Contributos para o debate sobre a questão dos partidos

Contribuindo para o debate em curso sobre a questão dos partidos e a da democracia, numa perspectiva da nova esquerda, entendi que poderia ser útil a republicação deste texto sobre a matéria publicado na revista A Comuna há cerca de seis anos.

O texto foi publicado na sequência dos debates realizados no Fórum Social Português.
Optei por reproduzi-lo na íntegra.




Contributos para o debate sobre a questão dos partidos

Renato Soeiro — Julho 2003
Publicado em: A Comuna, nº2


Um dos temas que ganharam mais visibilidade no processo do Fórum foi a recorrente questão do papel dos partidos, da sua participação ou não, da sua relação com os movimentos sociais.

Muitos dos problemas colocados foram de alguma forma ultrapassados, mas muitos foram apenas adiados. Uma sombra ficou a pairar sobre o optimismo e a vontade de trabalhar em conjunto que estes projectos suscitaram (ou ressuscitaram).

A questão está longe de ser simples e muito longe de estar resolvida. Até porque tem raízes bastante profundas na sociedade portuguesa e também na esquerda portuguesa. E a esta profundidade, a esta componente digamos vertical de enraizamento do problema, acresce uma grande propagação horizontal entre os sectores da população menos preocupados com as questões políticas, mas que compartilham uma opinião negativa, ou pelo menos um sentimento de consideração negativa acerca da actuação dos partidos e até mesmo da sua utilidade e razão de ser.

O que é o Fórum?

Segundo a definição da sua Carta de Princípios, o Fórum Social Mundial é um espaço de debate democrático de ideias, aprofundamento da reflexão, formulação de propostas, troca de experiências e articulação de movimentos sociais, redes, organizações não governamentais e outras organizações da sociedade civil que se opõem ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e pelo imperialismo, configurando-se como um processo mundial permanente de busca e construção de alternativas às políticas neoliberais, caracterizado pela pluralidade e diversidade, com um carácter não confessional, não governamental e não partidário. Não é uma entidade, nem uma organização e não pretende ser uma instância representativa da sociedade civil, não tem carácter deliberativo, nem porta-vozes oficiais.

Assim são também os Fóruns Regionais ou Nacionais.

Potencialidades dos movimentos sociais

Esta inovadora forma de estar na política corresponde às formas descentralizadas, não hierárquicas e fluidas que caracterizam boa parte dos novos movimentos sociais. E os temas em debate são também decorrentes das variadas agendas desses movimentos, que têm trazido para primeiro plano muitos problemas que antes foram deixados em claro ou que foram tratados de forma inaceitável nos países capitalistas, mas também em instâncias partidárias e estatais da tradição socialista e comunista do século XX.

Alguns dos contributos mais originais dos novos movimentos radicam na afirmação de uma emancipação pessoal, social e cultural (cuja importância muitas vezes tinha sido subestimada nas propostas tradicionais de emancipação política), e na necessária afirmação da subjectividade articulada com a afirmação da cidadania. A grande potencialidade destes movimentos afirma-se não numa recusa da política mas, pelo contrário, no alargamento da política para além dos limites tradicionais, abrindo novos campos de luta cada vez mais diferenciados, e descobrindo que, apesar dessa diversidade, há um inimigo comum que justifica a interligação de todas as lutas.

Estas novas causas têm trazido novos sectores da população, com os seus interesses e preocupações específicas, à constatação da incompatibilidade com o sistema, opondo-os na sua prática quotidiana “ao neoliberalismo e ao domínio do mundo pelo capital e por qualquer forma de imperialismo”, como se afirma na Carta de Princípios.

Todos sentem que é urgente “outro mundo”, afirmam depois que ele é possível e decidem-se a lutar para o conseguir. Como desenvolver essa luta e com quem, é então uma questão inevitável que se coloca.

E os partidos?

No terreno desta luta estão também os sindicatos (um “velho” movimento social) e os partidos de esquerda.

No entanto, o final do século XX foi uma época de crise do sistema partidário da esquerda, de recomposição organizativa e ideológica, em grande parte caracterizado por um enorme vazio, se o compararmos com a pujança política do início do século, após a Revolução de Outubro, ou do pós-Segunda Guerra Mundial. Este vazio reflectiu-se numa crise na construção de alternativas históricas viáveis. Não só as grandes transformações de sentido progressista não aconteciam como, pior ainda, não se vislumbrava a hipótese de virem a acontecer tão cedo, fosse em que país fosse.

Em Portugal, esta situação de descrença e de vazio, acompanhada por muitos da rejeição de modelos sociais que tinham descambado em estagnadas ditaduras, combinou-se com uma reacção a práticas partidárias sectárias, no sentido literal de actuação como seitas, fechadas às outras pessoas e às outras ideias, empenhadas em tentativas de controlo das organizações unitárias e de base, frequentemente feitas com algum desprezo e em violação das mais elementares regras de convívio democrático. Por outro lado, assistia-se a uma degenerescência de outras correntes partidárias, empenhadas em dar o seu melhor na gestão local do capitalismo global, instrumentalizando de forma por vezes despudorada alguns organismos públicos e estatais, colocando os seus boys e delapidando recursos. Outros sectores, mais radicais e menos comprometidos com estes tipos de degradação, lutavam com sérias dificuldades para redefinir as suas agendas e quebrar isolamentos. Na esquerda, a imagem que os partidos davam perante o movimento social era propícia à rejeição e ao crescimento de velhas e novas posições anti-partido.

É na ressaca destes tempos difíceis e de crise que foram formados muitos dos movimentos que hoje estão no Fórum Social Português. As desconfianças e os traumas são, pois, perfeitamente compreensíveis. Junto de alguns sectores mais idosos, esta situação veio a somar-se a alguns ressentimentos herdados dos tempos do PREC.

Cada força tem certamente a sua história e o seu tempo. Mas a realidade política, nomeadamente à esquerda, é sempre muito interactiva e permeável, e os desafios actuais colocam a todos a urgência de novas respostas.

O Fórum Social Português e os partidos

Apesar de a discussão sobre a questão dos partidos e da sua relação com o FSP ter sido muita, não nos parece que tenha primado por uma grande clareza e profundidade.

Já nos referimos acima ao contexto histórico mais recente em que as reservas contra os partidos se alimentaram. Sabemos que, infelizmente, muitos dos argumentos que justificaram estas posições contra os partidos, têm sido reforçados por algumas reprováveis práticas partidárias que persistem, apesar de anacrónicas e profundamente prejudiciais.

Mas o assunto é importante demais para todos — partidos e movimentos — para que se fique por meias palavras e por mal entendidos. E o assunto é importante porque nesta ligação, que deve ser complementar e não de conflito, pode estar um elemento chave do sucesso da luta comum. Vejamos porquê.

Este tema foi abordado no Fórum Social Mundial de 2003, na Mesa de diálogo e controvérsia número 3, na manhã de 26 de Janeiro. Na Nota de apresentação da problemática incluída no sítio do FSM na internet pode ler-se:
“A democracia participativa exige fortes movimentos. No entanto, em si mesmos, os movimentos não resolvem a equação do poder com legitimidade na sociedade, o que significa impossibilidade de universalizar direitos.”
“…Não é sustentável a democracia que não cria poderosos movimentos e, ao mesmo tempo, formas consistentes de representação partidária, que traduzam para o todo e no todo o que, de outra forma, pode não passar de demanda corporativa específica de um movimento.”


E as perguntas colocadas não poderiam ser mais certeiras:
“Que fazer para reinventar os partidos?”
“Como canalizar os movimentos e forças vivas da sociedade para a renovação democrática?”
“Afinal, a democracia participativa pode ser a forma radical de construir mudanças sustentáveis, ou não?”


A democracia e a equação do poder

Muitas pessoas empenhadas no campo das lutas emancipatórias, atentas às experiências que hoje “vão fazendo o caminho ao andar”, talvez já se tenham colocado este aparente paradoxo: atingir uma vitória através da desistência dos ideais, torna essa vitória absolutamente inútil; mas defender os ideais abdicando de uma perspectiva real de vitória, torna inúteis os ideais.

É de vitória, portanto, que trata a nossa política. E como todos os que participam no FSP se situam, de uma forma ou de outra, no campo da democracia, cabe perguntar: que tipo de democracia pretendemos construir para levar à prática os nossos ideais?

A política não é uma mera gestão neutra e consensualizável de questões sociais, culturais, económicas e financeiras, ecológicas ou dos subsistemas públicos. Se fosse, a participação da população (que na sua maioria ignora as subtilezas técnicas dessa gestão) seria prejudicial para o acerto das decisões, que melhor ficariam entregues a especialistas.

A questão em política não é a escolha do caminho correcto para resolver os problemas. A questão é a escolha dos problemas que interessa resolver e a opção entre várias soluções possíveis e alternativas, dilema indecidível com meros critérios técnicos. Por isso a democracia atribui a todos por igual a capacidade legal de decidir nestas matérias, que são demasiado importantes para serem deixadas a técnicos e a especialistas.

A democracia, para as decisões realmente importantes, não pode prescindir do sufrágio directo e universal, conquista chave da nossa civilização. Uma ideia tão revolucionária que, na decisão sobre a escolha de quem deve fazer as leis (isto é, nas eleições), dá igual poder ao juíz que as aplica e ao condenado que as sofre, ao catedrático de Direito e ao aluno do 1º ano, ao prémio Nobel e ao analfabeto, ao patrão e ao empregado, ao general e ao soldado, ao polícia e ao ladrão, ao presidente da República e ao seu motorista. ‘Aberração!’ dizem uns poucos, pensam mais uns quantos… ‘Essencial’, dizem e pensam todos aqueles que compreendem que a decisão política tem a ver com a vida, e que a sabedoria da vida não é atestada por canudos, títulos ou galões, nem é exclusiva de elites iluminadas.

Por isso, a democracia exige participação popular, e esta exige projectos políticos, que devem ser claros e diferenciados, para o que devem ter uma forma organizada de representação geral, à qual chamamos partidos.

As novas formas de democracia implicam novas formas de partidos ou dispensam pura e simplesmente este tipo de organização? É que só faz sentido “reinventar os partidos”, como se diz na página do FSM, se os considerarmos fundamentais para “resolver a equação do poder com legitimidade”.

Partidos para quê?

Dentro da esquerda sempre houve, mesmo nos tempos mais militantes do PREC, correntes e activistas sem partido, o que é o mais natural possível e uma digníssima forma de estar na vida e na luta política. Mas, para além dos sem-partido, sempre houve também vozes que defenderam posições anti-partidos. Desde a esquerda mais moderada até à esquerda mais radical, havia quem sugerisse que os partidos dividiam as pessoas, dividiam o movimento. À direita afirmava-se que os partidos dividiam a nação. À esquerda afirmava-se que os partidos dividiam o povo ou dividiam os trabalhadores. Alguns até se auto-propounham como a garantia da necessária unidade suprapartidária dos trabalhadores.

Algumas perguntas inevitáveis teriam nesse caso de ser colocadas:

Em torno de quê devem então as pessoas estar unidas?

Que tipo de regime político será aquele em que não existem partidos? Será democrático um regime em que as diferentes posições políticas não se podem organizar e apresentar autonomamente perante o povo, submetendo-se a sufrágio universal?
Que balanço fazemos das experiências históricas que seguiram esta linha de pensamento?

Se olharmos com atenção a diversidade das correntes que subscreviam estas posições, verificamos que a proposta era sempre a da unidade em torno de um líder, ou em torno de uma ideia ou projecto geral, bom para todos (para a nação, para o povo ou para os trabalhadores), e os partidos eram condenados precisamente por dificultarem essa unidade.

Uma outra posição, diferente desta, será a de não negar a livre existência de partidos, de aceitar mesmo que estes constituam o parlamento e todas as outras estruturas do poder, mas afirmar que isso nada interessa ao povo, e que a luta se deve fazer noutro campo, deixando para “os políticos” as guerras parlamentares e partidárias. Este tipo de opção, por vezes de aparente radicalidade anti-sistema, cai numa de duas posições: ou abandona de facto a luta pela universalização dos direitos pelos quais se bate ou então limita-se a pedir aos organismos competentes do Estado o favor de os aprovar. É sempre uma desistência e uma aceitação de que estamos condenados a ser governados pelos nossos adversários.

Os partidos unem as pessoas

Contrariamente ao que é afirmado, há que reconhecer, em primeiro lugar, que os partidos unem pessoas. Maiores ou menores, os partidos são um ponto de encontro, de unidade e de acção colectiva de milhares de pessoas que, se não fosse o partido com que simpatizam, nada teriam em comum. Através dos partidos se geram solidariedades entre pessoas do Norte, do Sul, das ilhas, pessoas cujo único elo de ligação é a coincidência de opção partidária. Aliás, juntamente com os clubes de futebol, as igrejas e por vezes o movimento sindical, os partidos são das poucas entidades do nosso país com real capacidade de mobilização duradoura de grandes multidões, convergindo em vontades e acções.

Mas, além de unir os seus adeptos, ou melhor, no processo de união dos seus adeptos, estas instituições demarcam-se das suas congéneres. A identificação com um partido, um clube ou uma igreja, constrói-se também na diferenciação relativamente às outras organizações, numa rivalidade que é parte indispensável da construção da identidade do grupo.

Neste sentido se pode dizer que os partidos também dividem as pessoas. Mas aqui deve ser levantada uma outra questão: é negativo dividir as pessoas? As pessoas deveriam estar unidas? Porquê e em torno de quê?

Os partidos dividem as pessoas

O que significa “tomar partido” ou “ter partido”? Significa o alinhamento ou a preferência por uma parte e não por outra. Partido é uma organização que tem por missão defender uma parte da sociedade, contra (ou em detrimento de) outra ou outras partes da mesma sociedade.

Um dos problemas do discurso e da prática política actual reside no facto de muitos partidos não assumirem o seu papel abertamente, de não lutarem em defesa da sua “parte” de forma limpa e clara, negando no fundo a sua essência e a sua razão de ser com a apresentação de discursos totalizantes, como se a sua função fosse a de representar todos e defender o interesse de todos e não da parte que efectivamente representam.

Mas o discurso totalizador do pretenso interesse geral é um discurso impossível numa sociedade em que há interesses antagónicos e comporta necessariamente imensas brechas lógicas, por onde penetram os argumentos dos partidos que se lhe opõem, os quais, não raras vezes, contêm as mesmas fragilidades porque são feitos com base no mesmo equívoco, isto é, também em nome do interesse de todos. Este é um problema típico das disputas ao centro, nomeadamente da Internacional Socialista e da Terceira Via com os liberais, democratas cristãos e conservadores.

Nenhum partido tem um discurso sério nem coerente se não enuncia claramente qual é a parte que está a defender, o que implica deixar também claro qual é a parte que não está a defender. Acresce ainda que, só esclarecendo previamente esta questão, seria possível compatibilizar interesses compatíveis ou chegar a compromissos de posições que fosse possível e conveniente para duas ou mais partes realizar.

Na base do “interesse geral” contra “interesse geral” não há discurso que possa fazer sentido e ser compreendido pela população. E esta não-compreensão popular não é uma manifestação de ignorância, é talvez um acto de inteligência face a uma impossibilidade lógica evidente.

Uma divisão dentro da divisão

Mas seria cair num erro do mesmo tipo considerar uma correspondência unívoca entre um sector da sociedade e um partido que o represente. Porque um elemento constitutivo fundamental de qualquer entidade política (por maioria de razão de qualquer partido) é a visão do mundo, a opinião que tem sobre os grandes problemas, as soluções possíveis e os caminhos para lá chegar.

A correspondência directa entre um grupo (seja uma classe ou uma nação) e uma única organização política que o represente, é tributária de uma concepção linear e determinista da evolução histórica. Estabelecido “cientificamente” o caminho inevitável da evolução de uma sociedade, a única organização política útil para o progresso seria a que se identificasse com esse caminho, sendo todas as outras apenas origem de perturbações, desvios ou atrasos na marcha inevitável da história.

A política trata do futuro (se considerarmos o presente uma fronteira sem espessura entre o passado e o futuro, o futuro é o destinatário inevitável de todas as acções políticas), ou melhor, trata da escolha de um entre vários futuros considerados possíveis. Mas o futuro, por definição, é coisa que ainda não existe nem nunca existiu, não sendo, pois, parte da realidade. Se se considerar que a ciência é uma forma de conhecimento da realidade, temos de convir que a actividade política não faz parte do universo do conhecimento científico, nem sequer do conhecimento corrente (embora não possa obviamente prescindir de todos os seus contributos), mas sim do mundo da opinião e do projecto, que têm um âmbito ainda mais aberto do que o mundo do conhecimento, já de si muito pouco dado a posições de rigidez dogmática.

Ter-se-á então de reconhecer na actividade política um direito fundamental e irrenunciável à diversidade de opções e, consequentemente, ao pluralismo organizativo.

Se conjungarmos estes dois factores — o da representação das várias partes da sociedade com a diversidade de opiniões sobre a melhor forma de defender cada uma dessas partes —, somos conduzidos a uma divisão dentro da divisão, ao reconhecimento de um pluralismo de segunda ordem que deverá caracterizar a forma democrática de sociedade e ter reflexos também na vida democrática das organizações que actuam nessa sociedade. Poderá legitimamente haver diferentes partidos representando diferentes sectores sociais ou classes, mas poderá também legitimamente haver diferentes partidos representando diferentes formas de defender os interesses de um mesmo sector social ou de uma mesma classe.

O partido de todos – uma ideia impossível, uma ideia perigosa

Quando um partido (de esquerda, de centro ou de direita) não se assume como representante da sua parte (ou um dos representantes da sua parte), mas se pretende porta-voz da sua e das outras partes, está a abrir a porta para a justificação da aniquilação dos outros partidos e para a aceitação de soluções anti-democráticas. Porque os outros partidos no fundo não se justificariam se todos os sectores sociais estivessem representados no meu. Nesse caso, eles baseariam a sua existência numa interpretação errada do que é o interesse geral. Ora uma interpretação errada é algo de não necessário, pode existir ou não e, se deixar de existir, isso só pode constituir um benefício para a população que eu bem melhor represento com o meu partido.

Vimos argumentos deste tipo fundamentarem muitos dos partidos únicos e a correspondente eliminação dos restantes, desde o Partido Baas do Iraque de Saddam Hussein à União Nacional de Salazar, desde o Partido Nacional Socialista de Hitler a partidos únicos e “partidos de todo o povo” que conduziram e conduzem à decadência dos países ex-socialistas.

O reconhecimento do carácter de representação social sectorial dos partidos leva à consideração do paradoxo contido na lógica de partido único. A parte não é o todo, não existirá nunca o partido de todos, de todo o povo ou de toda a nação. Porque se o interesse de todos se compabilizasse, se houvesse um interesse único, não existindo diferenciado o interesse de uma parte, não seria necessária a existência de um partido. Se porventura um dia alguma organização política fôr de todo o povo, seguramente deixa de ser partido e deixará provavelmente de fazer sentido que continue a existir.

Mas se, pelo contrário, se assumir que os partidos não representam apenas opiniões boas ou más, mas sim opiniões boas ou más para a defesa de interesses concretos de partes concretas da sociedade, então talvez se reconheça que merecem ser respeitados tanto quanto essas partes da sociedade o têm que ser, e que a parte que o meu partido representa deve aprender a conviver e a respeitar, mesmo que seja a combater e a derrotar, as outras partes, mas nunca a considerar que elas não existem e, com base nessa consideração, partir para a sua aniquilação pura e simples.

Assumir espírito de partido não é defender ou provocar a divisão da sociedade. É reconhecer que ela está dividida e não tentar pretensamente uni-la sob a batuta de uma parte. E se não se reconhece a divisão, não se abre sequer o caminho para eventuais colaborações claras e saudáveis nos casos em que diferentes interesses possam ser compatibilizados com vantagens mútuas.

Que caminho?

As tarefas a que se propõe o movimento por uma globalização alternativa são de tal forma gigantescas que a nossa preocupação deve ser a de articular o contributo de todos os que queiram participar, nunca a de dividir ou excluir. Apesar dos avanços já conseguidos, há ainda um enorme atraso relativamente às necessidades.

As questões magnas são, por um lado, a ampliação e articulação política dos movimentos sociais, trazendo mais pessoas para a luta e trazendo mais lutas para as pessoas e, por outro lado, a consolidação da sua independência política face ao Estado e aos seus subsídios, face ao poder económico e face aos partidos. Independência que tem dois sentidos. Tão negativo como o controlo partidário sobre os movimentos é a ideia de os movimentos se tornarem em partidos ou tentarem imitá-los na sua acção.

Mas, como vimos, sem partidos e sem os seus projectos políticos, o movimento popular abdicaria do que é fundamental: a vitória democrática das causas que defende.

O que o movimento popular precisa não é de partidos que sejam meros apêndices ou instrumentos da actividade parlamentar, nisso estaremos de acordo. Nem precisa seguramente de partidos com vocação totalizadora e de partido único, que queiram controlar tudo e todos. Nem de vanguardas iluminadas, sejam de inspiração divina ou pseudo-científica.

Mas a rejeição de formas e estilos partidários do passado não pode levar-nos a abandonar a luta a todos os níveis. É preciso juntar vontades individuais e colectivas e dar ao movimento uma presença a muitas vozes, que o reforce e ajude a avançar para novas etapas. É possível e é necessário desenvolver novas práticas políticas, que se consubstanciem também em novas formas de organização. Não há certamente modelos rígidos para a organização dos movimentos e dos partidos. Na história das lutas populares, ao longo dos últimos séculos, já vimos nascer e morrer as mais diversas formas de organização. O importante para o êxito da luta é que as formas se adequem aos objectivos e à situação social em que actuam.

Para podermos ter objectivos mais ousados e conseguir resultados mais concretos.


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ANEXO

Uma velha tradição portuguesa

O povo português foi educado, ao longo de meio século, por uma intensa campanha ideológica justificativa das opções políticas do salazarismo. O regime fascista apresentava-se como uma resposta (como a resposta) ao caos político, económico e social que teria sido provocado pela Primeira República. Apresentavam como fonte do caos que caracterizaria esse período histórico a luta entre os partidos, típica das democracias parlamentares. Esta campanha, ideologicamente dirigida por Salazar, era retransmitida logo a partir da escola primária para a totalidade da população, através da construção de ideias-força muito simples, de um populismo de grande eficácia.

Vale a pena relembrar alguns desses argumentos. Os extractos que se apresentam foram seleccionados de um manual de instrução política da escola da PIDE / DGS, um texto utilizado na formação dos mais indispensáveis guardiões da ditadura:

O interesse nacional não se compadece com a existência de partidos políticos

A Nação não se confunde com um partido, um partido não se identifica com o Estado; o agregado nacional tem necessidades que hão-de ser definidas e satisfeitas através do Estado que é a sua organização política, a ordem pública porém depende da autoridade. Esta exerce-se por intermédio de órgãos especializados; mas não há dúvida de que o verdadeiro fulcro da autoridade é o governo; a acção a desenvolver pelo Governo será tanto mais lata quanto maior for a homogeneidade de pensamento, de doutrina e de moral política; e será tanto mais fácil e eficaz quanto mais elevado for o grau de unidade nacional.

(…) O espírito de partido corrompe ou desvirtua o poder, deforma a visão dos problemas de governo, sacrifica a ordem natural das soluções e sobrepõe-se ao interesse nacional.

Teoricamente os programas partidários entendem-se como solução para problemas concretos nacionais; através dos partidos conhecer-se-iam as ideias ou sentimentos que atravessam a alma da Nação, a força das suas aspirações, a importância das suas necessidades.

“Na prática porém (e temos o exemplo da época republicana de 1910 a 1926) verifica-se que a Nação, o espírito e as finalidades dos partidos se corromperam e as agremiações dos partidos se converteram em clientelas sucessiva ou conjuntamente alimentadas pelo tesouro; os debates parlamentares revelam erudição, eloquência e preferência por grandes teses de filosofia política mas a vida partidária com as suas mutações constantes deixa de corresponder aos interesses políticos e distancia-se cada vez mais do interesse nacional; a fusão e a desagregação dos partidos, as combinações e as transações, são fruto de conflitos e de paixões, conflitos entre facções concorrentes que nada têm a ver com o País e seus problemas.

A Nação tende instintivamente para a unidade; os partidos para a divisão.”

(…) Sob outro prisma o liberalismo conduz ao sistema multi-partidário, isto é, à existência de vários partidos políticos, e consequentemente à existência duma democracia parlamentar; baseando-se no princípio de que a cada cidadão corresponde um voto e que, portanto, cada cidadão é livre de votar em quem entenda. O sistema não pode deixar de conduzir à quebra do princípio de que o Estado existe para toda a Nação e não apenas para uma parte da Nação; ao partido importa apenas a sua sobrevivência na cena política; ao partido interessa apenas a conquista do eleitorado, a glória dos seus dirigentes, a manutenção do partido no poder, esquecendo, portanto, os interesses gerais da colectividade; o partido aparece normalmente apenas com um programa parcelar apresentando as soluções para este ou aquele ponto determinado de interesse real e efectivo é certo, normalmente também de interesses meramente ideais, determinados mais pela necessidade de conquistar adeptos do que para a sua prossecução efectiva.

O interesse da Nação não se compadece enfim com a “liberdade eleitoral”; aliás, é mais do que certo de que o princípio de que cada cidadão um voto cai pela base pela afirmação da certeza de que os homens são diferentes uns dos outros (por exemplo, o voto dum pedreiro sem cultura não pode ter o mesmo valor do dum Prof. Universitário).

Dr. Francisco Lucas Ferreira de Almeida, Doutrinação Política, ed. Direcção Geral de Segurança – Escola Técnica, s/l, s/d (anos 60-70?), pág. 25-28


O populismo demagógico da defesa do “interesse nacional” nunca abandonou de facto o centro do argumentário fascista, até ao fim do regime, nem mesmo depois da morte de Salazar:

“E o essencial é respeitar os princípios fundamentais em redor dos quais nos reunimos: a subordinação ao interesse nacional, o respeito da personalidade humana entendida como inserção dos valores individuais na vida social cujas exigências não podem ser preteridas, a defesa da família e das comunidades locais e profissionais, o reconhecimento da propriedade privada e da livre empresa condicionado embora às exigências da sua função social, o acatamento do Estado em que o Poder exprima o interesse geral e disponha de autoridade para se sobrepor aos egoísmos dos grupos ou das classes (…)”
Marcello Caetano, Discurso proferido no encerramento do I Congresso da ANP, Tomar, 6 de Maio de 1973 (menos de um ano antes do 25 de Abril de 1974)


Será que os leitores não sentem um certo arrepio ao notar alguma coincidência de argumentos ou de questionamento entre estes textos da escola da PIDE e uma certa vox populi que encontramos por todo o país, em largas camadas da população menos politizadas, e que circula em surdina, depois em alta voz, depois em piadas bacôcas de programas pimba com honras de prime time televisivo, acabando em sábios comentários de intelectuais mediáticos que, não assumindo exactamente estas posições, dão no entanto o seu avisado contributo à campanha anti-partidos?

1 comentário:

M Jose Araujo disse...

Gostei, interassante, bem feito, pertinente