Um passo em frente na relação entre os Fóruns Sociais, os partidos e os governos

Publicado em: www.esquerda.net/opinião em 1 de Março de 2009



Uma das caraterísticas que marcaram o movimento dos Fóruns Sociais no seu início foi uma relação de distanciamento face aos partidos políticos, às instituições e aos governos. “O Fórum Social Mundial é um espaço plural e diversificado, não confessional, não governamental e não partidário”, diz-se na Carta de Princípios. Este afastamento é importante para marcar a independência e originalidade do novo sujeito social, mas a sua interpretação concreta tem-se revelado, ao longo dos anos, bastante problemática e mesmo geradora de dificuldades e equívocos.

Estaremos agora, como resposta à crise, a entrar num novo ciclo do movimento alterglobal em que estas tensões se poderão regular sem dramas e com vantagens para o movimento, e sobretudo para as populações que pretende servir?



1.

A situação do movimento alterglobal e do mundo em 2009 é substancialmente diferente da que era em 2001, quando se realizou o primeiro Fórum Social Mundial onde foram estabelecidas as bases deste distanciamento relativamente à esfera política e institucional. Hoje, a questão dos interlocutores políticos e institucionais ganhou nova acuidade.

No entanto, no FSM deste ano, em Belém do Pará, alguns sintomas desta relação complicada foram ainda bastante visíveis. Focaremos apenas alguns exemplos.

Realizou-se, por iniciativa do MST e outros movimentos, uma reunião “à margem do Fórum” com quatro presidentes da República (Bolívia, Equador, Paraguai e Venezuela). Esta reunião foi um êxito e os discursos dos quatro convidados foram momentos interessantes e esclarecedores sobre a sua visão do mundo e da América Latina e sobre a sua acção nos repectivos países. Depois deles falarem, e em jeito de encerramento da reunião, João Pedro Stedile, da coordenação nacional do MST e da Via Campesina, fez um discurso bastante duro em que afirmou, entre outras coisas, que as eleições não mudam nada já que, se mudassem, a Itália seria o país mais avançado do mundo, porque foi o que elegeu mais primeiros-ministros nas últimas décadas. Não será necessário aprofundar a fragilidade lógica e política deste argumento para fundamentarmos a nossa discordância, bastará atendermos a que o argumento foi produzido precisamente numa reunião que promovia o diálogo dos movimentos sociais com quatro presidentes eleitos, interlocutores incontornáveis que são solidários com os objectivos do Fórum e que hoje dirigem os destinos dos seus países como consequência de eleições que mudaram e muito a face da América Latina.

As questões políticas gerais e a discussão sobre os rumos do FSM, o local e as metodologias dos eventos são debatidas e decididas no âmbito do Conselho Internacional (CI), composto actualmente por 129 organizações.
Apesar de a Carta de Princípios estipular que “o Fórum Social Mundial reúne e articula somente entidades e movimentos da sociedade civil” e que “(n)ão deverão participar do Fórum representações partidárias”, podendo apenas “ser convidados a participar, em carácter pessoal, governantes e parlamentares que assumam os compromissos desta Carta”, paradoxalmente a Internacional Socialista (IS) e o Partido Socialista Europeu (PSE) têm assento directo no CI sob o nome de Global Progressive Forum (http://www.globalprogressiveforum.org/drupal/). A outras redes políticas europeias, nomeadamente de parlamentares de esquerda, foi rejeitado este estatuto.

Mas isto terá correspondido a uma fase histórica em que alguma esquerda latino-americana, nomeadamente brasileira, se encantou com a IS e se aproximou desta corrente; hoje, a desilusão com as posições pró-neoliberais e pouco ou nada anti-imperialistas dos governos apoiados pela IS tem afastado os responsáveis do FSM desta relação privilegiada, e tem vindo a ganhar espaço uma maior colaboração com as diversas esquerdas políticas.

Mas, ainda em 2009, os partidos de esquerda acabaram por participar no Fórum travestidos de ONGs, algumas de representatividade duvidosa. É uma consequência preversa de uma medida sem sentido, uma resposta errada que acaba por ser a única possível.

Em contraste com esta situação, é interessante notar que o movimento alterglobal, não só nos Fóruns Sociais, mas também nas cimeiras alternativas ao G8 e outros encontros, tem uma relação de abertura à integração de igrejas e movimentos religiosos (alguns integrando mesmo o Conselho Internacional do FSM), e não hesita em fazer algumas das suas assembleias e reuniões dentro de igrejas e outros edifícios religiosos, como abundantemente aconteceu na cimeira alternativa ao G8 em Rostock, em Junho de 2007. Esta relação é positiva e saudável, e abona também em favor dos movimentos religiosos mais envolvidos socialmente, como são os da América Latina e do Norte da Europa. E, na minha opinião, não tem afectado o carácter não confessional do movimento. Mas não me parece que fosse aceite com igual naturalidade a prática desse tipo de integração com os partidos políticos ou a realização de reuniões dos Fóruns nas sedes dos partidos que os apoiam ou nas instalações parlamentares. Embora isso também não afectasse necessariamente o carácter não partidário do movimento.


2.

A actual crise financeira e económica tem tido um papel unificador das agendas políticas dos vários movimentos sociais que, aprofundando as suas análises, encontram uma causa comum para os diferentes problemas que cada movimento enfrenta na sua luta sectorial, como se pode constatar claramente através de uma leitura das declarações finais das várias assembleias realizadas no FSM 2009 na Amazónia (disponível em http://www.fsm2009amazonia.org.br/programacao/6o-dia/resultados-das-assembleias).

Mas, para além desta convergência dos próprios movimentos, torna-se também cada vez mais clara a convergência das preocupações e objectivos destes com as preocupações e objectivos de muitas organizações políticas, de representantes institucionais e de governos locais e nacionais. Por exemplo, a Declaração do Fórum Parlamentar Mundial (disponível em http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/NoticiasIntegra.asp?id_artigo=6290 ), que reuniu em Belém nos dias do FSM, apresenta larga coincidência com os documentos das diferentes assembleias dos movimentos.

A articulação entre estes diferentes agentes de transformação social é uma grande questão que começa a estar na ordem do dia do movimento. A assunção do potencial transformador da democracia, incluindo a democracia participativa mas não se reduzindo a ela, do papel dos eleitos e a discussão sobre o poder popular, não podem hoje ser evitados como foram nos tempos iniciais do movimento alterglobal.

É chegada a hora de abandonar uma velha tendência para reduzir os movimentos populares a meras forças de pressão, reivindicação e crítica, e encará-los também como forças de projecto e conquista.

O movimento passou de antiglobal a alterglobal para sinalizar esta faceta propositiva. Para assumirem consequentemente esta nova vocação, para realizarem o “outro mundo” que afirmam ser possível, os movimentos sociais terão de passar à fase de articulação descomplexada e sem exclusões com todos os que partilham as linhas fundamentais do seu projecto. Incluindo os partidos, os eleitos e os governos locais e nacionais.

É urgente ultrapassar também uma certa vocação política oposicionista, tão disseminada na esquerda, concepção que é tributária de um fatalismo histórico sem fundamento que assume que estaríamos condenados a ser governados pela direita política ou pelo centro, um ou outro sempre ao serviço dos capitalistas, que teriam como que um direito eterno a dirigir os Estados.

Unir e articular todos os que se batem por objectivos convergentes, esse é o caminho. Cada luta concreta beneficia do êxito de qualquer outro combate contra o mesmo inimigo global. Mesmo assim, todos juntos, ainda seremos bastante fracos face à dimensão gigantesca dos problemas que afectam os nossos povos e das forças hegemónicas que enfrentamos.

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