o Estado existe para toda a Nação e não apenas para uma parte da Nação; ao partido importa apenas a sua sobrevivência na cena política; ao partido interessa apenas a conquista do eleitorado, a glória dos seus dirigentes, a manutenção do partido no poder, esquecendo, portanto, os interesses gerais da colectividade; o partido aparece normalmente apenas com um programa parcelar apresentando as soluções para este ou aquele ponto determinado de interesse real e efectivo é certo, normalmente também de interesses meramente ideais, determinados mais pela necessidade de conquistar adeptos do que para a sua prossecução efectiva.
O interesse da Nação não se compadece enfim com a “liberdade eleitoral”; aliás, é mais do que certo de que o princípio de que cada cidadão um voto cai pela base pela afirmação da certeza de que os homens são diferentes uns dos outros (por exemplo, o voto dum pedreiro sem cultura não pode ter o mesmo valor do dum Prof. Universitário).
Dr. Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Doutrinação Política, ed. Direcção Geral de Segurança – Escola Técnica, s/l, s/d (anos 60-70?), pág. 25-28
O populismo demagógico da defesa do “interesse nacional” nunca abandonou de facto o centro do argumentário fascista, até ao fim do regime, nem mesmo depois da morte de Salazar:
“E o essencial é respeitar os princípios fundamentais em redor dos quais nos reunimos: a subordinação ao interesse nacional, o respeito da personalidade humana entendida como inserção dos valores individuais na vida social cujas exigências não podem ser preteridas, a defesa da família e das comunidades locais e profissionais, o reconhecimento da propriedade privada e da livre empresa condicionado embora às exigências da sua função social, o acatamento do Estado em que o Poder exprima o interesse geral e disponha de autoridade para se sobrepor aos egoísmos dos grupos ou das classes (…)”
Marcello Caetano, Discurso proferido no encerramento do I Congresso da ANP, Tomar, 6 de Maio de 1973 (menos de um ano antes do 25 de Abril de 1974)
Será que os leitores não sentem um certo arrepio ao notar alguma coincidência de argumentos ou de questionamento entre estes textos da escola da PIDE e uma certa vox populi que encontramos por todo o país, em largas camadas da população menos politizadas, e que circula em surdina, depois em alta voz, depois em piadas bacôcas de programas pimba com honras de prime time televisivo, acabando em sábios comentários de intelectuais mediáticos que, não assumindo exactamente estas posições, dão no entanto o seu avisado contributo à campanha anti-partidos?
Um plano anti-crise decepcionante
Publicado em: O Gaiense, 21 de Março de 2009
O grande tema do momento é, por todo o mundo, a crise. E o que se debate são as ideias e os planos para a enfrentar.
Esta semana, esteve em Bruxelas o prémio Nobel da Economia de 2008 - Paul Krugman - para dar o seu parecer sobre a matéria. Na sala de imprensa da Comissão, cheia de jornalistas, e ao lado de um embaraçado Vice-presidente da Comissão, responsável pelas Empresas e Indústria, o reputado professor da Universidade de Princeton declarou que o plano anti-crise europeu é verdadeiramente decepcionante (really is disapointing, nas suas palavras). E explicou porquê.
O plano Obama, com 800 mil milhões de dólares para cerca de três anos, não está à altura da magnitude dos problemas do país, que exigiriam 1,2 ou 1,3 biliões. Dará para resolver, segundo Krugman, um terço dos problemas que a crise provoca nos EUA, podendo levar o país a afundar-se num processo deflacionário.
Fazendo a proporção dos respectivos PIB, afirmou que os planos da UE e dos países europeus todos juntos não chegam a metade do valor do dos americanos. Não será, por maioria de razão, uma solução capaz e os problemas da Europa só se poderão agravar se forem enfrentados com hesitações e com uma resposta fraca.
Para além das opiniões de reputados economistas, outras das vozes que se têm feito ouvir com enorme ressonância em largos sectores da opinião pública europeia são as de alguns elementos mais lúcidos da igreja, que clamam pela absoluta necessidade de que a crise proporcione um repensar profundo do modelo capitalista e a opção por uma mudança de paradigma económico e social, colocando a solidariedade e o interesse público no centro de gravidade das decisões políticas, espaço que nos últimos anos tem sido ocupado pela competição, pelo individualismo e pela sacralização do lucro privado.
Paul Krugman on European plan
Março de 2009: o prémio Nobel da Economia de 2008 pronuncia-se, em Bruxelas, sobre o plano anti-crise da UE.
(legendado em português)
(legendado em português)
O acesso aos documentos na UE
Publicado em: O Gaiense, 14 de Março de 2009
e em: esquerda.net / opinião
No Parlamento Europeu discutiu-se esta semana a questão do acesso dos cidadãos aos documentos. O artigo 255º do Tratado estipula que "Todos os cidadãos da União e todas as pessoas singulares ou colectivas que residam ou tenham a sua sede social num Estado-Membro têm direito de acesso aos documentos do Parlamento Europeu, do Conselho e da Comissão".
A transparência é, pois, um princípio da União. O acesso aos documentos das instituições é particularmente importante no que se refere ao processo de tomada de decisões, sobretudo na produção legislativa e na alocação de fundos. Os cidadãos têm direito a saber quem é responsável pelas decisões e com que fundamentos.
É claro que há restrições que são compreensíveis e que devem ser aceites. Mas a transparência política, plasmada no Tratado e tão apregoada como virtude da Europa, está ainda longe de se tornar realidade. Sobretudo no Conselho e na Comissão.
Existirá alguma forma de contornar este direito dos cidadãos, sem contudo fugir à letra do artigo 255º do Tratado?
Quem conheça minimamente o mundo jurídico e sobretudo as subtis nuances de que se faz o complexo direito europeu, saberá que, com "engenho e arte", não há impossíveis para um eurocrata. Os cidadãos têm direito a aceder aos documentos? Respeite-se. Mas, já agora, vamos ter que definir "documentos". E é precisamente através de uma definição judiciosa deste conceito que a informação é sonegada aos cidadãos. Porque todos os documentos são considerados "não-documentos" até que se considere que o público os possa conhecer. Aí passam a ser classificados oficialmente como "documentos" e garante-se, respeitando solenemente o Tratado, o livre acesso de todos os cidadãos a todos os documentos.
Como diria Sherlock Holmes: elementar, caro cidadão.
É a Europa no seu melhor.
Cimeira de Bruxelas: uma mão cheia de nada
Foto: "The Council of the European Union"
Publicado em: O Gaiense, 7 de Março de 2009
A Cimeira da União Europeia, reunida no domingo, não produziu nada, a não ser proclamações genéricas contra o proteccionismo e uma vaga declaração de que a Europa tem de continuar a agir de forma coordenada.
Vistos os parcos resultados, fica a dúvida se Sócrates não teve afinal razão em ficar no seu congresso. Mas se, por outro lado, olharmos para o enorme vazio que caracterizou o debate político no congresso do PS, não se vislumbra também nenhuma razão para o primeiro-ministro ter faltado à cimeira. Há uma enorme semelhança entre a confrangedora falta de conteúdo dos dois conclaves.
Onde há diferença, e bem visível, é entre a nota sobre a cimeira publicada no site do Conselho Europeu e a informação que publicou o portal do governo português, intitulada “Cimeira afirma necessidade de acabar com offshores”. Ora, este tema nem sequer é mencionado na nota ou nos “Apontamentos de imprensa conjuntos” publicados no portal do Conselho. No site do nosso governo dá-se o maior destaque ao assunto, citando longamente o ministro das Finanças, que representou o país em Bruxelas. O que, não deixando de ser caricato, podia pelo menos ser um bom sinal.
Mas o fervor anti-offshores do ministro tem uma sequência inesperada. Diz o portal do governo que “Interrogado no final da cimeira acerca da Zona Franca da Madeira, Fernando Teixeira dos Santos declarou que «na Madeira (...) ainda estamos menos mal», e que «o que se faz na Madeira, se não existisse a zona franca da Madeira, ocorreria noutras praças ou noutros offshores necessariamente não transparentes».
O nosso offshore é melhor que os outros e mantê-lo é um serviço prestado à transparência dos mercados... Classifique o leitor este tipo de argumento, que eu tenho dificuldade em fazê-lo respeitando o decoro de linguagem que estas páginas exigem.
O grande da esquerda
Um passo em frente na relação entre os Fóruns Sociais, os partidos e os governos
Publicado em: www.esquerda.net/opinião em 1 de Março de 2009
Uma das caraterísticas que marcaram o movimento dos Fóruns Sociais no seu início foi uma relação de distanciamento face aos partidos políticos, às instituições e aos governos. “O Fórum Social Mundial é um espaço plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário”, diz-se na Carta de Princípios. Este afastamento é importante para marcar a independência e originalidade do novo sujeito social, mas a sua interpretação concreta tem-se revelado, ao longo dos anos, bastante problemática e mesmo geradora de dificuldades e equívocos.
Estaremos agora, como resposta à crise, a entrar num novo ciclo do movimento alterglobal em que estas tensões se poderão regular sem dramas e com vantagens para o movimento, e sobretudo para as populações que pretende servir?
1.
A situação do movimento alterglobal e do mundo em 2009 é substancialmente diferente da que era em 2001, quando se realizou o primeiro Fórum Social Mundial onde foram estabelecidas as bases deste distanciamento relativamente à esfera política e institucional. Hoje, a questão dos interlocutores políticos e institucionais ganhou nova acuidade.
No entanto, no FSM deste ano, em Belém do Pará, alguns sintomas desta relação complicada foram ainda bastante visíveis. Focaremos apenas alguns exemplos.
Realizou-se, por iniciativa do MST e outros movimentos, uma reunião “à margem do Fórum” com quatro presidentes da República (Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela). Esta reunião foi um êxito e os discursos dos quatro convidados foram momentos interessantes e esclarecedores sobre a sua visão do mundo e da América Latina e sobre a sua acção nos repectivos países. Depois deles falarem, e em jeito de encerramento da reunião, João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST e da Via Campesina, fez um discurso bastante duro em que afirmou, entre outras coisas, que as eleições não mudam nada já que, se mudassem, a Itália seria o país mais avançado do mundo, porque foi o que elegeu mais primeiros-ministros nas últimas décadas. Não será necessário aprofundar a fragilidade lógica e política deste argumento para fundamentarmos a nossa discordância, bastará atendermos a que o argumento foi produzido precisamente numa reunião que promovia o diálogo dos movimentos sociais com quatro presidentes eleitos, interlocutores incontornáveis que são solidários com os objectivos do Fórum e que hoje dirigem os destinos dos seus países como consequência de eleições que mudaram e muito a face da América Latina.
As questões políticas gerais e a discussão sobre os rumos do FSM, o local e as metodologias dos eventos são debatidas e decididas no âmbito do Conselho Internacional (CI), composto actualmente por 129 organizações.
Apesar de a Carta de Princípios estipular que “o Fórum Social Mundial reúne e articula somente entidades e movimentos da sociedade civil” e que “(n)ão deverão participar do Fórum representações partidárias”, podendo apenas “ser convidados a participar, em carácter pessoal, governantes e parlamentares que assumam os compromissos desta Carta”, paradoxalmente a Internacional Socialista (IS) e o Partido Socialista Europeu (PSE) têm assento directo no CI sob o nome de Global Progressive Forum (http://www.globalprogressiveforum.org/drupal/). A outras redes políticas europeias, nomeadamente de parlamentares de esquerda, foi rejeitado este estatuto.
Mas isto terá correspondido a uma fase histórica em que alguma esquerda latino-americana, nomeadamente brasileira, se encantou com a IS e se aproximou desta corrente; hoje, a desilusão com as posições pró-neoliberais e pouco ou nada anti-imperialistas dos governos apoiados pela IS tem afastado os responsáveis do FSM desta relação privilegiada, e tem vindo a ganhar espaço uma maior colaboração com as diversas esquerdas políticas.
Mas, ainda em 2009, os partidos de esquerda acabaram por participar no Fórum travestidos de ONGs, algumas de representatividade duvidosa. É uma consequência preversa de uma medida sem sentido, uma resposta errada que acaba por ser a única possível.
Em contraste com esta situação, é interessante notar que o movimento alterglobal, não só nos Fóruns Sociais, mas também nas cimeiras alternativas ao G8 e outros encontros, tem uma relação de abertura à integração de igrejas e movimentos religiosos (alguns integrando mesmo o Conselho Internacional do FSM), e não hesita em fazer algumas das suas assembleias e reuniões dentro de igrejas e outros edifícios religiosos, como abundantemente aconteceu na cimeira alternativa ao G8 em Rostock, em Junho de 2007. Esta relação é positiva e saudável, e abona também em favor dos movimentos religiosos mais envolvidos socialmente, como são os da América Latina e do Norte da Europa. E, na minha opinião, não tem afectado o carácter não confessional do movimento. Mas não me parece que fosse aceite com igual naturalidade a prática desse tipo de integração com os partidos políticos ou a realização de reuniões dos Fóruns nas sedes dos partidos que os apoiam ou nas instalações parlamentares. Embora isso também não afectasse necessariamente o carácter não partidário do movimento.
2.
A actual crise financeira e económica tem tido um papel unificador das agendas políticas dos vários movimentos sociais que, aprofundando as suas análises, encontram uma causa comum para os diferentes problemas que cada movimento enfrenta na sua luta sectorial, como se pode constatar claramente através de uma leitura das declarações finais das várias assembleias realizadas no FSM 2009 na Amazónia (disponível em http://www.fsm2009amazonia.org.br/programacao/6o-dia/resultados-das-assembleias).
Mas, para além desta convergência dos próprios movimentos, torna-se também cada vez mais clara a convergência das preocupações e objectivos destes com as preocupações e objectivos de muitas organizações políticas, de representantes institucionais e de governos locais e nacionais. Por exemplo, a Declaração do Fórum Parlamentar Mundial (disponível em http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/NoticiasIntegra.asp?id_artigo=6290 ), que reuniu em Belém nos dias do FSM, apresenta larga coincidência com os documentos das diferentes assembleias dos movimentos.
A articulação entre estes diferentes agentes de transformação social é uma grande questão que começa a estar na ordem do dia do movimento. A assunção do potencial transformador da democracia, incluindo a democracia participativa mas não se reduzindo a ela, do papel dos eleitos e a discussão sobre o poder popular, não podem hoje ser evitados como foram nos tempos iniciais do movimento alterglobal.
É chegada a hora de abandonar uma velha tendência para reduzir os movimentos populares a meras forças de pressão, reivindicação e crítica, e encará-los também como forças de projecto e conquista.
O movimento passou de antiglobal a alterglobal para sinalizar esta faceta propositiva. Para assumirem consequentemente esta nova vocação, para realizarem o “outro mundo” que afirmam ser possível, os movimentos sociais terão de passar à fase de articulação descomplexada e sem exclusões com todos os que partilham as linhas fundamentais do seu projecto. Incluindo os partidos, os eleitos e os governos locais e nacionais.
É urgente ultrapassar também uma certa vocação política oposicionista, tão disseminada na esquerda, concepção que é tributária de um fatalismo histórico sem fundamento que assume que estaríamos condenados a ser governados pela direita política ou pelo centro, um ou outro sempre ao serviço dos capitalistas, que teriam como que um direito eterno a dirigir os Estados.
Unir e articular todos os que se batem por objectivos convergentes, esse é o caminho. Cada luta concreta beneficia do êxito de qualquer outro combate contra o mesmo inimigo global. Mesmo assim, todos juntos, ainda seremos bastante fracos face à dimensão gigantesca dos problemas que afectam os nossos povos e das forças hegemónicas que enfrentamos.
Uma das caraterísticas que marcaram o movimento dos Fóruns Sociais no seu início foi uma relação de distanciamento face aos partidos políticos, às instituições e aos governos. “O Fórum Social Mundial é um espaço plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário”, diz-se na Carta de Princípios. Este afastamento é importante para marcar a independência e originalidade do novo sujeito social, mas a sua interpretação concreta tem-se revelado, ao longo dos anos, bastante problemática e mesmo geradora de dificuldades e equívocos.
Estaremos agora, como resposta à crise, a entrar num novo ciclo do movimento alterglobal em que estas tensões se poderão regular sem dramas e com vantagens para o movimento, e sobretudo para as populações que pretende servir?
1.
A situação do movimento alterglobal e do mundo em 2009 é substancialmente diferente da que era em 2001, quando se realizou o primeiro Fórum Social Mundial onde foram estabelecidas as bases deste distanciamento relativamente à esfera política e institucional. Hoje, a questão dos interlocutores políticos e institucionais ganhou nova acuidade.
No entanto, no FSM deste ano, em Belém do Pará, alguns sintomas desta relação complicada foram ainda bastante visíveis. Focaremos apenas alguns exemplos.
Realizou-se, por iniciativa do MST e outros movimentos, uma reunião “à margem do Fórum” com quatro presidentes da República (Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela). Esta reunião foi um êxito e os discursos dos quatro convidados foram momentos interessantes e esclarecedores sobre a sua visão do mundo e da América Latina e sobre a sua acção nos repectivos países. Depois deles falarem, e em jeito de encerramento da reunião, João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST e da Via Campesina, fez um discurso bastante duro em que afirmou, entre outras coisas, que as eleições não mudam nada já que, se mudassem, a Itália seria o país mais avançado do mundo, porque foi o que elegeu mais primeiros-ministros nas últimas décadas. Não será necessário aprofundar a fragilidade lógica e política deste argumento para fundamentarmos a nossa discordância, bastará atendermos a que o argumento foi produzido precisamente numa reunião que promovia o diálogo dos movimentos sociais com quatro presidentes eleitos, interlocutores incontornáveis que são solidários com os objectivos do Fórum e que hoje dirigem os destinos dos seus países como consequência de eleições que mudaram e muito a face da América Latina.
As questões políticas gerais e a discussão sobre os rumos do FSM, o local e as metodologias dos eventos são debatidas e decididas no âmbito do Conselho Internacional (CI), composto actualmente por 129 organizações.
Apesar de a Carta de Princípios estipular que “o Fórum Social Mundial reúne e articula somente entidades e movimentos da sociedade civil” e que “(n)ão deverão participar do Fórum representações partidárias”, podendo apenas “ser convidados a participar, em carácter pessoal, governantes e parlamentares que assumam os compromissos desta Carta”, paradoxalmente a Internacional Socialista (IS) e o Partido Socialista Europeu (PSE) têm assento directo no CI sob o nome de Global Progressive Forum (http://www.globalprogressiveforum.org/drupal/). A outras redes políticas europeias, nomeadamente de parlamentares de esquerda, foi rejeitado este estatuto.
Mas isto terá correspondido a uma fase histórica em que alguma esquerda latino-americana, nomeadamente brasileira, se encantou com a IS e se aproximou desta corrente; hoje, a desilusão com as posições pró-neoliberais e pouco ou nada anti-imperialistas dos governos apoiados pela IS tem afastado os responsáveis do FSM desta relação privilegiada, e tem vindo a ganhar espaço uma maior colaboração com as diversas esquerdas políticas.
Mas, ainda em 2009, os partidos de esquerda acabaram por participar no Fórum travestidos de ONGs, algumas de representatividade duvidosa. É uma consequência preversa de uma medida sem sentido, uma resposta errada que acaba por ser a única possível.
Em contraste com esta situação, é interessante notar que o movimento alterglobal, não só nos Fóruns Sociais, mas também nas cimeiras alternativas ao G8 e outros encontros, tem uma relação de abertura à integração de igrejas e movimentos religiosos (alguns integrando mesmo o Conselho Internacional do FSM), e não hesita em fazer algumas das suas assembleias e reuniões dentro de igrejas e outros edifícios religiosos, como abundantemente aconteceu na cimeira alternativa ao G8 em Rostock, em Junho de 2007. Esta relação é positiva e saudável, e abona também em favor dos movimentos religiosos mais envolvidos socialmente, como são os da América Latina e do Norte da Europa. E, na minha opinião, não tem afectado o carácter não confessional do movimento. Mas não me parece que fosse aceite com igual naturalidade a prática desse tipo de integração com os partidos políticos ou a realização de reuniões dos Fóruns nas sedes dos partidos que os apoiam ou nas instalações parlamentares. Embora isso também não afectasse necessariamente o carácter não partidário do movimento.
2.
A actual crise financeira e económica tem tido um papel unificador das agendas políticas dos vários movimentos sociais que, aprofundando as suas análises, encontram uma causa comum para os diferentes problemas que cada movimento enfrenta na sua luta sectorial, como se pode constatar claramente através de uma leitura das declarações finais das várias assembleias realizadas no FSM 2009 na Amazónia (disponível em http://www.fsm2009amazonia.org.br/programacao/6o-dia/resultados-das-assembleias).
Mas, para além desta convergência dos próprios movimentos, torna-se também cada vez mais clara a convergência das preocupações e objectivos destes com as preocupações e objectivos de muitas organizações políticas, de representantes institucionais e de governos locais e nacionais. Por exemplo, a Declaração do Fórum Parlamentar Mundial (disponível em http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/NoticiasIntegra.asp?id_artigo=6290 ), que reuniu em Belém nos dias do FSM, apresenta larga coincidência com os documentos das diferentes assembleias dos movimentos.
A articulação entre estes diferentes agentes de transformação social é uma grande questão que começa a estar na ordem do dia do movimento. A assunção do potencial transformador da democracia, incluindo a democracia participativa mas não se reduzindo a ela, do papel dos eleitos e a discussão sobre o poder popular, não podem hoje ser evitados como foram nos tempos iniciais do movimento alterglobal.
É chegada a hora de abandonar uma velha tendência para reduzir os movimentos populares a meras forças de pressão, reivindicação e crítica, e encará-los também como forças de projecto e conquista.
O movimento passou de antiglobal a alterglobal para sinalizar esta faceta propositiva. Para assumirem consequentemente esta nova vocação, para realizarem o “outro mundo” que afirmam ser possível, os movimentos sociais terão de passar à fase de articulação descomplexada e sem exclusões com todos os que partilham as linhas fundamentais do seu projecto. Incluindo os partidos, os eleitos e os governos locais e nacionais.
É urgente ultrapassar também uma certa vocação política oposicionista, tão disseminada na esquerda, concepção que é tributária de um fatalismo histórico sem fundamento que assume que estaríamos condenados a ser governados pela direita política ou pelo centro, um ou outro sempre ao serviço dos capitalistas, que teriam como que um direito eterno a dirigir os Estados.
Unir e articular todos os que se batem por objectivos convergentes, esse é o caminho. Cada luta concreta beneficia do êxito de qualquer outro combate contra o mesmo inimigo global. Mesmo assim, todos juntos, ainda seremos bastante fracos face à dimensão gigantesca dos problemas que afectam os nossos povos e das forças hegemónicas que enfrentamos.
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