Publicado em: Esquerda.net / Opinião, 30 de Março de 2009
Uma história que não se esquece
A fundação da NATO, há 60 anos, é um acontecimento histórico da maior relevância. Mas, apesar das comemorações, a história desse ano chave em Portugal continua a ser praticamente ignorada na Europa.
Esta é uma história que tenho contado em reuniões nos países do Leste europeu onde, em alguns sectores políticos, existe a ideia de que há uma identificação da NATO com a democracia e mesmo de que a entrada dos seus países na NATO constitui um primeiro passo, quase indispensável, para a futura entrada na União Europeia. Tento explicar-lhes que, enquanto país submetido a uma ditadura fascista, nós nunca fomos aceites nas instituições que deram origem à União Europeia, e estamos gratos por isso, mas que o facto de termos esse regime não foi obstáculo à nossa presença na NATO, de que somos mesmo membros fundadores; e que, apesar de haver em Portugal, na opinião pública, uma certa identificação da democracia com a causa europeia, todos sabemos que tal não é o caso com a Aliança Atlântica; a nossa história, diferente da Europa de Leste, não nos permite cair nesse erro.
1949
Este foi um ano marcado por grandes acontecimentos mundiais. A criação da NATO é apenas um deles.
É criado o COMECON - Conselho para Assistência Econômica Mútua que visava a integração econômica das nações do Leste Europeu. A União Soviética anuncia a sua entrada no clube dos países que dispõem da bomba atómica. Mao Tse Tung proclama a vitória e a criação da República Popular da China. Institucionalizam-se dois Estados alemães - a República Federal da Alemanha e a República Democrática Alemã. Termina a guerra civil grega, tendo os comunistas tido dezenas de milhares de mortos em combate.
É assinada a Convenção de Genebra sobre o direito humanitário nos conflitos armados.
É fundado o Conselho da Europa, cujos propósitos são "a defesa dos direitos humanos, o desenvolvimento democrático e a estabilidade político-social na Europa". Portugal não está entre os fundadores e o regime de Salazar e de Caetano nunca farão do nosso país um membro desta instituição.
1949 é, a vários títulos, também um ano de enorme importância no século XX português. É, por exemplo, o ano em que Egas Moniz recebe o Prémio Nobel e em que se realiza-se em Lisboa a primeira FIL - Feira das Indústrias.
Mas concentremo-nos na política e, mais concretamente, nos três meses que antecederam a fundação da NATO.
O ano começa com as eleições presidenciais. A oposição democrática portuguesa tinha perdido a esperança de que a vitória dos Aliados trouxesse o fim do apoio ocidental ao regime salazarista e muito menos a abertura do próprio regime. A campanha eleitoral começou, oficialmente, a 3 de Janeiro. Pela primeira vez, concorre um candidato de oposição ao regime: o general Norton de Matos. No seu manifesto "À Nação", o candidato apresentava os seus objectivos, sendo o primeiro a "Restituição aos cidadãos portugueses das liberdades fundamentais, o que implica a adesão efectiva do Estado Português a princípios internacionalmente definidos e aceites que aos Direitos do Homem digam respeito". Realizam-se vários comícios de campanha; o do Porto, no dia 23 de Janeiro, junta cerca de 100 000 pessoas, algo de absolutamente incomparável com os maiores comícios que hoje se realizam. Segundo Mário Soares, os dois últimos dias da "eleição" foram passados a queimar os arquivos da Candidatura, cuja sede se encontrava cercada por agentes da PIDE, que aguardavam o momento de intervir. As eleições realizaram-se em 13 de Fevereiro. Na véspera, Norton de Matos retira a sua candidatura, alegando falta de liberdade e de condições de exercício democrático. Votou apenas 17% da população e o general Carmona foi reeleito.
A presença de movimentos e personalidades católicas na candidatura de Norton de Matos foi um facto marcante. Aliás, neste ano, serão publicados vários livros de autores católicos progressistas. Tem lugar também a realização, pela Acção Católica, da 3ª Semana Social Portuguesa dedicada ao tema O Problema do Trabalho.
No Porto é criado o Movimento Nacional Democrático, constituído pelas comissões de apoio à candidatura de Norton de Matos que não aceitaram a dissolução determinada pelo candidato. Em alternativa ao MND, outras correntes mais atlantistas tentam a constituição de uma União Democrática Portuguesa, chegando a emitir um manifesto Aos Democratas Portugueses.
Como consequência das actividades de campanha, em Fevereiro são presos vários oposicionistas como Manuel Mendes, Palma Carlos, Salgado Zenha, Ramos da Costa, Armindo Rodrigues. No dia 15 de Fevereiro, Mário Soares é preso pela quarta vez. De madrugada, quando a PIDE assalta a sua casa, Mário Soares consegue fugir pelas traseiras, mas será preso à tarde, ao apresentar-se no Tribunal da Boa-Hora para ser julgado com todos os membros da Comissão Central do MUD Juvenil.
No dia 25 de Março, numa casa no Luso, a PIDE prendeu Álvaro Cunhal, Sofia Ferreira e Militão Ribeiro. Este último, um histórico dirigente comunista, viria a morrer na prisão passados cerca de nove meses. Cunhal consegue fugir onze anos depois. A 29 de Março são presos em Lisboa Augusto Pereira de Sousa e Jaime Serra, tendo este último sido torturado e impedido de dormir até ao dia 5 de Abril.
Assim ia a vida em Portugal nos primeiros meses de 1949, quando se preparava a primeira cimeira da NATO.
O Tratado e os interesses morais e materiais
Foi, pois, este regime e este governo português que foi um dos fundadores da NATO, sem que objecções definitivas tivessem sido interpostas pelos outros participantes.
No entanto, ironicamente, no preâmbulo do Tratado do Atlântico Norte, aprovado em Washington em 4 de Abril, os signatários reafirmam "a sua fé nos intuitos e princípios da Carta das Nações Unidas e o desejo de viver em paz com todos os povos e com todos os Governos, decididos a salvaguardar a liberdade dos seus povos, a sua herança comum e a sua civilização, fundadas nos princpios da democracia, das liberdades individuais e do respeito pelo direito".
Há que notar que Portugal nem sequer era membro das Nações Unidas, nem subscrevia a sua Carta. Quanto à democracia, liberdades individuais e respeito pelo direito, os parágrafos acima terão sido suficientemente esclarecedores.
O regime fascista, que tinha usado na propaganda interna as supostas vantagens de uma neutralidade, mais formal do que real, na grande guerra contra o nazismo, apresentada como fruto do génio político de Salazar, não optou desta vez pela mesma neutralidade quando se tratou da adesão ao novo bloco político-militar constituído na base da luta contra o comunismo. Uma grande aliança contra o perigo bolchevique e em defesa da civilização ocidental correspondia, sem dúvida, à ideologia do regime e este novo anti-comunismo era, aliás, bastante conveniente para Salazar, que se podia apresentar interna e mesmo externamente como tendo tido razão avant la lettre ao focar aí as suas preocupações, mesmo quando os outros países andavam a fazer a guerra aliados aos comunistas. Isso era o fundamental. O resto, os preâmbulos, eram apenas palavras, que Salazar desvalorizou nestes termos, quando se referiu ao texto do Tratado no seu discurso na Assembleia Nacional para assinalar a aprovação do Pacto do Atlântico a ser ratificado com a presença do Governo:
"A hesitação da doutrina, a fluidez dos preceitos, o impreciso de certas fórmulas, que saltam ao exame minucioso do texto, não se devem considerar filhos da falta de clareza na visão dos problemas, mas da natural indecisão dos começos, do desejo de evitar as maiores reacções internas ou externas ou até da inadaptação da máquina constitucional ao exercício de tão vasta acção. Mas as realidades mandam e impor-se-ão fatalmente nos momentos decisivos da história euro-americana, que para os próximos decénios se me afigura comum."
Havia, acima de tudo, um reconhecido interesse comum. O interesse dos norte-americanos por Portugal era sem dúvida de carácter geo-estratégico, centrado sobretudo na preciosa localização dos Açores entre a prevista frente de combate na Europa e a grande rectaguarda do outro lado do Atlântico. Como reconhece Salazar, no mesmo discurso:
"A iniciativa dos Estados Unidos e do Canadá ao promoverem o Pacto do Atlântico Norte veio dar o apoio de força indispensável a uma tal ou qual eficiência da defesa da Europa, ao mesmo tempo que se procurou reanimar a respectiva economia com os auxílios directos dos capitais e da técnica americana. Fazem-no os Estados Unidos por compreensível sentimento de solidariedade humana; fazem-no em virtude das responsabilidades na direcção política do Mundo que a grandeza do seu esforço de guerra lhes granjeou e a alteração do valor relativo das grandes potências inegavelmente lhes impôs; fazem-no ainda por bem conduzido cálculo dos seus interesses materiais e morais."
Para além dos óbvios interesses "morais" do Portugal salazarista, com a entrada na NATO, as forças armadas foram materialmente ajudadas a modernizar-se para se integrarem nas novas missões e nos novos conceitos estratégicos, não só em equipamento e infra-estruturas, mas também na formação, na organização e doutrina. Isto para além dos apoios financeiros relevantes que o país recebeu, embora parte deles já resultassem do anterior acordo bilateral para a utilização de bases nos Açores de 1948.
Como se pode constatar, ainda hoje os argumentos dos defensores da nossa presença na NATO não são muito diferentes dos de 1949: basta substituirmos a palavra "comunismo" pelo novo nome do sempre indispensável papão aterrorizador e unificador de vontades e consciências.
É que, sem medo das populações, não há despesas militares aprovadas. E sem muito medo não há tolerância face às despesas militares faraónicas que no mundo de hoje fazem a fortuna de uns poucos, subsidiam a carreira de uns quantos e sugam os recursos públicos necessários à melhoria da vida de todos.
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